sábado, 31 de agosto de 2013

O MOLESKINE DE JANETE (VII)


(Continuação)
 
O sussurro esvaiu-se, lentamente, cedendo lugar a um espaço em branco, liso e calmo, mas de curta duração, pois, em breve, ascendeu um contínuo bruaá, proveniente duma espécie de ventoinha de tipo colonial, suspensa do tecto, mesmo sobre a cabeça de Francisco. Estranhamente, em vez de frio, dispersava calor e, em vez de pás metálicas, era constituída por folhas de papel branco, rabiscadas com inúmeros desenhos, que, na castanha escuridão envolvente, não se deixavam decifrar.
 
A ventoinha ou fosse lá o que fosse, girava cada vez mais depressa, produzia cada vez mais ruído, distribuía cada vez mais calor e descia assustadoramente, ameaçando perfurar o corpo de Francisco, cujo coração batia em desmedido alvoroço, estrangulando-lhe a cabeça numa tontura vertiginosa.

Na urgência de escapar, precipitou-se pela abertura que, subitamente, se desenhou no soalho, indo parar, com estrondo, à divisão inferior, nada mais nada menos que o quarto da vizinha de baixo. Sentiu algum alívio ao estatelar-se em cama alheia, vendo que esta estava vazia, mas foi alívio de pouca duração, porquanto, assim como ele, também a ventoinha se precipitara em alucinante descida, à medida que as enormes folhas servindo de pás se desprendiam, revelando, na proximidade dum remoinho, o desenho de Rita, liberto do Moleskine e, como por artes mágicas, ganhando forma e corpo de mulher, aterrando sobre o agitado e estupefacto corpo de Francisco. 

O desespero tem suas formas próprias de trazer até nós aquilo que desejamos, repetia alguém, ao longe, à medida que a ventoinha se transmutava em Rita, se não de alma, pelo menos de corpo. 

Tudo isto veio à memória de Francisco, enquanto, olhando as fundas e escuras olheiras frente ao espelho, lavava meticulosamente os dentes, após ter engolido, à pressa, uma torrada barrada com compota de frutos silvestres e um café Nespresso. Era tudo tão irreal, sentia-se tão cansado e frustrado, que, num repente de indignação, decidiu agir. Telefonaria aos amigos João e Diogo, para combinar uma noitada, era isso. Estava na altura de se deixar de divagações - qual Moleskine, qual Janete, qual pintor, Ricardo da Luz ou da Sombra, qual Rita, sobretudo, qual Rita - e de voltar a pôr-se em campo. O espírito reclamava e o corpo não lhe ficava atrás. 

Bem vistas as coisas, nem sei o que tenho andado para aqui a fazer, durante este tempo todo, estes malditos três últimos meses. Se me pedissem para escrever uma autobiografia, seguramente, este capítulo ficava em branco – disse para consigo próprio. 

Era sexta-feira, os amigos estavam disponíveis e, por volta das 22H, lá se encontraram para jantar no Haruki, restaurante japonês da moda, donde seguiram até uma discoteca super fashion, onde Francisco (e quem o acompanhasse) gozava de tratamento preferencial, visto ter sido o mentor da respectiva campanha publicitária de lançamento. 

Por volta das 02H, estavam encostados ao balcão, comentando desatentamente a última corrida de fórmula 1 – de que eram os três adeptos – e observando, com indisfarçada atenção, o que se passava em redor. 

Numa mesa próxima, acabavam de se instalar três jovens mulheres, aí pelos 30 anos, como eles, qualquer delas a mais produzida, uma delas a mais sexy, outra, a mais atrevida, sempre com os olhos brilhantes a navegar pelos horizontes próximos e longínquos, e a terceira, a mais recatada, por sinal, a mais bonita. 

Diogo, o típico extrovertido, começou a faiscar olhares na direcção da segunda, e, sem perder tempo, pegou no seu copo de gin tónico e dirigiu-se à mesa delas, seguido dos outros dois, que desafiara, em surdina. 

