segunda-feira, 31 de março de 2014

COISAS ASSIM TIPO...


Por vezes, dou comigo a ouvir cada coisa, que nem me atrevo a garantir ter ouvido bem!
Uma das últimas foi que, no âmbito das parcerias público-privadas e, quem diz estas, acrescenta quaisquer outras negociatas do género, o governo terá decidido passar a  honrar, apenas, os compromissos legais e contratuais do Estado, entidade sua representada, na medida em que o crescimento da economia e o incremento demográfico, eventualmente, o permitam. Para se perceber bem, é assim uma coisa do tipo, um cidadão assalariado tem uma dívida fiscal, mas anuncia ao governo que, futuramente, só pagará, caso a sua situação económica, calculada, v.g., em função de aumentos salariais superiores a 15%, da identificação definitiva do sexo dos anjos ou do acasalamento das cagarras, devidamente testemunhado pelo presidente da República, o permita.
 
- Não?
 
Olha! acabam de me informar que, afinal, o novo paradigma não se aplica ao caso das parcerias público-privadas e outras negociatas do género, mas aos reformados, o que, bem vistas as coisas, já não causa tanta estranheza, quer dizer, talvez não, a ter em devida conta o paradigma corrente.
Também, a culpa é deles, ninguém os mandou andar a descontar, no duro, uma vida inteira de trabalho, aí uns 40 anos - sim, a esses me refiro -, em vez de terem anunciado, unilateralmente, não estarem para aí virados, estarem-se absolutamente nas tintas para a Constituição e demais leis da República ou contratos celebrados ao seu abrigo, e o Governo que de desenvencilhasse como muito bem entendesse, na hora do pagamento das reformas!
Ora, às tantas, também não é bem isto.
Afinal, pareceu-me ouvir que os reformados, quer dizer, os sobreviventes dessa espécie, fartos do bullying terrorista do governo, decidiram, em bloco:
  • Processar, financeira, civil e criminalmente, o Estado, pelas sucessivas e descaradamente ilegais subtracções dos seus rendimentos;
  • Deixar de pagar impostos, na pendência dos processos, e até completa e retroactiva reposição dos seus direitos, acompanhada de exemplar punição dos membros do governo e demais farsolas responsáveis pela situação, incluídos os, entretanto, emigrados para o FMI e instituições congéneres;
  • Em demonstração do facto de não serem movidos por maus sentimentos, mas apenas pelo mais elementar sentido de justiça, convidar esses membros do governo e demais farsolas, para um piquenicão, a efectuar numa das magníficas pontes que sobrevoam o Tejo, de Lisboa à Margem-Sul; como reconhecimento especial pela virilidade irrevogavelmente assumida na defesa do cisma grisalho, levar o vice-primeiro ministro a passear numa qualquer feira ou mercado, podendo, até, ser o de Campo de Ourique, visto estar na moda e o efeito previsível ser idêntico;
  • Embora com muito desgosto, deixar de ajudar os familiares desempregados ou mal pagos, como medida incentivadora a que façam qualquer coisa pela vida, por exemplo, a tomada de atitudes cívicas destinadas a mudar situações indesejadas ou, então, que parem de fazer queixinhas e de exigir sustento aos velhos e, calhando, lhes darem porrada, como, por vezes se ouve nas notícias; querem pedir dinheiro, querem descarregar a raiva, vão para os lados de Belém e S. Bento e deixem os velhos em paz;
  • Fazer uma lista exaustiva de todos os boys e girls que pululam pelos milhentos gabinetes e outros sítios do Estado, e reconduzi-los ao mercado de trabalho normal ou, em alternativa, passar-lhes um visto gold de emigração;
  • Infernizar a vida de tudo quanto é órgão de poder, até obterem a aprovação duma lei que determine a redução do número de deputados e demais titulares de cargos políticos e públicos, em função do estado da economia e da demografia nacionais, bem como a adaptação dos respectivos salários, frotas automóveis e outras (cartões de crédito, telemóveis, Ipads, PCs, etc.), por referência aos mesmos critérios;
  • Idem, no tocante à concretização da reforma do Estado, em geral, e da Justiça, em particular;
  • Formar um Banco -talvez, BCG, Banco do Cisma Grisalho -, não se vá dar o caso, improvável, das restantes iniciativas fracassarem. 


 
   






quarta-feira, 26 de março de 2014

FEZ-SE TARDE, TÃO TARDE!


Já se fez tarde, muito tarde, sem que tivesse dado por isso, num repente, isto é, num súbito, apercebi-me de que era muito, muito tarde, como quando olhas para o espelho e reparas naquela expressão ou vinco que, ainda ontem, não estavam do lado de cá, ou então, numa qualquer ausência, agora presente.
Já se fez tarde, muito tarde, sem que tivesses dado por isso, viste como a revelação se me tornava evidente, não que a percepção partisse de ti, andavas distraído, mas, num repente, isto é, num súbito, apercebeste-te do reflexo que eu projectava, como se eu fosse um espelho e tu, eu.
Ficámos sintonizados, mas apenas porque se fez tarde, muito tarde, e ocorreu o nano segundo da revelação, os espelhos, cumprida a sua tarefa, estilhaçaram-se, agudos de vidro frio rompendo paredes à volta.
Deixei que se fizesse tarde, muito tarde, andavas naquela ideia de que ainda era tempo, tempo vivo, apetecido, negaste a importância dos reflexos que não mentem, porque são superfícies lisas, cristalinas, e, o mais importante, não vivem para outro fim nem se alimentam doutra matéria que não a mais pura neutralidade.
Não que me tivesse deixado aconchegar na ilusão, mas distraí-me um pouco, até ao limite daquele nano segundo, até ao limite de me ter visto reflectida em ti, não, até ao momento de ter percebido que o meu reflexo se te fez visível, finalmente.
Foi, então, que me interroguei sobre a razão de não podermos olhar-nos com os nossos próprios olhos, sim, olhos meus em olhos meus, bem no fundo, sem necessidade da intermediação de olhos outros, olhos vítreos e indiferentes de espelhos, olhos luminosos e talvez cúmplices, de terceiros, os teus olhos ou os olhos dalgum outro.
Mas agora não importam interrogações, fez-se tarde, muito tarde, tão tarde.
 
