sábado, 30 de novembro de 2013

CUQUÊ? CUQUÊ?


Madrugada de hoje, cerca das três. Minutos antes tinha apagado a luz, após quase três horas de leitura filosófica, tipo zapping, começando nos estóicos, passando pelo pensamento cristão e terminando nas luzes renascentistas, puro flash sobre o caos cósmico, contraste absoluto com todo o antecedente.
 
Preparava-me para dormir, porém os famigerados neurónios, desaustinados, não concordaram, mais parecia que alguém lhes tinha dado corda, vá-se lá saber porquê desataram a traçar o balanço do ano, coisa que, aliás, sempre os proibi de fazer, pois não vejo qualquer interesse em balanços, nem, aliás, sou contabilista. Vai daí, antes que o resultado se perdesse, voltei a acender a luz, sentei-me na cama, registei aplicadamente o resumo, e pensei, ao menos já tenho matéria para publicar em 31 de Dezembro, está quase aí e não antevejo grandes mudanças até lá, embora nunca se saiba, e sempre fico alinhada com a bitola da estupidez jornalística que ama mastigar factos passados até à mais desesperante exaustão
 
Terminado o registo, vi uma avelã com a casca meia aberta a fitar-me, como quem pisca um olho, e não resisti. Perdido por cem, perdido por mil, vou ver o que esta tem para me dizer. Entenda-se que esta era uma revista em cuja capa repousava outonalmente a dita avelã. Bem sabia eu que, por essa altura, já devia estar a dormir, quanto mais não fosse para dar ao colagénio e à elastina a sua hipótese de recuperação. Mas a tentação foi mais forte. Aliás, estou convencida que foi coisa do destino, ciente de que eu precisava de me rir um bocado - o destino tem destas coisas, é castigador mas generoso, primeiro põe-nos em situação de precisar de rir, depois fornece-nos a pílula hilariante, bem haja.
 
Abri a revista ao calhas, calhou na página 5, lado direito, ornamentada com a fotografia dum livro, com o seguinte título :
 
 "CULAÇO E CUFINO"!
 
(Notas: o realce das segundas sílabas não é invenção minha,  reproduz o original. Autor: Paulo M. Coelho. Imagem da capa: pescoço dum padre, tingido por uma boca vermelha de baton). 
 
Li e reli o título e pensei se não estaria a sofrer um AVC, pois não atinei com o sentido daquelas palavras (o mais próximo que me lembrei da primeira foi colaço, da segunda nada me ocorreu). Também não eram horas de ir consultar o dicionário (fi-lo, entretanto, sem êxito, embora tenha encontrado palavras muito interessantes, como cúfico, cujoeiro  e culicídeos, cujos significados, todos decentes, não cabe aqui adiantar, de resto Vocês devem saber).
 
Passei à leitura da notícia do lançamento do livro, mencionando a respectiva apresentação pelo DR. Tomé Jardim, segundo o qual se trata dum "livro de muito agradável leitura, com humor", consistindo numa "alegoria referente à vida de dois irmãos que representam a essência do povo português".
 
Ocorreu, então, o verdadeiro momento de revelação, tratava-se, afinal, dos nomes dos irmãos, o CULAÇO e o CUFINO (aqui a responsabilidade pelo realce da 1ª sílaba já é minha), ilustres representantes da alma lusitana. E, como se não bastasse, a notícia prosseguia com a menção de que o evento tinha contado com uma "plateia atenta e interessada" e de que a "assistência fez perguntas sobre a arte da escrita e qual a diferença entre a prosa e a poesia".
 
Foi aqui que comecei a imaginar miríades de Srs. e Srs.ª Culaços, Cufinos, Cuisto, Cuaquilo, Cuqualquercoisa e Cuetc., espalhados pela plateia, rendidos à eloquência do Dr. CuTomé, apresentador, e embasbacados perante a resposta do autor do livro, P. M. CuCoelho, a diferença entre prosa e poesia é que a prosa é mais laça e a poesia mais fina ou vice-versa, V. Excs.ª decidem.
 
Este universo não só me deixou fascinada, como me provocou um dos mais desatinados e monumentais ataques de riso de que há memória.
 