O entendimento visual estabelecido aboliu quaisquer fronteiras que pudessem ter existido e, no segundo seguinte, os seis rodeavam a mesa, distribuindo-se em apresentações e comentários de circunstância, ao mesmo tempo que se distribuíam entre si, tendo-se Francisco envolvido em interessante conversa com Filipa, a mais bonita, produtora de moda, devoradora de livros e outros produtos culturais, como ele. 

Assim, enquanto Diogo e Paula, a mais atrevida, se movimentavam impiedosamente ao ritmo da sensacional batida house de C.D. John, o disc jockey de moda, e João e Luísa, sem qualquer ponto em comum, evoluíam, desirmanados, pela pista de dança, Francisco e Filipa, rapidamente identificados nos seus comuns interesses, acharam por bem procurar um sítio mais tranquilo, pelo que partiram, com fugidios sinais de adeus aos outros. 

E foi assim que, ao cabo de lentas deambulações, acabaram a noite em casa desta, um pequeno mas elegante loft, de decoração minimalista, com vista para qualquer sítio - para o mar, mas isso Francisco só viria a constatar no dia seguinte, quando acordou ao som das ondas quase entrando pela parede de vidro de alto a baixo e com um magnífico pequeno almoço servido em feminino tabuleiro, todo louça cool e flor abandonada, como por acaso, que Filipa, sorridente e descontraída, colocava a seu lado, sobre a cama. 

Tomaram, pois, o seu primeiro pequeno almoço juntos, entre saudosas recordações da noite anterior, mas que não havia por que devessem ser saudosas, pois podiam sempre actualizar o estado ou os estados vários pelos quais passaram, sem deverem satisfações a ninguém. Pelo menos, era o que pensavam e foi, justamente, o que fizeram e foram fazendo, até o fim de semana terminar e cada um ter de retomar o seu intenso ritmo de trabalho. 

Ao despedirem-se, pelo fim da tarde de Domingo (Filipa tinha invocado a necessidade de preparar uma importante reunião para segunda-feira), enlaçaram-se e beijaram-se demoradamente e Francisco convidou Filipa para almoçar com ele no dia seguinte, mas ela, desprendendo-se, com lentidão, respondeu: 

- Lamento, mas amanhã parto em viagem de trabalho. Durante uma semana. Quando voltar, telefono-te um mando-te um SMS. 

- Um SMS não, por favor – respondeu Francisco, um pouco fora de tom e de controlo - telefona-me, aliás, eu telefono-te, posso telefonar-te amanhã? 

Filipa, não querendo ser indiscreta em relação àquela proibição de SMS, engendrou logo a teoria de que ele era comprometido e receava ser apanhado por via dalguma mensagem extraviada, mas, disfarçando a sua inquietação, melhor, desconfiança, e pretendendo resguardar-se, limitou-se a responder: 

- É melhor não, afinal, vou estar ocupadíssima, milhentas reuniões, depois ligo-te, quando voltar. 

- Está bem, como achares melhor, não quero prejudicar o teu trabalho - respondeu Francisco, ao mesmo tempo que pensava, ora bolas, agora que isto parecia estar a correr tão bem, sai-me outra Miss Enigma. Às tantas é comprometida e é por isso que não quer ser surpreendida pela minha chamada. 

E assim, aquele aparentemente auspicioso início de cumplicidade, construída em menos de dois dias, desvaneceu-se em menos de dois minutos! 

Ela ainda lhe acenou um adeus, mas ele nem se voltou para retribuir, pese embora morresse de vontade de o fazer. 

What a fuck! - Exclamou ele para consigo próprio. Estava já a caminho de casa e, sem querer, veio-lhe á ideia o Moleskine. 

O raio do Moleskine tem suas formas próprias de me atazanar – pensou, ainda, antes de atender o telemóvel, que, entretanto, desatinara a alardear o seu som desesperadamente.



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