E,
todavia, naquela negação das palavras essenciais, que ela se adaptara a
partilhar - estranha partilha! - e naquela negação das evidências redentoras, quando
não na afirmação dos acintes idiotas, que eram as dele, e que a ela nem sequer
ocorrera retaliar, pode até dizer-se que se davam muito bem. Aliás, já se
referiu o seu entendimento a níveis vários, mas falta acrescentar a harmonia e os
sorrisos trocados, nos cumprimentos, nas conversas, até nas provocações, sempre.
Eram sorrisos que brilhavam como se tesouros – escondidos, já sabemos - e as palavras,
não as essenciais - também já sabemos -, mas as outras, as ditas, eram tecidas em vozes
calmas, na modulação da simpatia e do afecto. E havia ternura - embora a ternura que
havia fosse apenas isso, essa revelação escondida - e, pelo andamento dos factos, parecia ser quanto bastava, talvez
na lógica do ou isso ou nada, não,
não era essa a lógica, isso ela nunca teria aguentado, por muito o amor e o desejo. A lógica
era outra, era a lógica dos factos
falarem mais alto do que as palavras. Por outro lado – e pode parecer
traição da memória -, não se lembram zangas, distanciamentos já é outra
conversa, não com ela de protagonista, como está óbvio de adivinhar.
Corria
um tempo dos encontros diários e do tudo e do nada desses encontros, não se
conseguem quantificar os meses, mas sim, eram já alguns meses, ele começou a
parecer um pouco distante, talvez nem isso - este ponto não irradia muito claro,
não admira, embrulhado na bruma da memória, está bem, isto é expressão de hino
nacional, mas deixemos ficar, surgiu assim, sejamos fiéis ao primeiro
pensamento, como à recordação do primeiro amor ou de qualquer outro, aliás -, e,
talvez quando a foi levar a casa e se despediram, anunciou, sim, foi um
anúncio, não se tratou de coisa conversada, com antecedentes, diagnósticos e
prognósticos, foi uma crueza pura e simples, como pedra atirada a
charco, sem importar a consequência das ondas circulares ou a cabeça da pobre rã
atingida por acaso, enfim, está dito, foi um anúncio, tão cru como um vegetal
rijo, um rabanete branco de casca vermelha, pronto a rilhar, anunciou, preciso dum tempo, ou seria, preciso
dum tempo para pensar, seguramente não terá sido, acho
que precisamos dum tempo, tratou-se de algo unilateral, fechado,
rematado, não fundamentado nem de discutir. Será que manteve o sorriso, dessa
vez? E ela, numa serenidade que, por dentro, era altivez e talvez não fosse mais
nada, pelo hábito adquirido da autonegação, porque era negação do seu
essencial, no caso, o amor e o seu conveniente entrelaçar, ok, como queiras, uma resposta exacta, à altura dum anúncio
unilateral ou dum teste americano, pouco mais que uma cruz riscada porque sim. Não
formulou porquês, nem quanto à causa nem quanto à consequência, nem exibiu
qualquer emoção, a menos que a aceitação desinteressada dum facto anunciado daquele
modo possa significar uma qualquer emoção. Talvez nem tenha perdido o sorriso,
não se pode dar por garantido, mas não deixa de ser o mais provável. Portanto, uma
vez mais, absteve-se, embora não devesse, devia antes tê-lo mandado passear, talvez, vai à merda, toma o tempo todo que quiseres
e aproveita para te curar, boa sorte e até nunca, mas, para além do mais, isso ter-lhe-ia sido uma impossibilidade linguística.
E foi
assim, cada um para seu lado, como não havia hipótese ou mera conveniência de
deixar de acontecer. Na verdade, era do entendimento e da sensibilidade dela, a inominada, que os
afectos, no caso, os amores, ou existem ou não, são do puro domínio da oferta e
da aceitação, quer dizer, não se inventam, não se forçam, não se pedem, apenas
se manifestam e, com sorte, declaram-se e, com uma boa dose de sorte, um ofertante
coincide, em gloriosa reciprocidade, com um aceitante - embora isso exija aquele golpe de exposição inicial, haja coragem e ousadia, as dela talvez se tenham perdido nos confins da primeira dança com Artur Adriano e no resto que se lhe seguiu. Verdadeiramente, foi
aquela ordem de entendimento que a levou a aceitar, como amor, o de Artur Adriano,
mesmo sem declaração. E, assim, dentro do mesmo princípio, aceitou o
seu anunciado afastamento, igual a cessação da oferta, paciência. Depois logo se veria!
Ora, se o seu entender era tão correcto quanto cristalino, já esta
esperança escondida, sim, tratava-se duma esperança, deixou muito a desejar,
pois foi a causa de ela não ter optado pelo recomendável até nunca, o que teria sido deveras conveniente e teria poupado
muito do depois a vir, passe a redundância.
Ela continuou,
pois, a sua vida, como se nada. Ele, calcula-se a forma como deve ter ocupado o
tempo de que dissera precisar, não foi muito esse tempo, talvez uma semana, e
logo de telefonar e de a convidar para sair, e ela, de aceitar, como se nada,
se vens é porque queres e eu, pelos vistos, também quero, coisa do domínio do
não-dito, claro. E tudo recomeçou como se antes, este como se é, obviamente, mera ficção,
nunca nada na vida funciona como se antes, muito menos o amor,
embora assim possa iludir. E ele policiou, passei várias noites pela tua casa e a janela do teu quarto estava
aberta e sem luz, por onde andaste? Talvez um sorriso dela por resposta, como quem diz, segui a vida, querias o quê?, e nenhuma interrogação, não era da maneira dela querer saber da vida dos
outros, mesmo em se tratando do palerma do Artur Adriano, que se retirara por um tempo, e que ela, grande palerma, aceitara de volta.
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