 
 
 
 
 

terça-feira, 25 de março de 2014

DURÃO CASTIGA VLADIMIR


Eh! pá!, gosto muito, mesmo muito, de ouvir o nosso querido compatriota Durão Barroso engrossar a voz - ou deveria dizer, endurecer a voz (?), num trocadilho óbvio, logo não conveniente - perante os poderosos do mundo.
Foi um tique que lhe ficou desde quando andou lá pela Cimeira dos Açores a servir cafés àquela trupe da guerra contra o Iraque, uma delas, qualquer coisa a ver - ou a haver, como muita gente diz - com petróleo, sob o alto patrocínio do conclave hispano-anglo-americano. Caso para dizer que nunca um serviço de empregado de mesa foi tão bem pago, mas isto é mero aparte. 
Pois, desta vez, o motivo foi o anúncio da deslocalização do G-8 (prevista para a Rússia) e da sua redução para G-7, assim tipo, já não brincamos mais com aquele menino, ele é mau, anda a anexar territórios alheios, é bem feita, ele vai ficar muito triste, mas é isso mesmo que pretendemos, toma lá para não te portares mal.
O menino excluído, que não é outro senão um manequim (resgatado) da Rua dos Fanqueiros, de nome Vladimir Putin, muito arrependido e triste por ter sido expulso do bando dos 8, resolveu oferecer uma prova de boa vontade e, vai daí, promoveu um referendo no Iraque, com efeitos muito retroactivos - assim, do género, cortes de pensões decretadas pelo (des)governo português -, com o objectivo de obter a concordância do Povo iraquiano para a invasão cozinhada na Cimeira dos Açores, a tal dos cafés servidos pelo Durão Barroso, e, para além disso, conseguiu reunir as provas que desmentem, irrefutavelmente, o desmentido da existência de provas de armamento nuclear no Iraque, que serviu de (alegado) fundamento ao desmantelamento deste.
O que se vai passar a seguir, ignoro, até porque não sei se esta última parte, do arrependimento de Putin e etc. e tal, é verdade, mas que o Durão Barroso fica muito bem a dar recados, lá isso é verdade.
Se estivesse nas minhas mãos decidir, mandava-o, ao Durão Barroso, servir saladas russas, para a linha de fronteira, por assim dizer, entre a Crimeia e a Ucrânia, pelo menos, até se saber se vai ou não haver uma 3ª guerra mundial. Depois, logo se veria. 
 
 
 

COUP DE FOUDRE


E foi assim que tudo começou, pelo fim, aliás,  um fim mau (nem todos os finais o são). Olharam-se com antagonismo, como se uma vida inteira de guerrilha e desamor os desligasse, lhes servisse de rio com ocasionais pontes, apenas destinadas a provar que um e o outro se tinham pertencido. Se fosse ao contrário, chamar-se-ia um coup de foudre, mas assim, tal como as coisas aconteceram, não mereciam a honra do francesismo, talvez uma tradução invertida, ódio à primeira vista. Ódio, ódio, talvez seja exagero, mas lá que foi forte antipatia, disso não podem restar quaisquer dúvidas.
Tinham-se cruzado na urgência de agarrar o único táxi disponível, naquela madrugada de imparável chuva grossa e vento gelado, à saída do aeroporto, ele regressado dum sítio qualquer e ela, sabe-se lá donde. Quase se atropelaram na pressa da corrida, as malas chocaram uma contra a outra, não com tanta violência como os seus olhares, ele, dispensando-se de exercer de cavalheiro, ela, chocada com aquela omissão, o taxista, divertido com a cena e tentando adivinhar, no escuro, qual deles seguiria para mais longe.
Aproveitando a confusão, um terceiro adiantou-se, abriu a porta do táxi e anunciou um destino digno de voo, como era, não fosse o atraso do avião e a sua urgência em chegar a tempo dos acontecimentos importantes de daí a 3 horas. O taxista não hesitou, acenou um acordo, o flash da entrada do passageiro, e arrancou com as rodas a chiar no brilho molhado do asfalto.
A cólera deles acompanhou o rasto de chuva erguida pela pressa do táxi, que calhou assentar de chapão nos seus fatos amarrotados, nem a protecção duma gabardine, nenhum previra ter de fazer escala num sítio daqueles, uma lonjura oblíqua de montanhas rígidas, saturadas de águas mil, pendentes em fitas ininterruptas e intermináveis.
Por essa altura, as malas já estavam repostas, apenas levemente arranhadas do choque, não havia nenhum táxi à vista, o vento gelava mais forte e os seus olhos voltaram a mergulhar-se, os dum nos do outro e vice-versa, e só então se viram, sim, aquilo já não era apenas olhar, era ver, um ver de primeira vez. E não contiveram o riso.
E foi assim que tudo acabou, pelo princípio, aliás, um princípio auspicioso (nem todos os princípios o são).
Voltaram a entrar no aeroporto, ele convidou-a para um café, ela aceitou, e depois... 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

sábado, 22 de março de 2014

NÃO DIGAS QUE NÃO TE AVISEI!


