quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

NATUREZA MORTA


Pareço uma natureza morta, aqui desabada sobre a pele camel do sofá - não haverá outra palavra para sofá, pergunto-me, mas não me detenho na pesquisa, quero continuar, afinal, ontem ou talvez já hoje, na hora da transição, o texto brotou tão nítido, tão corrido, melhor seria impossível -, embora pele camel fosse o outro, o que precedeu, mas irreleva, o tom de pele irreleva, desnecessário dar vida a uma natureza morta, procurar ambiente para ressaltar a falta de brilho, a desistência. Detesto naturezas mortas, aliás, bem vistas as coisas, nem consigo entender o que são naturezas mortas, porque se chama natureza morta a um possível molho de bróculos e cenouras e uma galinha esganada, amanhados sobre a tábua duma mesa de cozinha, por exemplo, desde que devidamente aprisionados numa tela ou embrulhados numa folha de papel Canson, aguarela, acrílico, óleo ou o que calhar. Por isso detesto parecer uma natureza morta, mas, tantas primaveras abandonadas, outras tantas assassinadas, outras prometidas por cumprir, horizontes de inverno, outonos intermédios e verões desassossegados, como poderia parecer outra coisa, hoje, sim, refiro-me a hoje, amanhã posso parecer outra coisa qualquer, sobretudo uma natureza viva, o oposto duma natureza morta, por definição, embora não perceba o conceito, também não, se a prisão na tela ou no papel Canson e o material de rotulagem, aguarela, acrílico, óleo ou o que calhar, são os mesmos, e se não há garras para rasgar, a tela ou o papel Canson, e dar um salto monumental, daí para longe do camel ou do branco, agora é branco, e qualquer coisa que não seja isto, uma natureza esta.
   
Achas que pareço o quê, uma natureza morta? Cheguei a casa meio cansado, quer dizer, completamente exausto, e esbarrei ao pé de ti, no sofá de todos-os-dias, quer dizer de todas-as-noites, e imaginei-me assim, um pato assassinado, rodeado de maçãs, uvas e ameixas, carpideiras fingidas, tudo muito bem atado numa tela presa por barras de carvão e pastéis vários à mistura. Vá, responde-me, sai da tua tela e responde-me.
 
Que não, não estou presa numa tela, nem sequer numa folha de papel Canson, adianto já, quando chegaste e esbarraste ao pé de mim, percebi que não parecia isso, uma natureza morta, aliás, nem sei o que é uma natureza morta, não percebo, e digo-te mais, se algum dia estive presa num daqueles meios ou noutro qualquer, não cheguei a criar as rotinas da prisão, puxei das minhas garras, rasguei paredes de linho ou de papel ou do que fosse e. Aliás, detesto naturezas mortas, tudo muito sério e arrumadinho, sobre madeiras de cozinha ou bandejas metálicas, com brilhos de mordomo ou dona-de-casa, uma toalha de renda ou um pano aos quadrados, maçãs parvas, rosadas, envergonhadas, peras maduras, picadas de ferrugem, coelhos de orelhas espetadas numa agonia post-mortem, tentativas de reprodução de vidas colhidas, decepadas, assassinadas. Quero lá saber de naturezas mortas! Hoje é manhã e, embora prefira a noite, vou já começar a antecipar. Se quiseres, não venhas, se não deixa-te estar. Assim, como acabas de ouvir, não foi engano, a nuance. Estou no ir.
 
Então vai, estou no ficar.
 
 
 
 
 
      

2 comentários:

  1. Apesar de eu gostar muito de naturezas mortas (paixão antiga!) adorei este texto !

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  2. Muito obrigada, Maria. É tão bom saber que há quem passe por aqui e que, para mais, gosta, aliás, adora!

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