domingo, 15 de setembro de 2013

COPENHAGA


O meu coração e o meu espírito e não sei se mais alguma coisa em mim estavam partidos, melhor, completamente estilhaçados.
 
Falar de solidão não chegaria, nem pouco mais ou menos, até porque, já nessa altura, a solidão era o meu estado natural. E o que é natural não tem por que se sofrer, vive-se e pronto, aliás, convive-se.
 
Tratava-se de qualquer coisa de muito mais profundo, uma fenda que se abrira, cavando um vazio do tamanho do universo, muito maior do que o tamanho do universo, ao mesmo tempo que impunha um peso descomunal, perto do qual qualquer opressão até aí sentida não representava senão a gramagem duma aragem fresca e breve.
 
Tudo se tinha passado no espaço que vai dum fim de tarde a um início de manhã, espaço maldito, esse, culminando nas breves palavras que trocámos, via telemóvel, à estúpida distância de 400 Km, duma grande aflição e duma certeza antecipada, a confirmar umas horas mais tarde. Mas o momento foi aquele, o do fim do telefonema. Significando que aquelas palavras, últimas, foram para mim. Dou graças por isso - embora não saiba a quem ou ao quê -, pois, sem esse amargo e desesperado conforto, tudo teria sido ainda mais absurdo. A graça dumas últimas palavras, murmúrio já quase imperceptível, que ainda recordo no rebordo dos seus breves pormenores, mas que, por pudor, não reproduzo. 
 
Seguiram-se os trâmites habituais, durante os quais senti um enigma a que dei o nome de tão perto, tão longe, porque, às vezes, dar nome às coisas revela-se imprescindível, ao menos  para alcançar a rendição, a que, mais cedo ou mais tarde, teremos de chegar, caso queiramos sobreviver - e sobreviver era coisa que, naqueles momentos, eu não sabia se iria ou não conseguir.
 
Explico-me: poder, ainda, tocar um corpo, senti-lo tão próximo, embora frio, gelado, e, simultaneamente, já não poder, nunca mais, alcançar o que o habitou, fosse lá o que fosse, mas que tinha traduções as mais várias, como um sorriso doce, uma amabilidade natural e espontânea, uma disponibilidade sem limites, um riso e um sentido de humor contagiantes, etc., etc., etc. É isto o tão perto (ainda que pelo espaço de menos de 24 horas) e tão longe, definitivamente tão longe,  forever.
 
E a certeza de que a eternidade não passa da vigília da memória e a descrença num amanhã de reencontro.
 
Estava previsto que, na semana seguinte, eu viajaria para a Suécia, Dinamarca e Noruega. Cancelei. Obviamente, cancelei.
 
Interrompi as férias e retomei o trabalho, pois a minha cabeça reclamava, desesperadamente, uma imposição exigente e determinada, capaz de me afastar daquele estado de desgosto e, sobretudo, de absurdo, em que mergulhara.
 
Uma coisa é saber que a morte é um facto da vida - aliás, o único que podemos dar por adquirido, a par com o seu irmão gémeo, o nascimento -, outra, bem diferente, é aceitar que nos morra alguém do coração, alguém tamanhamente importante para nós; isso já é coisa completamente diferente. Por muito que a racionalidade pura se surpreenda com este atavismo, mas a racionalidade, como também sabemos, não mora só, vive de mãos dadas com a emoção, embora, por vezes, à beira do divórcio ou da violência doméstica. Vidas!
 
Passaram-se uns meses, exactamente 4, talvez já não me assaltasse aquela dúvida, se estaria viva ou morta, eu (sim, eu!).
 
Achei, então, ser tempo de ir curtir mágoas para outro lugar, um luxo, pois.
 
Parti para Copenhaga, por uns 5 ou 6 dias, já não me lembro.
 
O meu estado de espírito era, precisamente, o que comecei por descrever: o meu coração e o meu espírito e não sei se mais alguma coisa em mim estavam partidos, melhor, completamente estilhaçados.
 
E estava, mesmo, só (e não me refiro a solidão). Quero dizer, desprotegida, desamparada e, seguramente, desamada. Só não estava desarmada, porque a vida se encarrega de nos fazer guerreiros.
 
Os braços de Copenhaga receberam-me muito bem e proporcionaram-me conforto, o conforto da divagação, outro luxo.
 
Era Novembro, estava frio, mas eu ia possuída dum frio maior.
 
Amei o cinzento do céu e da água, amei a (com)postura neutra dos dinamarqueses, amei as suas bicicletas e carrinhos de bebés,  amei perder-me em passeios a pé, amei visitar museus e monumentos, amei sair da cidade, atravessar campos planos e bem ordenados, ao encontro de Helsingor, onde visitei o castelo de Kronborg - local da acção de Hamlet, de Shakespeare -, amei regressar à cidade, ao anoitecer, pela costa, vendo, dum lado, doces prados perderem-se no mar, e, do outro, janelas iluminadas, livres de cortinados, oferecendo a quem quisesse a intimidade de bonitas casas, uma das quais, a de karen Blixen. 
 
Um dia destes, dei comigo a trocar impressões sobre Copenhaga. Daí a rememorar esta ida lá, sobretudo, a sua circunstância, foi um curto passo. E, depois, não consegui guardar o que senti. Apeteceu-me este registo.
 
Ao fim de 15 anos, mas só agora, já vou dando comigo sem pensar nela todos os dias.
 
De lá, de Copenhaga, ainda Lhe escrevi um postal, como era hábito, mas não cheguei a colocá-lo no correio.
 
 Afinal, a Mãe não iria poder recebê-lo. Nunca mais.
 
Já voltei a Copenhaga. Continuei a amar.
 
 
 
 
 

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