o teu corpo parecia uma mão fechada, não, uma mão fechada contra a outra mão, os dedos, muito brancos, muito frios, feitos laços-presos, atando-se uns aos outros, como quem se debate numa agonia viva, bem viva, militante, desconhecedora da desistência, apesar do fracasso incessante. sim, porque era disso que se tratava, dum fracasso teimoso, desde o princípio da imemória, está bem, inexiste imemória, como talvez inexista inexiste, mas percebes o que quero dizer, é quanto basta.
porque vinha essa espécie de embalagem vazia, ausência,  dos confins disso, da imemória? assim, feita companhia predestinada, só podia ser isso, destinada a fazer-te da vida deserto, mar desabitado, embora só tenhas percebido mais tarde. mais tarde? tenho dúvidas, sei que, por dentro, bem no fundo do dentro, sempre soubeste. só que essa ideia estúpida de persistir, forçar o teu corpo tenso no abraço das mãos contorcidas, dedos tão feitos arames de prender, sempre em círculo, dervixes, um polegar enrolando-se no outro, em voltas e voltas e voltas, no sentido dos ponteiros do relógio e no inverso do sentido dos ponteiros do relógio, e depois dizias, bloqueio.
pois bloqueias, não posso iludir-te da tua própria lucidez, segurar-te a cabeça entre mãos leves e dizer, repousa, distende-te, abandona esses dedos-giz, tão hirtos e pálidos e gelados, de tanta insistência desesperada e teimosa. sabes, até a persistência tem limites ou devia ter. um dia vais perceber isto (ou irias perceber isto?), isto que acabo de te dizer, com a certeza de todas as urgências, com a inteligência de todas as dúvidas, com o imediato de todas as acções. já vai ser tarde, todavia, tu sabes, tão bem quanto eu. sabes porque sentes o teu corpo-nó, estrangulado nos dedos-arame, até o espírito preso de voar, só a presença das sombras da imemória - está bem...- e a certeza das sombras que serão.
vá lá, não posso amparar-te a cabeça, cantar uma canção morna, olha, uma morna, podia ser, Cesária Évora, por exemplo, sabes que um dia encontrei a Cesária Évora no aeroporto de Copenhaga e lhe pedi um autógrafo? sabes que ela me deu o autógrafo embalado numa pergunta, era inverno, e ela perguntou-me o que fazia eu em Copenhaga, férias, respondi, e ela, mas está só, veio ter com família? não, vim só, não tenho cá família nem amigos, vim de férias, apenas. não lhe disse que tinha ido espanejar fantasmas, mas não teria valido a pena, mesmo assim o espanto dela não tinha limites, naqueles olhos tristes, um pouco desorbitados, não lhe fazia sentido o meu lugar ali, assim, como eu lhe disse, naquela falta de circunstância. é no que dá ser-se de pertença dalguém ou duma tribo, ter-se alguém ou uma tribo de pertença e não se conceber a possibilidade, mera hipótese académica, doutras vidas - foi o que pensei.
nem sei porque te conto isto, talvez para que percebas o porquê de não poder amparar-te a cabeça, cantar-te ou contar-te coisas melodiosas, doces, dizer-te que vai passar, que desenlaces o arame farpado que te prende o corpo e já te apanhou o espírito ou lá como se chama essa coisa etérea que te anima ou, melhor dito, desanima.
não penses que sou sádica, só não gosto de te assistir a essa agonia de adiamentos compulsivos, alimentados por golfadas tão súbitas quanto passageiras de etéreos faz-de-conta, como se.
como se nada, é o que é, estás farta de saber. e cansada. nem sei por que esperas, não entendo. apenas sei que é até quando.
não digas que não te avisei.
  
 
 
 
 
  

quinta-feira, 20 de março de 2014

SE AO MENOS UMA PAUSA


e se não há nada a dizer, experimente-se
rasgue-se o silêncio e diga-se, nada
logo alguém se lançará em queda livre na próxima piscina
talvez, mesmo, sem saber nadar
há sempre alguém pronto a seguir o comando das palavras
sobretudo das palavras ocas e desnecessárias
por isso os jornais, as rádios, as tvs
por isso os demagogos e os tolos palradores

mas traduza-se um pensamento por palavras
sobretudo, um daqueles pensamentos de pensar profundo
e nada, ninguém quer saber

quantos salvamentos
se, ao menos, uma pausa, um pensamento!









HARLEY DAVIDSON


"O rápido afastamento de Rita - que, em segundos, se perdera na linha do horizonte, reduzida ao tamanho dum lápis - deveu-se à urgência em encontrar os outros desertores, visto se aproximar a hora da partida.
Todos eles tinham ouvido falar dum país de misteriosos contornos e, embora ignorassem exactamente quais ou, talvez, por isso, ansiavam conhecê-lo.
A chegada de Rita ditou a antecipação da viagem.
As mochilas, reduzidas à mínima expressão do essencial, não atrapalharam a subida para as Harley Davidson e as posteriores acelerações, que, passado o impulso inicial, se revelaram desnecessárias, porquanto uma inusitada e poderosa força os sugou para o local de destino, privando-os da deliciosa sensação de velocidade em crescimento.
Tudo sucedera como se um ténue véu se tivesse rasgado para os deixar passar, ou melhor, para os reclamar à presença dum qualquer interior desconhecido.
Perplexos, mas excitados pela curiosidade, estacionaram as motos, dispostos a iniciar o percurso da descoberta."
Isto é um extracto do Moleskine de Janete (II), aqui publicado em 10 de Julho de 2013. A novidade, agora, é que encontrei a maravilhosa Harley Davidson em que pensei, quando o escrevi (ao menos, no reino do faz-de-conta; talvez um dia destes também encontre a Rita, o Miguel, a Janete, o Francisco e os outros...).   
 
Aí vai, em vários ângulos, qual sofisticado modelo:



 

 

  

 
 




 

segunda-feira, 17 de março de 2014

SENTIDO DE HUMOR, PROCURA-SE!


Não sei que mal te fiz, sinceramente, não sei. Dum momento para o outro desapareceste-me da vista, nem sequer aquela cena clássica, vou ali comprar tabaco e já venho..., clássica e desactualizada, já não se usa fumar, não é cool. Só percebi quando dei pela tua falta, nem isso, foi através do advogado que foi lá a casa entregar-me os papéis, que papéis, perguntei. E ele, tipo rufia empedernido, profissional de vão de escada, está-se mesmo a ver, dar-se ao trabalho de se deslocar lá a casa, feito estafeta, os papéis do divórcio, aqui tem, é só assinar. E eu, de abrir os olhos, a sentir-me inutilmente incomodada, é engano, só pode, mas não, saltaram as identificações, os selos de conformidade, e era mesmo comigo, sua excelência o S.deH. tinha-me enviado um mandarete foleiro com aquela notícia de divórcio súbito e unilateral, toma lá, ficas a saber, assina e o assunto acaba aqui. Ora - continuo a dizer - ignoro que mal lhe tinha feito, e, de resto, ainda estou para saber. Não é que o tipo invocou diferenças irreconciliáveis, armado em estrela de Hollywood! Vai-se à procura de concretização e nada, não percebi rigorosamente nada do que seriam as tais diferenças, aliás, já estávamos juntos há bastante tempo e creio poder dizer que nos dávamos bem.
 
