quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

A MALDIÇÃO DA GAIVOTA


 
Acordou num sobressalto, piscou os olhos insistentemente, fixou-se na distância próxima e viu o mar, desdobrando-se ao seu encontro em amenas e escorregadias ondas, apenas um murmúrio.
Só então se apercebeu da sua situação e figura, sentado nas costas duma duna, vestindo calças de pijama, o azul escuro com quadrados brancos, casaco de smoking amarrotado sobre camisa aberta, desgovernada, como se uma luta ou um desespero a tivessem atacado, do laço já nem vestígios, sim, o laço requerido pela parte de cima do traje.
Antes do tormento das necessárias interrogações, pensou, pareço um palhaço, enquanto acrescentava ao inventário da indumentária os ossudos pés descalços.
As interrogações urgiram no imediato, o que faço aqui? o que faço aqui neste estado? O que terá acontecido? Porque não me lembro de nada, excepto de quem sou?
Impôs-se o desespero da ignorância e desatou a puxar pela cabeça, o empenho de toda a sua força, precisava de respostas, claras e urgentes, antes que desse em doido. Tanto puxou que a cabeça se desprendeu do pescoço, soltou-se das mãos artífices e rebolou pela areia, pálpebras e boca cerradas, evitamento de intrusões alheias, até desaguar na orla do mar, para onde foi recolhida com a ajuda duma onda apressada.
Simultaneamente, uma gaivota pousara no surpreendido pescoço, era a primeira vez que se via sem cabeça, prendeu-o com férreos dedos e elevou-o, não sem esforço, esvoaçando para sobre o mar.
Da cabeça resgatada pela onda, encarregou-se um peixe curioso, levando-a até às profundezas, onde a depositou sobre um colchão de vegetação, exibindo-a, orgulhoso, aos seus pares, reunidos em admiração à volta do achado.
Por essa altura, várias gaivotas disputavam o corpo transportado pela outra e o frenesim foi tanto que, em menos dum minuto, o corpo era largado, aterrando no mar, onde rapidamente se submergiu, indo parar de encontro à sua cabeça solta.
Os peixes curiosos agitaram-se em sustos e interrogações, até que perceberam a relação entre uma coisa e a outra, quer dizer, identificaram aquilo que conheciam como o corpo dum dos seus predadores. Todavia, após debate, deram o benefício da dúvida, juntaram cuidadosamente a cabeça ao corpo, servindo-se duma reserva de espinhas com as quais teceram uma espécie de colar de união, introduziram uns golinhos de ar para dentro da boca do corpo e, mal este deu acordo, disseram-lhe, vamos libertar-te, mas tens de prometer que demoverás os teus iguais de nos darem caça, quer dizer, pesca. O ressuscitado, mal acreditando na sorte, apressou-se a dizer que sim e a pedir pressa. Então, os peixes uniram-se numa escada até à beira do mar, por onde ele subiu, arrastando-se, depois, para o areal, onde, finalmente, recuperou o fôlego, a natureza e a identidade, mas não a memória do que o levara até à duna.
Afastou-se do mar, já lhe chegava de água por uma eternidade, não sem se ter cruzado com dois pescadores, que, de olhos perdidos, esperavam o destino dos peixes gulosos. Passou por eles e nada disse, apenas se lembrou que tinha fome, imaginando a delícia duma dourada ao sal. Deslizou a mão sobre o colar de espinhas que lhe picava o pescoço, lembrou-se da sua promessa aos peixes salvadores, mas não se importou.
Caminhou mais uns passos, agora mais apressados, acabara de se lembrar que tinha deixado o carro por perto, e foi surpreendido por um bando de gaivotas esfomeadas que, cheirando, à distância, o seu colar de espinhas, o confundiram com um peixe, lançando-se sobre ele numa fúria devoradora, de que nada restou a não ser uma manga do casaco de smoking. 
Entretanto, na agonia do afogamento na areia, o peixe curioso presenciava a cena, até que, numa derradeira contorção, abriu os olhos e as guelras pela última vez, talvez pensando um pensamento final.
 
João acordou estapafúrdio e não, não dormira numa duna. Precisou dum bom duche e dum forte café para se lembrar do que tinha andado a fazer. Só então passou a mão pelo pescoço para se certificar... Não fosse dar-se o caso...
 
 
 
 


Sem comentários:

Enviar um comentário