Em pleno processo hilariante, o quarto inferior esquerdo da mesma página atraiu o meu olhar, qual chocolate Godiva, e fui confrontada com a notícia da mudança dalguns serviços do Cofre de Previdência, v.g., o "sítio do Cofre", da Rua dos Sapateiros para as instalações remodeladas da Rua da Prata, sendo que, "Os trabalhadores para ali deslocados aceitaram a mudança com entusiasmo  pois podem usufruir de ... novas instalações sanitárias ...".    
 
Foi então que comecei a imaginar o "sítio do cofre", que pensava ser uma entidade informática, logo, incorpórea, completamente empenhado na mudança, entusiasmadíssimo, a atravessar as ruas da baixa carregado de pastas de megabytes, para se instalar à secretária dum qualquer computador do novo destino. Mas o pior foi a visualização em 3D dum aparatoso desfile de Srs. e Srsª Culaços, Cufinos, Culargos, Cucaídos, Cugordos, Cumagros e um enorme etc. de C., a celebrarem, aparatosamente, as renovadas instalações sanitárias da Rua da Prata.
 
E dum ataque de riso desenfreado passei a outro ataque de riso desenfreado e, mesmo depois de ter apagado a luz, não parava de rir, de cada vez que visualizava a cena dos múltiplos Culaços e Cufinos conformadores da alma pátria, espantados com a metafísica distinção entre prosa e poesia e com o encanto das retretes do Cofre de Previdência.
 
Agradeço à Revista COFRE (título criativo, este!), do Cofre de Previdência dos Funcionários e Agentes do Estado, o extraordinário material sem o qual este post nunca teria sido possível, nem - e mais importante - os meus impagáveis (e rejuvenescedores, espero) ataques de riso.     
 
Só mais umas coisinhas:
 
Provocação 1: E depois não querem ter má fama e que lhes baixem os salários e pensões!
 
Provocação 2: E depois não há Culaço ou Cufino que não se insurja contra aquela capa do New York Times!
 
Provocação 3 (em jeito de sugestão): E se o Dr. Tomé Jardim, ilustre Presidente do COFRE, mandasse guarnecer as renovadas instalações sanitárias da Rua da Prata com as preciosas revistas Cofre e, já agora, com vários prints do OE 2014? 
 
 
  

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

IMAGINAÇÃO


Falta de imaginação é mente sem propósito

Destituída de finalidade

Podia acordar, mas não acorda

Podia soltar-se,  mas não se solta

Podia voar e transgredir-se, mas não se transgride nem voa

Sobretudo isto

Poderia voar para onde e transgredir o quê, uma mente sem imaginação?

Nada e para distância nenhuma

Se pudesse

Se pudesse já seria uma mente com imaginação

Desnecessário falar dela

Até porque

A imaginação não cabe numa só mente nem, porventura, em mente nenhuma

Nem actua sequer pelos caminhos duma simples mente

Real infinito de possibilidades

Itinerância de desconhecidos vários

A possibilidade mesma, feita ser, objecto, ideia, divagação, trânsito, distância

Tudo o mais

A imaginação está muito para além de qualquer instrumento de acção

É puro movimento imaterial

Apenas o visível que a invisibilidade permite revelar

E é muito, podendo ser tudo

Mistério oferecido sem sombra de ritual

Sem explicação, sem origem, sem destino, sem território definido, sem país ou pátria ou justificação

Sem qualquer limite ou coisa afim

Por isso se chama imaginação

Mas pode chamar-se o que se quiser

Desde que não seja: não

A imaginação é o contrário de não

Infinito de possibilidades, promessas e outras coisas mais

Todas as categorias do possível contidas no impossível

Ainda assim, fora dos limites da categorização

Então vamos imaginar como será nem sequer imaginar

Mas não, porque a única proibição da imaginação é: não.






domingo, 24 de novembro de 2013

PLANO QUÊ?


Se é verdade que o governo não tem plano B face à eventual declaração de inconstitucionalidade da lei que impõe a redução das pensões, com efeitos retroactivos, isso significa o quê?
 
a) Que só sabe governar à revelia da Constituição?
 
b) Que vai demitir-se, caso o TC declare tal inconstitucionalidade?
 
c) Hipóteses a) + b)?  
 