Desatei a pensar, dei voltas à cabeça, mas o facto é que ele me fazia imensa falta para colocar as ideias em ordem, senti-me tipo de luto, sofria-lhe tanto a falta! Ainda assim, continuei a pensar - aleluia, resta-me a determinação e meia dúzia de neurónios! - e cheguei às seguintes conclusões, a) a nossa relação até era muito íntima, tão íntima que, as mais das vezes, ninguém conseguia entender, era preciso explicar, mas na explicação perdia-se a graça, b) abusei um bocado dele, quer dizer, servi-me dele como duma arma de defesa, dava-me imenso jeito e ele parecia não se incomodar, até se mostrava contente pelo uso ou abuso, questão de se saber reconhecido e bem empregue. Não me pareceu que qualquer destas consubstanciasse diferença irreconciliável. Concluí, então, c) fartou-se de me aturar. Aí fiquei magoada, confesso, mas assinei os papéis do divórcio, por deferência para com o S.deH., o meu.
 
Agora não se pense que vou ficar de braços cruzados à espera que volte, não, não. Publico este anúncio, com a promessa dum prémio para quem o encontrar e mo devolver, embora creia que, mesmo antes disso, ele voltará, afoito, pelo seu pé, e, só por ser quem é, recebo-o de volta, de braços abertos e sorriso largo.
 
Faz-me tanta falta, o meu Sentido de Humor! Só por ser quem é!
 
 
 

domingo, 16 de março de 2014

ESTÁS ASSIM!


Sei que estás assim, de bicho, porque te vi, há dias, não ontem, nem anteontem, nem mesmo antes, lá para antes de quarta-feira, e não eras tu, quer dizer, hoje não és a de quarta-feira, na quinta-feira já não eras a de quarta-feira. Sei, porque vi no espelho, vi fundo no espelho, naquele que se estatela até à raiz mesma do abismo-eu, donde se projectam as sombras mais sombrias que qualquer poço conhece como dedos contados, 1, 2, 3, por aí fora, somas e subtracções. O pior são as subtracções e as suas ameaças. Então é como se um dragão a cuspir monstros, dragões-fogo, queimando almas plácidas, confiantes, titubeantes, desconfiadas, desastradas, de tanto..., enfim, toda a espécie de almas, que almas há de muitas, mas dificilmente resistem, sejam lá como forem, às raivas afiadas de certos dragões. Não falo de dragões de brincadeira, por assim dizer, de Carnaval, dragões de fingir, de alimentar e animar festas chinesas, em Macau. Falo das sombras que viajam das viagens do abismo mais longínquo de que há memória, pior, muito pior, de que não há memória. Hoje, desde quarta-feira, essas sombras tomaram conta de ti, já rondavam, pequeninas, como se pouco sol e menos obstáculos, só inventados, que nem eram, apenas atenuados,  por comparação a posteriori, digo, andavam de mansinho, persistentes, tal qual o princípio de escuridão e electricidade aérea que anuncia forte trovoada. Então, desabou. Assim. E eu grito por que passe, se dissipe rápida, sem estragos, negue os anúncios e os medos e os recados, vá-se embora, como quem reza, Santa Bárbara, São Jerónimo e Santa Bárbara, como me ensinaram quando ainda não tinha idade para ter medo, conhecer sombras ou dragões malditos, a cuspirem sabe-se lá o quê que me deixa assim, com cara de bicho. Sim, sou eu, nem preciso de espelho para me reflectir o abismo-eu, sou mesmo. Por isso, é a mim que me dirijo, quando digo, estás de bicho. Assim me chamei uma vez, auto-reproduzida num pedaço de papel ou numa tela, numa altura em que já tinha travado conhecimento com sombras e dragões malvados. Ainda se as sombras e os dragões fossem ameaça apenas de mim! Quanto eu daria por uma troca de papéis!
 
 
 
 
 

sábado, 15 de março de 2014

MY HEART!



O meu coração tem asas. As asas que o trouxeram e o hão de levar. O meu coração tem asas. As asas que transportam até ele seus vários ocupantes. As asas que nunca levarão dele certos ocupantes, embora outras asas os possam levar. O meu coração tem asas. As asas que o fazem voar, sobrevoar e voltar, mais rico ou mais pobre. Mais pobre – está bom de ver - se alguém que ele queira não quiser entrar. O meu coração distende-se com o bater das asas. Por isso, quando, há uns anos, a pequena I. me perguntava se gostava mais dela ou do pequeno J., sempre lhe respondia que gostava dos dois (e não só dos dois), por igual. Para ela perceber, explicava que o meu coração tem várias gavetas do mesmo tamanho, uma para ela, outra para o J. e por aí fora. Ela percebeu e já não pergunta, porque já não precisa de perguntar. Assim, o meu coração tem várias gavetas preenchidas de infinito. Nenhum ocupante deve recear, porque o amor é assim, não conhece medida nem comparação. Mas o meu coração é tecido e debruado a renda. Ao mínimo abanão pode rasgar. As asas do meu coração sabem disso. Voam, por vezes muito alto, mas sabem sempre quando voltar. Por vezes o meu coração não gosta, mas é assim que funciona, acaba por ter de aceitar. Mas o melhor, mesmo, para todos os efeitos, é voar. Ah! e a renda que tece e debrua o meu coração também pode ser outra coisa qualquer, por exemplo, ramagem de árvore, desde que livre para voar.
 

 

Nota: a inspiração deste texto foi o meu desenho do coração com asas, permanecendo, desde então, no recato do seu esconderijo informático; hoje fiz esta fotografia, que me sugere um coração. Então, nada mais natural, acrescentei um parágrafo (o último, obviamente) e trouxe-o à luz (não sem algumas dúvidas, por ser, talvez, demasiado íntimo...).



