sexta-feira, 9 de agosto de 2013

O MOLESKINE DE JANETE (V)

(continuação)
 

O Facebook não trouxe notícias de Janete, mas a percepção da coincidência entre o nome da rapariga desenhada e o da sua ex, funcionou, para Francisco, como uma verdadeira revelação, aliás, geradora de estranha curiosidade e difuso mal-estar.
À distância de três meses, permitiu-se, por momentos, sentir saudades de Rita, da vida com Rita. Coisa de segundos, logo repudiada, remetida à categoria de indesejado acto de branqueamento da traição. Já pareço uma gaja, pensou, incomodado.
O flash de inspiração que tanto agradara aos clientes apagou-se definitivamente, cedendo lugar a sucessivas vagas de desconcentração, que o conduziram a uma tão desenfreada quanto improdutiva errância, sabe-se lá por quantos mundos.
Embora ainda o não soubesse, aquilo que mais desejava era chegar a casa, rever o Moleskine, fixar-se nos desenhos de Rita e surpreender parecenças com a sua Rita ou ex-Rita ou ex-sua.
Terminado o dia de trabalho, enfrentou-se a mais um fim de tarde de canícula, refez o caminho até casa, estendeu-se no sofá e folheou o Moleskine, com a atenção que qualquer hipocondríaco dedicaria à leitura da bula dum medicamento novo ou de qualquer enciclopédia médica que lhe viesse parar às mãos.
A Rita dos desenhos era alta, magra, de rosto esguio, animado por expressivos olhos negros e suavizado por delicadas ondas de cabelos castanhos, aberto num sorriso tão inquieto quanto sexy.
A Rita que partira era …, era igual à Rita dos desenhos, constatou Francisco, ao mesmo tempo que dava um salto do sofá, atirava o caderno ao ar, e, com um brilho alucinado nos olhos, exclamava alto e bom som, como se a Rita desenhada o pudesse ouvir:
- Então é isso, sempre partiste com outro e já sei quem é, o pintor que andavas a entrevistar para o artigo que conseguiste impingir àquela nobre publicação, o Artistas é Connosco ou Suas Excelências, os Artistas, ou lá que raio de treta é! Uma cambada de intelectualóides. E inúteis! Mas eu vou já tirar isto a limpo, podes ter a certeza.
O Moleskine jazia, agora, meio desmembrado, no meio da sala, quando, no mesmo ímpeto de fúria, Francisco o apanhou, endireitando as folhas, como se dum afago bruto se tratasse, pois precisava da prova. Havia de exibi-la na cara do tal pintor e de Rita, seguramente os apanharia juntos.
Pesquisou nos ficheiros de Rita até encontrar os dados do energúmeno, um tal Ricardo da Luz, 60 anos, estatura mediana, tri-divorciado, 5 filhos, várias exposições colectivas e muitas mais individuais, cotação alta no mercado. Atelier (também residência), na Rua dos Indignados, n.º 115.
De Moleskine debaixo do braço, Francisco saiu de casa à velocidade dum raio, apanhou um táxi e, em menos de 20 minutos, estava a pressionar furiosamente a campainha do n.º 115 do Ricardo da Luz, cujo som, mesmo assim, se perdia nos acordes de Maria Betânia, que soavam poderosamente, como se não houvesse amanhã, no interior do atelier.
Então, completamente fora de si, Francisco desatou aos murros e pontapés na porta, até que, só por a música ter chegado ao fim, se fez ouvir e mereceu a graça de ver a porta abrir-se e, recortada na mesma, surgir a figura maciça do pintor, com ar incomodado e interrogativo.
Sem espaço para tréguas, Francisco disparou, ao mesmo tempo que acenava furiosamente o Moleskine, qual assassina arma de arremesso:
- Já sei de tudo, está aqui, não há como aldrabar. Onde está ela?
Ricardo da Luz, mais ou menos imune a cenas destas, por virtude dum rico passado, mostrou-se calmo, ao mesmo tempo que perguntava:
- Ela, quem?
- Rita, a Rita …
- Ah!, a Rita, a Rita está lá dentro, ainda não acabámos. Se quer falar com ela, entre, mas, por favor acalme-se, seja lá o que for que tiver acontecido. Olhe que ela é muito sensível.
Francisco já irrompera, impetuosamente, no atelier, indo directo à rapariga que jazia, inerte, numa chaise longue,  forrada em tecido animal print.
- Estás, então, a… -começou e interrompeu-se Francisco, ao ver que esta não era Rita.
- Estou o quê?- interveio ela, num misto de displicência e incómodo.
- Este Senhor, cujo nome não sei, quer falar contigo - interrompeu Ricardo da Luz.
- Não é com esta, é com a Rita, já lhe disse.
- Esta é a Rita, pelo menos a única Rita que está aqui, a modelo que contratei para a tela que aí vê.
- Ai é? E então a outra, esta, a que Você desenhou aqui e sabe-se lá mais o quê?
- Esta? Que eu desenhei? – perguntou Ricardo da Luz, ao mesmo tempo que tirava o Moleskine das mãos de Francisco.
- Sei lá dessa? Você não percebe nada de arte, pois não? Então eu alguma vez era capaz de fazer uns desenhos tão fracos? Isto é obra de amador e eu sou um Mestre! E agora, se não tem mais nada a fazer aqui, vá-se embora, que já perturbou quanto baste, ok? Só mais uma coisa: para sua informação, não me chamo Janete.
Dito isto, soltou uma gargalhada, à qual aquela Rita se associou com gosto, ao mesmo tempo que pensava, divertida, - vá lá, que desta vez não era nada contigo.
Francisco, como que fulminado pela enormidade da sua estúpida precipitação, desapareceu na rua, sem coragem sequer para pedir desculpa, enquanto as gargalhadas dos outros dois lhe mordiam as canelas, qual cão atiçado por dono ruim.
Já se fizera escuro, mas o maldito calor não amainara, o caminho até casa revelou-se doloroso. Tentativas várias de por as ideias em ordem resultaram em vão.
Depois de um duche rápido, deixou-se cair na cama, envolvido em surdas e contraditórias emoções e, dominado por um único desejo, mergulhou num sono agitado.
Só pretendia regressar ao sossego do seu desconsolado vazio.
Era um desejo desesperado, mas o desespero tem suas formas próprias de trazer a calma, sussurrava alguém, ao longe, cada vez mais longe, mais longe, longe.

(Nota: Prevê-se continuar, de alguma maneira, em algum lugar e em algum tempo)

 


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