quarta-feira, 2 de outubro de 2013

NOVOS JUDEUS? NOVOS NEGROS?

 
E se, de repente, um ser humano desatasse a varrer para o lixo as emoções que produz e com as quais não quer, não sabe ou não consegue enfrentar-se? E se, não satisfeito com tal acto de pura e dura rejeição, determinasse arbitrariamente, convicto dum qualquer insondável poder e artilhado com a ignorância das ignorâncias, a insensibilidade das insensibilidades e a brutalidade das brutalidades, que essas emoções deveriam ficar eternamente confinadas ao abandono do lixo para onde as varreu? E se, para cúmulo, se vangloriasse do seu acto, atribuindo-lhe como justificação, não querer ser contaminado pelas ditas e pretender  defendê-las sabe-se lá de que ameaças, coitadas, grande consideração?

Entendo que, se tal sucedesse, esse ser humano (?) só podia estar doido, completamente desfasado da sua própria realidade, parte da sua essência, pela qual é responsável e que necessita compreender para se compreender e poder interagir com os seus semelhantes. Tal comportamento estaria, em minha modesta opinião, muito para além da mais aterradora ignorância, insensibilidade, estupidez, arbitrariedade, maldade, como  se lhe queira chamar. Tratar-se-ia de loucura.

Então o que dizer duma sociedade que produz aqueles despojos humanos - todavia, não despojados de alma e humanidade - aos quais, mais ou menos clinicamente, convencionou designar de Sem-abrigo? Que se desresponsabiliza deles, ignorando-os, enxotando-os, varrendo-os para o pior dos lixos (para ser mais realista)? E que, para cúmulo, determina a sua criminalização e lhes estabelece zonas de interdição de acesso, como se fez, noutras alturas, não assim tão remotas,  por exemplo, aos Judeus e aos Negros? E que se fundamenta na protecção de valores sociais (?) e, cúmulo dos cúmulos, na própria protecção dos visados, que, com a aproximação do Inverno, podem morrer de frio?

Quem não saiba do que estou a falar, julgará que entrei em delírio. Pois não. No caso, infelizmente! As medidas acabadas de referir - criminalização e delimitação de zonas de interdição de acesso aos Sem-abrigo - acabam de ser decretadas pelo Parlamento Húngaro, logo, num País europeu, no seio da União Europeia, no seio dum mundo onde, quanto mais não fosse, eu julgava vigorar uma Declaração Universal dos Direitos do Homem e estar ultrapassada a fase da mais negra das barbáries.

Esqueci-me de responder à pergunta que eu própria formulei. Faço-o agora: uma tal sociedade só pode ter ultrapassado as barreiras da mais aterradora ignorância, insensibilidade, estupidez, arbitrariedade, maldade, como se lhe quiser chamar, à luz de qualquer critério racional e decente. Uma tal sociedade só pode estar louca, perigosamente louca.
 
Como o estará qualquer sociedade que não reaja adequadamente a uma tal provocação da loucura.

Calhou-me ouvir esta notícia, hoje, na TSF, em mais uma magnífica crónica (Sinais) de Fernando Alves.  Fiquei seriamente indignada e indisposta. E não podia deixar de me manifestar, ainda que só desta forma, visto não ter outra ao meu alcance.
 
Outros pensamentos me ocorrem.
 
Virá a lei a ser aperfeiçoada, mediante a criação de campos de concentração para os Sem-abrigo, onde os aguarda o destino que tocou aos Judeus, sob o alto patrocínio daquele louco e de todos os loucos que estiveram com ele e de todo um povo que se deixou ficar calado ou calar e de todos os outros povos que fingiram ignorar?
 
Quantos mais Martin Luther King(s), Nelson Mandela(s), Aristides de Sousa Mendes  serão ainda necessários para confrontar a loucura do mundo?
 
Também tenho uma resposta: a loucura do mundo só será erradicada quando todos e cada um de nós for MLK, NM, ASM ou alguns outros (não muitos) que, de tempos a tempos, conseguem marcar a diferença, quais desvios correctores no percurso evolutivo da espécie humana. Depende, pois, de cada um de nós!

Enquanto escrevo, estou sentada frente ao Tejo, escurece, quase 20H, as luzes já brilham na outra margem e dou comigo a pensar: a quantidade de água deste maravilhoso rio, mesmo junta à do oceano em que se funde e à de todos os oceanos da Terra, não representa mais do que a ínfima partícula duma lágrima, comparada com as lágrimas que já correram, correm e hão-de correr  neste mundo, ao menos enquanto se não erradicar esta forma de loucura, porventura a pior de todas.
 
 




 




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