quarta-feira, 15 de junho de 2011

COINCIDÊNCIAS

Um raio de uma noite má.
A coluna vertebral, talvez zangada com o mundo ou com o corpo que sustenta, não a deixou pregar olho, expandindo-se, numa dor fina, aguda e persistente, pela perna abaixo, sem dar hipóteses de reparação ou repouso, por falta de posição analgésica. 
Acrescia a antipatia do estômago, teimando em lhe travar o meio da garganta com uma náusea absurda, também sinal duma qualquer zanga, vinda já de há dias.

Uma manhã determinada, a seguinte, sábado passado.
Encheu-se de brio e de desejo de vingança, meteu-se no carro e rumou ao hospital. Afinal, não havia de ser a ossatura e uma vil entranha que lhe estragariam os próximos dias.

Um hospital (particular), quase às moscas.
Pudera, fim-de-semana prolongado, quatro dias, fora as férias juntas, o povo no Algarve a devorar hotéis de 5 stars a preços da uva mijona, que la crise oblige, e a matar-se ou estropiar-se pelas viagens de destino.
Coisa boa, portanto: atendimento quase imediato, médica simpática e decidida, nada de exames, só uma breve converseta, que os antecedentes também ajudam e a medicina vai-se tornando cada vez mais galénica - como lhe dizia, há dias, a fisiatra, escapulindo-se á prescrição de uma RM, que isto das verbas anda muito por baixo, grande novidade!
Seguiu-se um shot, aliás, muito bem combinado, como, mais tarde, viria a revelar-se, dado o triunfo do dia seguinte sobre a revolta da dupla atacante, dores para que vos quero, náusea arrumada a um canto (tudo, se não definitivamente resolvido, pelo menos, agradavelmente, adiado para pior oportunidade).
Só que o dito shot, muito bem arquitectado, era de configuração plural, congregando uma injecção intramuscular, uma endovenosa e uma espécie de um soro que escorria dum balão, garbosamente alcandorado no alto de um cabide, para dentro do buraquito expressamente aberto na mão, para, agradecidamente, o receber. 
Demorando esta descida cerca de meia hora de imobilidade, lá a confinaram a uma sala de apoio, confortavelmente instalada num cadeirão azul.

Uma invasão incómoda. 
Estava ela naquilo, esperançada em almejar o sossego merecido e em  pirar-se dali o quanto antes, eis que dois funcionários introduzem na sala uma maca de cujos imaculados (e mono gramados lençóis), emergia uma pálida, frágil e idosa cabeça, aureolada de desalinhados farrapos brancos.
-As melhoras, minha Senhora, e lá deixaram a paciente
Aliás, tudo menos paciente. Num fraco vozear que mais parecia uma reza em surdina, deixando-se  adivinhar soterrada em profundo e angustiado sofrimento, a Senhora murmurava, tenho tantas dores, tantas dorzinhas, ajudem-me, não aguento mais, tenham pena de mim.
Pelo meio daquela espécie de lenga-lenga, que assim parecia, invocava um nome, chamando-o de filhinha, e dirigindo-lhe a sua súplica atormentada.
A outra, entre o arrepio de sensibilidade que a caracteriza e o desejo de fugir dali a sete pés, tal a convicção da sua impotência, tentou acalmar a sofredora, anunciando-lhe, embora sem qualquer certeza, que em breve alguém viria socorrê-la; só que, atada ao cadeirão azul pela irredutível mangueira do soro, não pôde aproximar-se o desejável, vendo-se forçada a repetir três vezes a sua mensagem de pretensa esperança, mesmo assim, sem a confirmação de a ter feito chegar à destinatária. 
Foi, então, que entrou a invocada filha, mulher de meia idade, olhar ferido mas arrefecido, qualquer coisa entre  realista resignação, infinita tristeza, desesperança muda, enfim, aquele não-sei-quê que nos ataca perante os sórdidos e inelutáveis ataques com que a vida nos vai atingindo e para os quais não dispomos de uma adequada reserva de defesa. 
Ao desesperado queixume da mãe respondia duma maneira racional, que tinha de esperar, que não era a única doente, enfim, do jeito com que costuma responder-se às crianças que teimam em não compreender ou aceitar a realidade (ou o sofrimento que ela, por vezes, conleva). Todavia, à (aparente) frieza (ou neutralidade) das respostas, associava um meigo deslizar das mãos pela face da progenitora e pelos brancos farrapos de cabelo que a aureolavam. O que parece ter produzido um efeito calmante, pois, mudando, subitamente, de registo, a senhora começou a murmurar, filha, filhinha, leva-me a passear, leva-me a dar uma voltinha. Parecendo entrar num jogo de crianças, a filha respondeu, queres que te leve aonde, ao castelo, queres ir ver o castelo? O desânimo voltou a imperar, pois a resposta seguiu-se, num ténue murmúrio, o que iria eu fazer ao castelo?

Uma despedida constrangida.
O soro cumpriu o seu percurso, a outra levantou-se, desejou as melhoras (que melhoras!?) e saiu. A filha agradeceu e, um pouco atrasada e atabalhoadamente, um pequeno passo fora do seu casulo, retribuiu.

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Fui pagar a factura da urgência, dirigi-me ao carro, conduzi com a cabeça envolta na nuvem anestesiante do shot, na convicção de que, em futuras circunstâncias semelhantes, deveria optar por um táxi, regressei a casa, onde a empregada me aguardava, entre esfregonas e panos do pó, numa eufórica e desnorteada necessidade de desabafar das traições dum marido em fim de prazo, ouvi-a enquanto pude, pedi-lhe desculpa por a minha cabeça estar demasiado vaga e com necessidade de recosto, deitei-me e regressei, ao fim de umas três horitas, já quase restabelecida, para dar a atenção devida às mágoas da atraiçoada.

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Uma curiosidade.
Já pela noite dentro, lendo a revista Sábado, tomei conhecimento do falecimento de Jack KevorKian, aquele médico americano, alcunhado de Dr. Morte, porque, convicta e assumidamente - e transcrevo - ajudou 130 pessoas a morrer entre 1990 e 1998, a troco de nada, no quadro de suicídios medicamente assistidos
Eu, a quem o suicídio assistido e, mesmo, a eutanásia, desde que, obviamente, rodeados de todas as óbvias (e serão muitas e muito sérias) cautelas, me parece uma opção justa, não pude deixar de rememorar o sofrimento que testemunhara, horas antes, na ida ao hospital.
Não por esse particular sofrimento, afinal, que fiquei eu a saber dele e da solução que a doente pretendia para si ou das suas condições prévias ou presentes para pretender?
Mas pela antevisão de outros sofrimentos que qualquer um de nós pode vir a padecer e a desejar resolver com o livre arbítrio de que, eventualmente, somos dotados.
De resto, como diria o Dr. Morte - e continuo a citar - Se ajudamos as pessoas a vir ao mundo, porque é que não as ajudamos a sair dele?
Pode parecer uma frase banal, mas, se pensarmos bem, não deixa de ter um significado mais profundo: porquê defender a legitimidade para impor (uma vida, sabe-se lá se desejada) e a não legitimidade para permitir (uma morte, assegurdamente desejada?), digo eu, num plano de discussão do fundamento, sem pretender iludir o melindre da questão ...  

Coincidência, ter comprado a Sábado! E não só ...

2 comentários:

  1. Eu tive um problema desses e optei por uma solução radical, a extracção completa da ossarura da coluna vertebral, afinal, nete país isso não serve para nada.

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  2. Mas parece que a Segurança Socail vai deixar de subsidiar essa extracção. Só em clínicas particulares...

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