 

sexta-feira, 14 de março de 2014

ÀS VEZES, A VIDA!


um simples vidro de permeio e temos

reflexo de sol feito pássaro de papel
aprisionado em gaiola de luz
grade-escama aberta, escancarada

estátua da liberdade
por corpo, um poste, por cabelo, espinhos
da liberdade artífices e testemunhos
que a liberdade é dura, na conquista e no exercício
que a liberdade é cara, no preço e na valia

cabines aéreas, amestradas em fios de navalha
cegas à hipótese da iminência do voo interrompido
aquilo do imediato súbito
contudo, lâminas à vista
por perto, prontas a rasgar e deixar traço

cenários normais
árvores, pessoas
dar sombra, respirar
existências dos símbolos do real
simulacros do esquecimento apetecido

ah! e os pássaros
mas os pássaros são reais
escoltam a luz crua do azul, como se nuvens
existências outras
distâncias do intermédio do além

às vezes, a vida, simples vidro de permeio



 




 
 






segunda-feira, 10 de março de 2014

DRESS CODE: CASUAL CHIC WHITE


Uma amiga minha vai festejar mais uma década, quer dizer, mais um ano que completa uma década - havia de ser lindo, se fizéssemos 10 anos de cada vez, mesmo só um, às vezes, já custa, ou talvez não, depende da perspectiva e dos voláteis estados de alma, mas isto é outra conversa... - e estipulou para o evento o seguinte dress code: casual chic white.
 
Ora bem, isto - não o casual chic, mas o white - coloca-me um problema, não que não goste de branco, até tenho muitas e variadas camisas, t-shirts, camisolas e casacos de malha brancos, mas não me imagino em total white, quando penso nisso só me vem à cabeça um ovo cozido!
 
Assim, a festa está quase aí, e eu de puxar pela cabeça, a ver como hei de resolver o problema. Compro uma saia ou umas calças brancas e conjugo com uma das peças de cima em stock lá pelos armários? Compro um vestido branco? Não creio, não está tempo para comprar roupa dum um só uso! Por falar em roupa dum só uso, já me passou pela cabeça pedir um vestido de noiva emprestado, mas também não me parece, primeiro, porque, usualmente, não são casual chic, segundo, porque, tanto quanto sei, costumam ser religiosamente guardados, após passagem numa qualquer 5 a sec, quando não jogados fora em raivas post matrimoniais ou, sei lá, postos no prego ou vendidos em segunda mão, para saldar dívidas da crise - ou então não é nada disto e estou só a imaginar cenários ruins.
 
Até que, de tanto pensar, julgo ter encontrado a solução, qual ovo de Colombo: finjo-me de daltónica! Chego à festa com uma roupinha casual chic blue, a minha cor preferida, dirijo-me alegremente à anfitriã, começo a dizer parabéns, e a meio, quando ela e todos os outros me olharem num espanto de censura, por andar a violar códigos de vestuário, interrompo, abro muito os olhos, pestanejo como a Marilyn Monroe, quando fazia de ingénua, e exclamo, então o dress code não era total white?! Aí, dão-me todos o devido desconto, passam-me um bendito cocktail para a mão e que a festa comece...  
 
Agora - e não se vá dar o caso de a minha amiga aniversariante passar por aqui e desconvidar-me - devo esclarecer que era tudo brincadeira, vou, mesmo, cumprir o dress code e dançar até de madrugada, como se estivesse em Ibiza. Com sorte, não vou parecer um ovo cozido... Talvez pareça um copo de leite ou um gelado de iogurte... Who cares?
 
 
 
 
 
 
 

sábado, 8 de março de 2014

OU UM ATALHO CURTO


hoje apeteciam-me auto-estradas de cimento bravio
está bem, não é cimento, asfalto
quero lá saber da correcção da terminologia!
auto-estradas de 200 Km à hora
povoadas de condutores à esquerda, devagar
empatas
e eu de acelerar, abrir passagem como fosse
preciso buzinar, luzir os máximos
ultrapassar na vertigem desta pressa crua
espantar os empatas para a fila certa
que eu quero seguir, desaustinada
não me venham com histórias de acidentes
é como a correcção da terminologia
quero lá saber!
quero é sair daqui, tenho uma pressa fria
vou embalada nesta adrenalina
não há vulcões de crateras geladas?
por acaso, não há lava que corta como lascas de frio?
fiz a auto-estrada Estoril Lisboa em menos de 45 segundos
deixei uns quantos espantados
verdadeira fúria rodoviária
tudo dentro das boas normas do código
excepto em matéria de velocidade
que a urgência é muita, pressa aguda
de sair daqui
dêem-me uma auto-estrada de 200 Km à hora
ou um atalho curto, tanto faz
só quero sair

