sábado, 19 de outubro de 2013

HANNAH ARENDT

Num mundo e, particularmente, num País em que as pessoas cada vez menos se dão ao trabalho de pensar - ou assim parece - é muito bem vindo o filme HANNAH ARENDT, um filme sobre o PENSAMENTO
 
Quando da 2ª Guerra Mundial, H.A., Judia alemã, conseguiu evadir-se dum campo de detenção - eufemismo para campo de concentração, utilizado pelos colaboracionistas franceses -  situado em Gurs, França, tendo-se estabelecido nos EUA, onde publicou, entre outras obras de filosofia política, As Origens do Totalitarismo, e onde leccionou em diversas Universidades.
 
Fez a cobertura do julgamento, em Jerusalém, do nazi Adolf  Eichmann, para o The New Yorkeratravés de cinco artigos - reunidos no livro Eichmann em Jerusalém.    
 
O filme trata, justamente, do pensamento então desenvolvido por H.A. sobre Eichmann e sobre a alegada colaboração de alguns líderes judeus com os nazis, bem como da forte polémica a propósito gerada no seio da Comunidade intelectual e, em particular, Judaica.
 
Em oposição ao pensamento dominante, H.A. não considera Eichmann como a personificação do demónio, antes o remetendo à condição da mais banal das normalidades, a do homem comum, zeloso e acrítico cumpridor de ordens, (logo) alheio à compreensão ou à consideração da fronteira entre o bem e o mal.  Portanto, um homem destituído de pensamento. E pertencente à categoria de homens que maiores males causam ao mundo.

Simultaneamente, quando, em sua defesa, explica as suas ideias, não deixa de reconhecer que o extermínio dos Judeus foi um crime contra a Humanidade (visto os Judeus serem humanos), do qual, mesmo sem o alegado colaboracionismo de alguns, não poderiam ter-se defendido.

Somos, pois, convocados a reflectir sobre o pensamento da Filósofa e daí eu ter começado por dizer tratar-se dum filme sobre o pensamento, desafiando, consequentemente, o exercício do pensamento.

A tese de H.A., eventualmente atraente na pureza da sua abstracção - enquanto produto puramente intelectual -, comporta, em meu entender, algumas lacunas e contradições.

Em primeiro lugar, a aceitação de que o cego cumprimento do dever, erigido em critério de referência do comportamento do homem normal, o verdadeiro burocrata, é de molde a obnubilar a capacidade de discernimento entre o bem e o mal, carece, em absoluto, de demonstração; aliás, se não num plano mais elevado - que nos levaria, por exemplo, às questões da ponderação do livre arbítrio e a outras mais -, ao menos no plano factual é, mesmo, desmentida, como o comprova, v.g., o facto de, dum modo geral, os nazis julgados em Nuremberga usarem como estratégia de defesa a distorção da realidade - extermínio dos Judeus -, com o objectivo de se demarcarem da mesma que, todavia, sem a sua acção conhecedora e esclarecida, não poderia ter ocorrido. Tal estratégia não será, por si só, o reconhecimento de que bem sabiam ter agido do lado errado da possibilidade de escolha, o do mal? Abro aqui um parêntesis para referir que um esclarecedor testemunho desta realidade pode encontrar-se em NUREMBERG DIARY, de Gustave Gilbert, psicólogo militar junto da prisão em que aguardavam julgamento os criminosos nazis julgados em Nuremberga. Aí são recolhidas as entrevistas e conversas informais que com os mesmos manteve, a par das suas notas pessoais.

Por outro lado, a tese de H.A., levada às suas extremas consequências, não deveria conduzir à total desresponsabilização social - mesmo esquecendo a pessoal - do tal homem normal - por cujas mãos, todavia e como acentua, se produzem os piores males do mundo? Seria isso justo ou sequer admissível? 

Não me parece, nem parece tratar-se de consequência aceite pela própria, já que, por um lado, afirmou ter ficado satisfeita com a condenação de Eichmann e, por outro lado, reconheceu  ter-se tratado dum crime contra a Humanidade. Caso para perguntar, um crime sem autores, um crime sem responsáveis?

Por outro lado, independentemente da sua bondade intrínseca,  afigura-se-me que certos exercícios puramente intelectuais - plano em que a mente, na sua plasticidade e habilidade, parece vocacionada para aceitar um infinito de teses e o seu contrário... - deverão, talvez, manter-se no resguardo dos seus pensadores, quanto mais não seja, por oferecerem a  susceptibilidade de branqueamento de horrores, que, nunca devendo ter assombrado a Humanidade, ao menos não convém que se repitam. E de horrores destes ou doutros já a Humanidade está farta ou deveria estar, caso pensasse ... com conhecimento e sentido da consequência.

Mas isto sou eu a falar. E não sou filósofa. Nem judia (tanto quanto sei).


Nota: Não conheço a obra da H.A., baseando a minha análise naquilo que captei do filme.  
 
 
 

2 comentários:

  1. Gostei do modo como escreves, tocas em alguns aspectos dominantes e até muito discutidos sobre a questão da Liberdade e da Responsabilidade moral. Aspectos complexos com os quais me tenho debatido toda a minha vida, não conseguindo deixar de atender a um lado meu mais relativista que diz que, a um nível máximo, somos todos inocentes por sermos todos determinados e por termos todos algum nível de opacidade mental. Percebo que estes pensamentos devam ser pouco "espalhados", como dizes no teu texto, se bem que não podem deixar de ser publicados, pois a Verdade é soberana... coisa estranha aos espirituais e também aos pós-modernos, para os quais a Ética deve dirigir o saber e o conhecimento sempre comprometido da realidade... coisa não estranha para o Nietzsche e até os homens da Ciência, para os quais a Verdade deve ser encarada em independência do seu maior ou menor prejuízo ético-moral. Eu concordo com ambas as possibilidades e transfiro as duas para a "confusão" da minha própria obra, uma forma de estar que tu própria criticas quando falas no "infinito de teses e o seu contrário"... coisa que considero inevitável ao terreno do filósofo comprometido com a busca da Verdade e que, apesar de tudo, não é o terreno de muitos filósofos da História oficial da Filosofia ocidental, porque muitos deles se comprometeram oficialmente com uma perspectiva específica, que era muitas vezes uma forma de contrariar a dominante e oficial da época, mas que tende a ser inclusa da visão Relativista dos tempos contemporâneos... Enfim, o texto já vai longo, e ficam as ideias e aquilo que nos une a todos: o sublinhar da importância do Pensar como acto fundamental, diria até... demiúrgico, porque se trata de dar forma ao corpo de Deus... o tal que não somos desveladamente e que, portanto, cria o Relativismo.

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    1. Muito obrigada, Luís Coelho. Uma verdadeira lição de Filosofia, para uma não filósofa (eu avisei!). Não me parece que, no essencial, estejamos em desacordo. Ao referir o "infinito de teses e o seu contrário" não pretendi emitir um juízo crítico; apenas a constatação da possibilidade de tudo ser, permanentemente, posto em causa. Não é isso o verdadeiro domínio da liberdade do pensamento, em toda a sua dimensão exploratória? A que, num extremo nos pode levar a admitir e, no seu oposto a negar o livre arbítrio, o fundamento (ou não) da inocência/responsabilidade? Também não pretendi defender qualquer tipo de "censura". O problema é que os que se dão ao trabalho de pensar - ou têm esse privilégio - devem saber que, entre os destinatários das suas palavras, se encontram multidões de não pensantes, os tais homens "normais", a quem certas palavras podem servir de vis pretextos.Bluegirl

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