domingo, 17 de novembro de 2013

MARIA PONTO FINAL


Maria era fanática da leitura. Tudo o que tivesse letras atraía irresistivelmente o seu olhar. Podia ser uma simples bula de medicamento - mas só depois de o tomar, não fosse deixar-se influenciar pelos "efeitos secundários" e "contra-indicações", qual placebo ao contrário -, as matrículas dos carros que circulavam à sua frente e, mesmo, a publicidade espalhada pela cidade. Isto só para dar os exemplos do seu lado lunático. 
 
Mas, como é óbvio - ao menos para quem a conhecesse -, o que Maria gostava verdadeiramente de ler eram livros. Bons livros, quer dizer, livros que ela achasse bons. Interessava-lhe tudo nos livros, o formato, os caracteres de impressão, as ilustrações - se as houvesse -, o cheiro e a textura do papel e, sobretudo, AS PALAVRAS E O PENSAMENTO.
 
PALAVRAS E PENSAMENTO eram os fios da teia de cumplicidade que se estabelecia entre ela e os livros. Palavras que nunca tinha trocado com ninguém, mas que gostaria muito de ter trocado ou não gostaria nada de ter trocado, mas, mesmo assim, se justificavam; palavras que já haviam passado pela sua cabeça ou pelos seus lábios; pensamentos novos, originais; pensamentos de que também era dona, por já os ter pensado, embora pudesse ou não tê-los transformado em voz ou em palavras.  
 
Maria admirava imenso os autores das palavras e dos pensamentos que davam vida aos livros e lamentava muito não saber escrever, ou seja, trocar os pensamentos por palavras. 
 
Alimentava-se da leitura, comia palavras e bebia pensamentos, pois o alimento das palavras e, sobretudo, o dos pensamentos, vinham até ela quase exclusivamente através da leitura.
 
Todavia, chegou um dia em que, vá-se lá saber porquê, Maria acordou com um extremo cansaço. Já não lhe apeteciam as palavras nem os pensamentos. Ainda tentou, pegou num livro, mas os olhos não seguravam as palavras, o espírito não prendia os pensamentos. Estranha apatia escorria dos seus olhos. Estranho cansaço apoderava-se do seu corpo. O livro resvalou, surpreendido, para o chão. O autor do livro interrogou-se, perplexo.
 
Maria olhava a distância, o infinito do longe. Só conseguiu ver um ponto final. 

 
 
 
 
 
 

Sem comentários:

Enviar um comentário