daqui

rapidamente

definitivamente



sexta-feira, 7 de março de 2014

O PRIMEIRO AFASTAMENTO DE ARTUR ADRIANO

 
E, todavia, naquela negação das palavras essenciais, que ela se adaptara a partilhar - estranha partilha! - e naquela negação das evidências redentoras, quando não na afirmação dos acintes idiotas, que eram as dele, e que a ela nem sequer ocorrera retaliar, pode até dizer-se que se davam muito bem. Aliás, já se referiu o seu entendimento a níveis vários, mas falta acrescentar a harmonia e os sorrisos trocados, nos cumprimentos, nas conversas, até nas provocações, sempre. Eram sorrisos que brilhavam como se tesouros – escondidos, já sabemos - e as palavras, não as essenciais - também já sabemos -, mas as outras, as ditas, eram tecidas em vozes calmas, na modulação da simpatia e do afecto. E havia ternura - embora a ternura que havia fosse apenas isso, essa revelação escondida - e, pelo andamento dos factos, parecia ser quanto bastava, talvez na lógica do ou isso ou nada, não, não era essa a lógica, isso ela nunca teria aguentado, por muito o amor e o desejo. A lógica era outra, era a lógica dos factos falarem mais alto do que as palavras. Por outro lado – e pode parecer traição da memória -, não se lembram zangas, distanciamentos já é outra conversa, não com ela de protagonista, como está óbvio de adivinhar.
Corria um tempo dos encontros diários e do tudo e do nada desses encontros, não se conseguem quantificar os meses, mas sim, eram já alguns meses, ele começou a parecer um pouco distante, talvez nem isso - este ponto não irradia muito claro, não admira, embrulhado na bruma da memória, está bem, isto é expressão de hino nacional, mas deixemos ficar, surgiu assim, sejamos fiéis ao primeiro pensamento, como à recordação do primeiro amor ou de qualquer outro, aliás -, e, talvez quando a foi levar a casa e se despediram, anunciou, sim, foi um anúncio, não se tratou de coisa conversada, com antecedentes, diagnósticos e prognósticos, foi uma crueza pura e simples, como pedra atirada a charco, sem importar a consequência das ondas circulares ou a cabeça da  pobre rã atingida por acaso, enfim, está dito, foi um anúncio, tão cru como um vegetal rijo, um rabanete branco de casca vermelha, pronto a rilhar, anunciou, preciso dum tempo, ou seria, preciso dum tempo para pensar, seguramente não terá sido, acho que precisamos dum tempo, tratou-se de algo unilateral, fechado, rematado, não fundamentado nem de discutir. Será que manteve o sorriso, dessa vez? E ela, numa serenidade que, por dentro, era altivez e talvez não fosse mais nada, pelo hábito adquirido da autonegação, porque era negação do seu essencial, no caso, o amor e o seu conveniente entrelaçar, ok, como queiras, uma resposta exacta, à altura dum anúncio unilateral ou dum teste americano, pouco mais que uma cruz riscada porque sim. Não formulou porquês, nem quanto à causa nem quanto à consequência, nem exibiu qualquer emoção, a menos que a aceitação desinteressada dum facto anunciado daquele modo possa significar uma qualquer emoção. Talvez nem tenha perdido o sorriso, não se pode dar por garantido, mas não deixa de ser o mais provável. Portanto, uma vez mais, absteve-se, embora não devesse, devia  antes tê-lo mandado passear, talvez, vai à merda, toma o tempo todo que quiseres e aproveita para te curar, boa sorte e até nunca, mas, para além do mais, isso ter-lhe-ia sido uma impossibilidade linguística.
E foi assim, cada um para seu lado, como não havia hipótese ou mera conveniência de deixar de acontecer. Na verdade, era do entendimento e da sensibilidade dela, a inominada, que os afectos, no caso, os amores, ou existem ou não, são do puro domínio da oferta e da aceitação, quer dizer, não se inventam, não se forçam, não se pedem, apenas se manifestam e, com sorte, declaram-se e, com uma boa dose de sorte, um ofertante coincide, em gloriosa reciprocidade, com um aceitante - embora isso exija aquele golpe de exposição inicial, haja coragem e ousadia, as dela talvez se tenham perdido nos confins da primeira dança com Artur Adriano e no resto que se lhe seguiu. Verdadeiramente, foi aquela ordem de entendimento que a levou a aceitar, como amor, o de Artur Adriano, mesmo sem declaração. E, assim, dentro do mesmo princípio, aceitou o seu anunciado afastamento, igual a cessação da oferta, paciência. Depois logo se veria! Ora, se o seu entender era tão correcto quanto cristalino, já esta esperança escondida, sim, tratava-se duma esperança, deixou muito a desejar, pois foi a causa de ela não ter optado pelo recomendável até nunca, o que teria sido deveras conveniente e teria poupado muito do depois a vir, passe a redundância.
Ela continuou, pois, a sua vida, como se nada. Ele, calcula-se a forma como deve ter ocupado o tempo de que dissera precisar, não foi muito esse tempo, talvez uma semana, e logo de telefonar e de a convidar para sair, e ela, de aceitar, como se nada, se vens é porque queres e eu, pelos vistos, também quero, coisa do domínio do não-dito, claro. E tudo recomeçou como se antes, este como se é, obviamente, mera ficção, nunca nada na vida funciona como se antes, muito menos o amor, embora assim possa iludir. E ele policiou, passei várias noites pela tua casa e a janela do teu quarto estava aberta e sem luz, por onde andaste? Talvez um sorriso dela por resposta, como quem diz, segui a vida, querias o quê?, e nenhuma interrogação, não era da maneira dela querer saber da vida dos outros, mesmo em se tratando do palerma do Artur Adriano, que se retirara por um tempo, e que ela, grande palerma, aceitara de volta.





 

quarta-feira, 5 de março de 2014

OS PRIMEIROS (E ÚLTIMOS) MORANGOS PARA ARTUR ADRIANO


 
Assim como ele, também ela tinha os olhos castanhos, um castanho banal, mas um formato original, desenhado em amêndoa, já o cabelo, igualmente castanho, brilhava em reflexos naturais, entre o louro escuro e o acobreado, a pele era branca e esplendorosa, cetim cor de marfim, o corpo bem delineado, suaves curvas certas nos lugares devidos, sem esquecer os ângulos, bem definidos, ossos exactos, perfeitamente colocados. Ah! e vestia bem e maquilhava-se ao de leve, um pouco de sombra, mero sublinhado, um pouco de blush cor de pêssego, desmaiado, o bâton castanho-chocolate da Crhistian Dior - tinha um número, seria o 67? -, realçando os lábios carnudos e sensuais, como os dele - puro fogo, quando se cruzavam! -, e, de perfume, embrulhava-se, discretamente, na eau de parfum Madame Rochas. Era linda, suave e delicada, como todos não se cansavam de declarar e demonstrar. Todos menos ele, o Artur Adriano, que fazia gala de se mostrar excepção, como se reconhecer-lhe a beleza e a elegância fosse matéria de inadmissível cedência, de impossível confissão, sabe-se lá de que atravessamento de personalidade. Até da fotografia de bebé que ela transportava na carteira ousava desdenhar. Só que os gestos desmentiam as palavras e ela preferia acreditar nos gestos, pois os gestos eram livres e as palavras não pareciam sê-lo. Afinal, ela não o tinha preso ou condicionado, sob ameaça ou promessa ou qualquer outra forma de subjugação, ela limitava-se a amá-lo, naturalmente, assim, como julgava ser da natureza o amor, como crescera na sua espera, sem preocupação ou pressa, ansiedade ou sequer pensamento, apenas coisa natural, destinada a acontecer e pronto. Mas cedo percebeu que as coisas não eram bem assim, como ficou bem à vista no episódio da primeira dança com Artur Adriano, já se falou nisso. E agiu como se nada, também já ficou dito. Teria sido por um talvez, uma interrogação, uma hipótese de diverso? Como poderá saber-se? E de que adianta, se foi assim que ela agiu?!
De resto, continuou a agir como se nada, ao menos durante algum tempo. Foi assim que, certo dia, animada pelo entusiasmo da dádiva e pela alegria da surpresa, comprou morangos, lavou-os escrupulosamente, retirou-lhes o verde da extremidade, adicionou-lhes açúcar, fechou-os numa caixa com tampa, embrulhou tudo num afectuoso sorriso e entregou-lhe, toma, preparei estes morangos para ti. Isto, no carro dele, o MGB azul, que a fora buscar. Artur Adriano sorriu um sorriso meio atrapalhado e atirou, melífluo, a minha mãe havia de me dizer para não comer, que podem estar enfeitiçados - ou seria embruxados? Crê-se , todavia, que chegou a provar os morangos, sabe-se lá preso em que medos, incutidos por uma mãe que talvez não fosse mulher ou talvez fosse.
Ela não fez o que devia, ou seja, não despejou a caixa dos morangos sobre a cabeça dele, molho vermelho a escorrer sobre os estofos, havia de ter sido lindo de assistir, o desespero pela mácula do impecável carro que, esse sim, ele tanto e tão declaradamente amava, não saiu do carro nem bateu estrondosamente com a porta, fazendo-a saltar das dobradiças ou lá o que é, não lhe chamou nenhum nome feio, no mínimo, cabrão, apenas não voltou a preparar morangos para o Artur Adriano, quem diz morangos diz qualquer outra doçura de boca e aconchego de coração. Quer dizer, por estranho que pareça, fez, justamente, o contrário, rendeu-se, entrou no jogo dele, o jogo da omissão das palavras tão necessárias quanto apetecidas, da negação da verbalização dos afectos, da rendição à crueza dos actos, por  mais significativos, apaixonados e empolgantes que pudessem ser ou parecer. Foi assim que a salvação do seu amor ditou -  elevadíssimo preço - reduzir o amor a simples mímica, pobre amostra, destituída de rosto ou expressão. Enfim, condenou-se a não amar, em nome do amor. Poderá haver contra-senso maior e mais disparatado? E assim ficou sem nome, porque perdeu a identidade. Por isso até aqui nunca apareceu nomeada, contrariamente a ele, o eterno Artur Adriano. O patético Artur Adriano. 
 
