sábado, 14 de maio de 2011

A MORTE AQUI TÃO PERTO

Um dia da semana passada, praia da Rainha, Costa da Caparica.
Instalo-me logo a seguir às dunas, onde estão implantados aqueles guarda-sóis semelhantes a cabanas africanas. Com a maré tão baixa, o mar espraia-se longe, numa ondulação suave e pouco barulhenta. Nem uma nuvem, todo o protagonismo para o sol.
A maneira como as pessoas se estendem ao longo da praia, calma e espaçadamente, sem os atropelos e a algazarra próprios dos meses de verão, sugere-me uma pintura naíf .
Cubro-me de ecrans totais, tal é o estado de brancura do meu revestimento, deito-me e antecipo o deleite do puro fare niente, aquilo que, de há um bom tempo a esta parte, tendo a considerar o verdadeiro luxo, deixando em recuado plano os diamantes Chopard, os acessórios Louis Vuitton e outros reconhecidos objectos de desejo (imperdoavelmente, ía-me esquecendo de referir os manolos). 
Não tarda muito, ouço alguém comunicar, via telemóvel, um afogamento: ...é um senhor que se afogou, quer dizer, uns rapazes tiraram-no da água, inanimado ... Sim, estão a tentar reanimá-lo, é aqui, na praia da Rainha, está sinalizada ...
Quase ao mesmo tempo, uma loura corre pela areia, pedindo ajuda.
Levanto a cabeça e vejo, lá ao fundo, junto ao mar, um ajuntamento de pessoas.
A senhora que ocupa o guarda-sol perto do meu regressa da sua ida à água e comenta com os do lado, aquele já está despachado, quando foi retirado da água espumava pela boca, estão a tentar reanimá-lo, mas já não respira e está cianosado. Devia ter uns cinquenta e tal anos, já está despachado, repetiu.
Curiosamente, o ajuntamento não aumenta, mantendo-se a maior parte das pessoas, como eu, no seu lugar. Será que o povo português está a perder aquela atracção idiota pela desgraça, que, tão frequentemente, conduz à formação de intermináveis filas de trânsito, quando há um acidente, de preferência sangrento, a não perder, interrogo-me. Era bom, era ...
Ao fim do que me pareceram longos minutos, ouve-se o guinchar de uma ambulância, mas nada, não se vê nenhuma equipa do INEM a correr em direcção ao infeliz.
Até que, estranhamente, acho eu, se aproxima, paralelo à linha de água, um carro de recolha do lixo. Larga qualquer coisa grande, azul, que, na distância, não identifico (talvez o recipiente do lixo), apanha o sinistrado e sobe a praia, ziguezagueando, apressado, entre várias instalações de toalhas/pessoas/guarda-sóis, em direcção ao parque de estacionamento, onde, ao que tudo indica, a ambulância o aguarda .

A nuvem negra e nauseante que envolveu o acontecimento vai-se desvanecendo, à medida que o corpo se supõe cada vez mais longe.

Enfim, a morte resolveu dar um ar da sua graça, indo caçar ao domínio marítimo. Isso até se compreende! Mas era preciso a realidade ser tão explícita, tão figurativamente hiper-realista - passe a redundância -, actuando de forma a antecipar a condição última do corpo que deu suporte a uma vida?  

Pois é, (também) não há luxos grátis.

Mais tarde, dirijo-me à água - estava óptima - e ouço um rapaz dizer que, afinal, o sinistrado ainda respirava, quando foi resgatado pelo carro do lixo.

Ainda bem, mas, por esse dia, o brilho do luxo tinha-se desvanecido.

  

3 comentários:

  1. Olá, Isabel.
    Vim conhecer o blogue. Gostei e voltarei.
    Beijinhos.

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  2. como é possível que tenhas andado este tempo todo sem mostrar ao mundo o teu talento da escrita? estou fascinada e à medida que leio os relatos só penso "brilhante, eu jamais faria uma descrição tão perfeita". sinto-me pequenina diante de tanta beleza, o meu blogue ao lado do teu é lixo mas isso é bom sinal :)) gosto de ti!

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  3. Muito bem Rita!!! Tu dizes que não escreves melhor que a Blue Girl e eu digo que não escrevo melhor que tu!!!
    Sucesso... para ambas as blogeiras... sim porque o meu blog já deu o que tinha a dar!!! LOL

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