A menos que:
 
d) Acalente a secreta esperança de que uma razoável percentagem de reformados (como dizia o outro, é só fazer as contas) seja fulminada com a síndrome de morte súbita (podendo os rigores do frio invernal constituir uma preciosa ajuda para a alavancagem desta hipótese).
 
Por outro lado, se é verdade que o governo, face ao mesmo cenário, tem já na manga uma nova subida de impostos, pergunto-me:
 
e) O IRS, maxime o incidente sobre os rendimentos do trabalho, vai voltar a subir (tipo, agravamento da situação actual, em que as pessoas, em vez de descontarem sobre o que ganham, passam a ganhar as sobras daquilo que descontam para impostos)?
 
f) E o IRC sempre vai baixar (em benefício das grandes empresas)?
 
Claro que isto são meras especulações e, como tal, fico-me por aqui, pois, por agora, não me apetece esgotar o alfabeto de hipóteses disponíveis. Cada uma melhor do que a anterior, aliás.  
 
Só mais uma coisa, em jeito de interrogação:
 
g) Irá o governo criar um velhão, eu explico, uma espécie de vidrão, destinado à recolha mas sem lugar a reciclagem (já há novos que cheguem, em situação ou em vias de desemprego ou exportação), de reformados (velhos), de preferência antes do estouro definitivo dos dinheiritos da Segurança Social, provenientes dos descontos dos ditos ex-cidadãos (quer dizer, reformados/velhos)?
 
Hum! Não sei não!
 
 
 
 
 

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

GUIÃO DUMA SEMANA PERDIDA


I-ANTECEDENTES
  • ENDÓGENOS: natureza de flor de estufa. Ressente-se com as variações climatéricas (e outras, mas não são para aqui chamadas), especialmente quando bruscas.
  • EXÓGENOS: acentuada descida da temperatura; frio súbito.  
II-DIAGNÓSTICO
  • Diz (o médico) que é sinusite ("sinosite", como já ouvi dizer, mas também já ouvi, viemos a S. Petersburgo, de propósito, para ver o "Hermitrage"). Põe-me a antibiótico e a outras coisas, designadamente, muito soro fisiológico (aquilo não é água?). Obedeço, encharco o nariz de soro fisiológico como se não houvesse amanhã (ou sede na terra). Desliza como álcool em boca de bêbado, desaguando na garganta, como álcool de bêbado no estomago. Presumo, pois não sou bêbada, ao menos até ver, nunca digas deste vinho não beberei. Só uma vez, no máximo duas (mas da segunda já não me lembro, é como se não existisse), apanhei uma bebedeira, chamava-se pifo, não sei se ainda se chama. Serviu-me de emenda (exceptuada a tal segunda que talvez não tenha existido). Não gostei nada de ter chegado a casa amparada, de me estatelar na cama e ver o tecto feito montanha russa, de cambalear para ir vomitar (várias vezes) e de, no dia seguinte, mal refeita, ter ido trabalhar em equilíbrio instável (não por cambalear, mas de pura má disposição e náusea). Um dia destes contei este eloquente episódio aos meus queridos sobrinhos-netos, com o objectivo de os desmotivar em relação a semelhantes extremos. Adoraram a história e fartaram-se de insistir para lhes contar como foi da segunda vez, mas, sinceramente, não me lembrava. Repeti a primeira e continuaram a adorar e a fazer perguntas. Espero que o interesse despertado não lhes dê para experimentar. E, já agora, que os pais não leiam isto.
  • Chego a casa, muito contente por começar a tomar o antibiótico (isto agora vai ser tiro e queda, a sinusite a dar o fora e eu livre para a evasão), preparo-me para me refastelar e continuar aquela magnífica peça literária que vai ser O Moleskine de Janete e eis que, certeira como uma faca afiada, ela me ataca o fundo esquerdo das costas, descendo pela correspondente perna. Já me vejo a caminho das Urgências quando decido fazer autodiagnóstico: ciática/hérnia discal desadormecida. Já cá faltavas, há tanto tempo caladinha! Posição mais confortável, cama. Remédio de urgência, saco de água quente. Horas, princípio do dia, lá para as 22H!
  • O estomago também resolveu não gostar muito do antibiótico. Grande seca. É bem verdade que uma desgraça nunca vem só e, pelos vistos, duas também não.
III-ESTADO
  • GRRRRRRRRRRR!!!
  • Subir pelas paredes (se pudesse).
  • Tirem-me daqui!
IV-REACÇÃO (sequencial)
  • Desmotivação; autocomiseração.
  • Racionalização: podia ser pior, ai podia, podia! Copo meio-cheio versus copo meio-vazio, qual (triste) livro de auto-ajuda (não sei porque se chamam assim, se fosse auto-ajuda não era preciso comprá-los, não? Talvez venda de ajuda fosse mais adequado...).
  • Auto-satisfação pelo predomínio da força interior e, também (principalmente), porque a sinusite parece estar a retroceder e a ciática dá mostras de reagir bem à terapia do saco de água quente.
V-OCUPAÇÃO
  • Um bocadinho de Facebook fora de horas (pelas madrugadas da tarde), distribuição de likes e partilhas (respectivamente, para me certificar daquilo que gosto, abolindo margem para dúvidas, e agenda para utilização futura, em ambos os casos, há quem use para outros fins) e distribuição de comentários (para me certificar de que existo, creio que comum à maior parte dos comentadores).
  • Dormitar, eventualmente, dormir. Nem esta coisa nem sequer a outra.
  • Ler um bocado (quase a acabar o livro começado na segunda-feira, quando esta seca começou).
  • Pensar, pensar sempre muito, ainda que nada de jeito. Pensar sobre isto duma perspectiva irónica.
VI-DESAFIO
  • Bora lá experimentar, talvez já consigas aguentar um bocado sentada, com o saco de água quente a acolchoar as costas, para escrever o pensamento dessa perspectiva irónica. Faz bem desabafar e, sobretudo, sorrir de si. Faço um smile (não sei se é verdade, nem reparei).
  • Experimento. Menos dores. Consegui!
VII-PROGNÓSTICO
 