 
 
 


terça-feira, 4 de março de 2014

PAROLE, PAROLE

 
é triste e é maldito
o vazio das palavras inventadas
da ilusão ao engano
da fantasia ao nada
 
pode ferir e magoar
o jogo das palavras oferecidas, vãs,
usadas como dados de jogos de salão
 
melhor o silêncio que a mentira
melhor a ausência que a mímica do banal
disfarçada do branco puro da essência
da dádiva, do fundamental
 
antes se pague um preço alto
não à estereofonia de propagandas
promoções e ofertas outras
time-sharings garridos e sobrelotados
produção de oportunistas destituídos de ideais
 
 
 
Nota: música do CD Charles Aznavour and Friends; (espécie de) vídeo meu.
 
 
 


segunda-feira, 3 de março de 2014

O PRIMEIRO AVISO A ARTUR ADRIANO


Passaram a encontrar-se todos os dias, para o circuito dos cafés, dos almoços e jantares fora,  dos espectáculos e do mais, rotina de namorados, sem declarações acessórias, ele, porque era incapaz, ela porque prescindia do dito pelo demonstrado, e era por demais demonstrado que ele gostava dela, que outra razão para a procurar com aquela regularidade suíça? Da parte dela não havia dúvidas, o amor tinha estilhaçado todos os tédios, estava rendida, se bem que não subjugada, aquilo da primeira dança com Artur Adriano intuíra-lhe a cautela das defesas, má intuição, talvez.
E, assim, um incapaz de dizer, ao menos, gosto, e outra defendida de dizer amo passaram a conviver como se todas as declarações.
Veio o primeiro beijo, quer dizer, aquele beijo, e aquilo que se lhe seguiu, e o entendimento deles era perfeito, nos entusiasmos, no empolgamento, no prazer, nas notas espirituais e nas razões do intelecto, só por exemplo, ela tinha por hábito adivinhar-lhe o pensamento, e aí sim, ele declarava-se espantado de fascínio, escrevia uma palavra no guardanapo de papel - passava-se isto pelos cafés - ela escrevia-lhe o sentido, ele, outra palavra, ela, outra tradução, sempre incansável, sempre infalível, filtro a coar luz pura, deixando de fora qualquer hipótese de escuridão. Aí sim, a rendição dele tinha o absoluto da verdade e a ousadia da entrega, os seus olhos não deixavam omitir ou apenas entreter.
Por falar nos seus olhos, eram castanhos, talvez a puxar para o mel, e gostavam de passear por superfícies alheias, quer dizer, por outras mulheres, podendo ser belas ou nem tanto ou mesmo nada, as mais das vezes mero pretexto para causar ciúmes, mas ciúmes era fardo de que ela não padecia, melhor explicar, a razão, sua praticamente exclusiva conselheira de época, geometrizava, se ele anda contigo é porque gosta de ti, se deixar de gostar de ti logo deixa de andar contigo, nem outra coisa se pretende, em tal caso, pese o que pesar. Não se pode dizer que a razão não tivesse razão, embora se revelasse um tanto megera ao manietar a emoção, em resumo, lá bem no longe, ela tinha ciúmes, só que não exercia de ciumenta, quanto mais não fosse, para não se expor.
Já ele, o incapaz de dizer gosto, talvez frustrado na incapacidade de arrancar uma, mesmo só uma, confissão de ciúme, sabe-se lá se na sua cabeça equivalência de amo-te, não se inibia de armar episódios de ciumeira, acusando-a de olhar para  os outros e de conceder atenção desmedida e sorrisos provocantes aos amigos que lhe ia apresentando. Mentira, ela era apenas simpática e não retaliava a mímica voyeurista dele, nunca foi dada a retaliações, guiava-se por princípios e valores que tinha por seguros, não carecia de imitar alteridades.
Neste disparatado jogo em que se jogavam, ela achou, todavia, por bem, fazer-lhe um aviso sério, embora, como sempre, embrulhado na calma dum sorriso, sua maneira de ser, olha, Artur, podes olhar para quem quiseres, mas se e quando passares dos simples olhares, fazes o favor de me avisar, que eu não alinho em esquemas a três. Ele ouviu, sorriu e calou, pelo menos não há memória de que tenha respondido algo de jeito, por exemplo, que ideia, eu amo-te, ou apenas, que ideia, eu gosto é de ti. Mas isso, como já se sabe, nunca seria de esperar de Artur Adriano.
Só para que conste, eram ambos jovens, vinte e poucos anos, ele mais um do que ela.   
 