Como diz o outro, só no fim do jogo, mas a verdade é que, até sábado (ui!, só falta um dia) tenho de ficar boa. Aguarda-me uma festa de Aniversário e mal posso esperar. Quero ir prós copos. Não até ficar como da outra vez, nem pouco mais ou menos. Uma vez chegou (se não foram duas, mas isso, como disse, não me lembro). 
 
 
 

domingo, 17 de novembro de 2013

MARIA PONTO FINAL


Maria era fanática da leitura. Tudo o que tivesse letras atraía irresistivelmente o seu olhar. Podia ser uma simples bula de medicamento - mas só depois de o tomar, não fosse deixar-se influenciar pelos "efeitos secundários" e "contra-indicações", qual placebo ao contrário -, as matrículas dos carros que circulavam à sua frente e, mesmo, a publicidade espalhada pela cidade. Isto só para dar os exemplos do seu lado lunático. 
 
Mas, como é óbvio - ao menos para quem a conhecesse -, o que Maria gostava verdadeiramente de ler eram livros. Bons livros, quer dizer, livros que ela achasse bons. Interessava-lhe tudo nos livros, o formato, os caracteres de impressão, as ilustrações - se as houvesse -, o cheiro e a textura do papel e, sobretudo, AS PALAVRAS E O PENSAMENTO.
 
PALAVRAS E PENSAMENTO eram os fios da teia de cumplicidade que se estabelecia entre ela e os livros. Palavras que nunca tinha trocado com ninguém, mas que gostaria muito de ter trocado ou não gostaria nada de ter trocado, mas, mesmo assim, se justificavam; palavras que já haviam passado pela sua cabeça ou pelos seus lábios; pensamentos novos, originais; pensamentos de que também era dona, por já os ter pensado, embora pudesse ou não tê-los transformado em voz ou em palavras.  
 
Maria admirava imenso os autores das palavras e dos pensamentos que davam vida aos livros e lamentava muito não saber escrever, ou seja, trocar os pensamentos por palavras. 
 
Alimentava-se da leitura, comia palavras e bebia pensamentos, pois o alimento das palavras e, sobretudo, o dos pensamentos, vinham até ela quase exclusivamente através da leitura.
 
Todavia, chegou um dia em que, vá-se lá saber porquê, Maria acordou com um extremo cansaço. Já não lhe apeteciam as palavras nem os pensamentos. Ainda tentou, pegou num livro, mas os olhos não seguravam as palavras, o espírito não prendia os pensamentos. Estranha apatia escorria dos seus olhos. Estranho cansaço apoderava-se do seu corpo. O livro resvalou, surpreendido, para o chão. O autor do livro interrogou-se, perplexo.
 
Maria olhava a distância, o infinito do longe. Só conseguiu ver um ponto final. 

 
 
 
 
 
 

O PATO QUE PENSAVA DEMAIS


- Vou? Não vou? 
 

 - Nã...!
 

 - E daí ...
 

 - ?????

 
 - Bem vistas as coisas ... 
 

 - Vou? Não vou?



 
 
Entretanto:
 




 Depois:
 
 
- Vou? Não vou?
 
 
 
E assim sucessivamente. Pobre pato! 
 
 
 
 
 
 
 
 

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

"AS PRIMEIRAS COISAS"


No início é a angústia, o desamparo e, sobretudo, a derrota do regresso ao Bairro Amélia, bairro social da Margem Sul, à casa materna, recém-despedido (pela Ana Mendes, grande cabra) e recém-separado, isto é, desapossado da evasão (a vida para além dali) que conseguira ou julgara ter conseguido construir. Depois, é o sombrio aterrar neste novo mundo, novo apenas porque dele se sentira evadido, pois, como se verá, não passa do seu velho mundo, ou melhor, do seu mundo interior, porque há origens que, queira-se ou não, não se esquecem (nem nós delas nem elas de nós). Segue-se a escuridão, a tentativa de organização do caos e um mergulho profundo na impossibilidade. É o prólogo.
 
O regresso à superfície passa pela revisitação das origens - dir-se-ia mesmo que a impõe - e aí desfila a fabulosa galeria de personagens do Bairro Amélia, expostos se não até aos ossos, pelo menos até ao âmago da alma (ou seja lá do que for que nos faz gente). Trata-se, aqui, dum retrato cru, intenso e, sob o ponto de vista psicológico, duma notável profundidade. Feito a partir da (tocante e angustiada) interioridade dum conhecimento  testemunhado e, ao mesmo tempo, da (lúcida e, por vezes, sarcástica) exterioridade  dum distanciamento perspicaz.
 
A escrita é fluida, vívida e duma grande riqueza imagética. E contem uma originalidade, apresenta os personagens um a um, mas fá-lo com uma tal mestria que se apercebe como um todo indissociável, como se fios invisíveis e insuspeitos unissem aquelas vidas. Como, seguramente, uniram. Poderia até dizer-se que o personagem, enquanto representação simbólica dessas vidas e seu criador, é o Bairro. 
 
Chegou a altura de dizer que me refiro ao  romance de Bruno Veira Amaral, intitulado AS PRIMEIRAS COISAS, que,  como se depreenderá das palavras precedentes, espero seja o 1º de muitos.
 
Cheguei a ele através duma publicação no Facebook, em que se dava nota da respectiva apresentação pelo (outro grande) escritor José Rentes de Carvalho. Com um apresentador destes, só pode ser bom - pensei. Partilhei na minha cronologia para não esquecer - eis uma das vantagens do FB, a de bloco-notas e/ou agenda, em que vou anotando referências de carácter cultural, para mais (cedo que) tarde recordar e usar - e, quase de seguida, comprei. Depois foi o que se imagina: li, quer dizer, "devorei" e não resisti a escrever sobre.
 
Resta lembrar que o Autor tem um blog, onde postou o texto lido quando da apresentação do livro: http://circodalama.blogs.sapo.pt/.  Aí encontrei resposta para algumas questões suscitadas pela leitura.
   