 
 
 
 

domingo, 2 de março de 2014

O PRIMEIRO ENCONTRO COM ARTUR ADRIANO


Estava sentada à mesa do café, hábito tão habitual  nas vidas dessa altura, de tomar a bica a seguir ao almoço, adoçada com uma hermeseta, ou talvez não, as hermesetas chegariam mais tarde, meio pacote de açúcar, a companhia dum pastel de nata, e não se sabe se de mais alguém, alguma amiga, talvez, mas já lá vai tempo demasiado para recordar o acessório. Ele aproximou-se, a melena alourada pendendo da direita para a esquerda ou ao contrário, sobre a testa alta, os lábios carnudos, tão sexy, enrolaram-se, posso sentar-me?, porquê?, subiram os olhos de gazela, e ele, gostava de te conhecer. Sentou-se, pois, o tempo justo para vinte e cinco tostões de palavras, longínquos estavam os cêntimos, a desaguar na troca dos números de telefone, e a deixá-la sob o charme do imediato da atracção física e duma indesmentível allure. Um protótipo, o protótipo do idealizado, isso é que ele era.
Voltou à mesa dos amigos e, mais tarde, viria a dizer-lhe que aquilo de a interpelar fora uma aposta, apostara em como conseguiria ser admitido à mesa dela, ela queria lá saber, nem sequer se sentiu objecto, como é cliché sentir-se qualquer sujeito de apostas, excluídos os cavalos de corrida e os galos de luta, aí é normal. Focava-se no que ia sucedendo e o facto foi que ele veio ter com  ela, de sua livre e espontânea vontade, e lhe pediu o número de telefone, para contacto futuro, como veio a acontecer, logo nos dias próximos, talvez no mesmo dia, mas inventar não vale, quando a memória estacionou demasiado longe, para mais fora de parque demarcado. Não fora ela a pedir-lhe que viesse, nem reparara nele, embora, nas afirmações de mais tarde, ele também o tenha insinuado, afirmado, aliás, duma maneira assim, tu fartaste-te de olhar para mim, para a mesa onde eu estava com os meus amigos. Ela achou estranho, não se lembrava nada de ter olhado assim, de ter, sequer, olhado, talvez já fosse ele a escapulir-se da vontade de estar com ela, como se fizesse mal gostar ou, pelo menos, estar interessado em alguém, ainda que transitoriamente. Não ligou nenhuma, ela, aliás, não ligou o suficiente e mais valia que o tivesse feito. Teria evitado muito depois, quer dizer, teria, então, evitado muito do depois. Mas são vidas, frase por que ele tinha elevado apreço e que imputava a uma amiga sua, sublinhava, enlevado, colocando-a, à amiga, nos píncaros dum qualquer Einstein, adaptado a génio de frases profundas, repletas de abismais certezas filosóficas, são vidas, grande treta. 
E foi assim, no encontro provocado no café, que começaram a cruzar a superfície das suas vidas. A cruzar a superfície das suas vidas, aí está uma frase que ela lhe deveria ter arremessado, em alguma ocasião de oportunidade, para devido ofuscamento da frase da treta, são vidas, também para que ele pudesse renovar o dicionário de citações de amigas cativas na memória. Sempre seria uma frase mais longa, pelo menos. E melhor, quer se queira, quer não. Mas, por essa altura, ela ainda não cultivava frases, nem, e isso é o pior, arremessava defesas, bem, defesas desse género, que as outras cedo se impuseram, na anomalia das fugas e negações e arremedos de.
Pouco tempo depois, iria dançar a primeira dança com Artur Adriano.  
 
 
 
 
 

A PRIMEIRA DANÇA COM ARTUR ADRIANO


Então, ele olhou para dentro dos mornos e sorridentes olhos dela, os dele igualmente, e declarou - sim, foi uma declaração, não um simples disse -, gostava que isto nunca acabasse, e ela, na gentileza da sua ingenuidade e na magnanimidade das promessas gloriosas, baliu o murmúrio, mas isto ainda agora começou
E era a pura verdade, era a primeira dança que dançavam juntos, bem colados, harmoniosos e deslizantes, alheios aos outros pares e, inclusivamente, à música, podendo isto ser mera suposição ou mesmo invenção, talvez para efeito literário, embora eles bem pudessem dançar sem musica, apenas o embalo da descoberta do amor, no caso dela, no dele, sabe-se lá, ela pensou que também.
Mas ele apressou-se a esclarecer - e isto já não podia ser tomado como uma declaração ou, mesmo, um simples disse, foi, antes, um desmentido - não, não me refiro a isso, refiro-me apenas a esta noite, a este momento, qualquer coisa do género, negando hipótese de promessa de entrega que não fosse o agora, isto aqui. Ela continuou a sorrir, não se descompôs, colou-se mais a ele, como se nada, não se deu por achada no seu acto falhado, ignora-se porquê, se por negação do mal estar da sua esperança rejeitada, se por negação da própria rejeição, coisa de retirar importância ao sentido das coisas ou à sua ameaça, coisas más, ameaça de frustrações e desgostos, como viriam, era o mais certo de esperar.
As despedidas foram por beijos quentes, até ao dia seguinte e aos próximos, pois tinham começado a andar juntos.
Apesar do equívoco, por aquela altura, ela estava convencida de ter encontrado aquele que estava destinada a encontrar, era aquele e correspondia a todos os cânones, ao menos os exteriores, que sabia ela do resto, que importância tinha o resto quando a credulidade era do tamanho da inocência e a inocência do tamanho do universo, quando ainda não tinha percebido que a realidade funcionava num registo diferente dos contos de fadas, quando ainda não tinha assimilado que isso do que dava por assumido do destino - dizer destino é dizer acaso ou algo que está inscrito acontecer, por natureza - era pura treta fantasista. Ainda era muito cedo para saber todas essas evidências e, assim, afocinhou de quatro no amor por Artur Adriano, o bonito e inteligente Artur Adriano, que já percorria o caminho para a gloriosa cátedra e tinha vergonha de dizer que o pai era polícia. E também tinha vergonha - ou outra qualquer diminuição impeditiva-, de dizer que gostava dela, mas isso só veio a saber-se depois, com a dispensável dádiva do tempo.