E só mais isto: No Prólogo não pude deixar de me lembrar do magnífico Per Petterson (já aqui referido nos posts intitulados BLESSED BE PER PETTERSON, de 20/08/2013, e "CAVALOS ROUBADOS", de 5/10/2013) e, já quase no final, veio-me à ideia António Lobo Antunes.
 


quarta-feira, 13 de novembro de 2013

sábado, 9 de novembro de 2013

AO ENGANO!


Assim fui ver o filme intitulado LAST VEGAS!
 
Porque fui? Pelo facto da interpretação estar a cargo de quatro grandes actores, Robert De Niro, Kevin Kline, Morgan Freeman e Michael Douglas.  
 
Razão do engano? A expectativa de que um tal elenco fosse garantia de qualidade. 
 
É óbvio que, caso não andasse tão distraída, teria dado atenção à sinopse e resistido à promessa das performances interpretativas dos ditos actores.

Na verdade, o que esperar dum argumento em que se largam quatro velhos amigos, não só velhos amigos, mas amigos velhos, na patética mimetização da despedida de solteiro dum deles, que, prestes a completar 70 anos, se prepara para casar com uma mulher de 30? Para mais, no estapafúrdio cenário de Las Vegas, a tão feérica quanto idiota e artificial Las Vegas.
 
Está bem, a ideia terá sido a de abordar o tema da velhice, em perspectiva humorística. Mas uma coisa é a ideia, outra a concretização. Ou seja, o filme tem tanto de humor como este post de elogio. Tem, sim, um enredo fraquíssimo e sentimentalóide, sustentado por uma série de clichés.
 
Sucede que, para muitas pessoas, envelhecer é lixado! Primeiro, porque quando se dá conta, já é demasiado tarde, assim tipo, um belo dia, sem mais nem menos, olha-se para o espelho e constata-se - olha, parece que esta era eu! ou - parece que já fuiCHOQUE. Depois, começam a ouvir-se, cada vez com mais frequência, elogios póstumos, assim tipo - Você era um espanto! ou - Não, não estou a ver quem é, mas deve ter sido muito bonita! (Juro que se passou comigo e fingi um ar tão melindrado que ele corou por assim dizer até à raiz dos cabelos e acrescentou - ainda é. Só aí comecei a rir, já receosa de que lhe desse um AVC). CHOQUE. A seguir, de cada vez que se fita um espelho - e, estupidamente, há espelhos por todo o lado, nem que seja a superfície das montras - adquire-se um novo traço de identidade, quer dizer, uma manchazinha castanha, uma ruga aqui, outra ali... CHOQUE. Chego a pensar se estes traços de identidade não deveriam substituir as impressões digitais no cartão de cidadão definitivo. Há mulheres sábias que dizem não se importar, teorizando que cada ruga é testemunho dum episódio de vida. Não é, seguramente, o meu caso. E também não creio ser o delas, a avaliar pela quantidade de plásticas, botox, ácido hialurónico e afins que, as mais das vezes, levam em cima.  
 
Quer dizer, isto do processo de envelhecimento (PdE), ao menos enquanto não surgem as maleitas corporais, resume-se a uma questão estética. Esta é a minha teoria. Ou seja, uma pessoa sente-se muito bem, muito fresca, muito criativa, muito viva, e, na primeira esquina, dá de caras com um espelho e ... CHOQUE. O grau de arrelia do PdE  está, assim, na proporção directa da elevação estética de quem o sofre. E da vaidade. E da glória passada. Em síntese, quanto maiores forem as aspirações estéticas, a vaidade e a beleza falecida, mais lixado é envelhecer.
 
Mas, entenda-se, a razão de ter ficado lixada com o filme não foi o tema, mas a sua pobreza estética e intelectual.
 
Diferentemente de dois outros filmes sobre a mesma temática, de que aqui dei testemunho: GIANNI E AS MULHERES ( post de 31 de Julho de 2011, ABOUT GIANNI) e QUARTETO (post de 16 de Junho de 2013, ABOUT QUARTET).
 
Bem, o espelho reclama-me (não vá ter surgido mais um traço de identidade).
...
 
CHOQUE!