quarta-feira, 5 de março de 2014

OS PRIMEIROS (E ÚLTIMOS) MORANGOS PARA ARTUR ADRIANO


 
Assim como ele, também ela tinha os olhos castanhos, um castanho banal, mas um formato original, desenhado em amêndoa, já o cabelo, igualmente castanho, brilhava em reflexos naturais, entre o louro escuro e o acobreado, a pele era branca e esplendorosa, cetim cor de marfim, o corpo bem delineado, suaves curvas certas nos lugares devidos, sem esquecer os ângulos, bem definidos, ossos exactos, perfeitamente colocados. Ah! e vestia bem e maquilhava-se ao de leve, um pouco de sombra, mero sublinhado, um pouco de blush cor de pêssego, desmaiado, o bâton castanho-chocolate da Crhistian Dior - tinha um número, seria o 67? -, realçando os lábios carnudos e sensuais, como os dele - puro fogo, quando se cruzavam! -, e, de perfume, embrulhava-se, discretamente, na eau de parfum Madame Rochas. Era linda, suave e delicada, como todos não se cansavam de declarar e demonstrar. Todos menos ele, o Artur Adriano, que fazia gala de se mostrar excepção, como se reconhecer-lhe a beleza e a elegância fosse matéria de inadmissível cedência, de impossível confissão, sabe-se lá de que atravessamento de personalidade. Até da fotografia de bebé que ela transportava na carteira ousava desdenhar. Só que os gestos desmentiam as palavras e ela preferia acreditar nos gestos, pois os gestos eram livres e as palavras não pareciam sê-lo. Afinal, ela não o tinha preso ou condicionado, sob ameaça ou promessa ou qualquer outra forma de subjugação, ela limitava-se a amá-lo, naturalmente, assim, como julgava ser da natureza o amor, como crescera na sua espera, sem preocupação ou pressa, ansiedade ou sequer pensamento, apenas coisa natural, destinada a acontecer e pronto. Mas cedo percebeu que as coisas não eram bem assim, como ficou bem à vista no episódio da primeira dança com Artur Adriano, já se falou nisso. E agiu como se nada, também já ficou dito. Teria sido por um talvez, uma interrogação, uma hipótese de diverso? Como poderá saber-se? E de que adianta, se foi assim que ela agiu?!
De resto, continuou a agir como se nada, ao menos durante algum tempo. Foi assim que, certo dia, animada pelo entusiasmo da dádiva e pela alegria da surpresa, comprou morangos, lavou-os escrupulosamente, retirou-lhes o verde da extremidade, adicionou-lhes açúcar, fechou-os numa caixa com tampa, embrulhou tudo num afectuoso sorriso e entregou-lhe, toma, preparei estes morangos para ti. Isto, no carro dele, o MGB azul, que a fora buscar. Artur Adriano sorriu um sorriso meio atrapalhado e atirou, melífluo, a minha mãe havia de me dizer para não comer, que podem estar enfeitiçados - ou seria embruxados? Crê-se , todavia, que chegou a provar os morangos, sabe-se lá preso em que medos, incutidos por uma mãe que talvez não fosse mulher ou talvez fosse.
Ela não fez o que devia, ou seja, não despejou a caixa dos morangos sobre a cabeça dele, molho vermelho a escorrer sobre os estofos, havia de ter sido lindo de assistir, o desespero pela mácula do impecável carro que, esse sim, ele tanto e tão declaradamente amava, não saiu do carro nem bateu estrondosamente com a porta, fazendo-a saltar das dobradiças ou lá o que é, não lhe chamou nenhum nome feio, no mínimo, cabrão, apenas não voltou a preparar morangos para o Artur Adriano, quem diz morangos diz qualquer outra doçura de boca e aconchego de coração. Quer dizer, por estranho que pareça, fez, justamente, o contrário, rendeu-se, entrou no jogo dele, o jogo da omissão das palavras tão necessárias quanto apetecidas, da negação da verbalização dos afectos, da rendição à crueza dos actos, por  mais significativos, apaixonados e empolgantes que pudessem ser ou parecer. Foi assim que a salvação do seu amor ditou -  elevadíssimo preço - reduzir o amor a simples mímica, pobre amostra, destituída de rosto ou expressão. Enfim, condenou-se a não amar, em nome do amor. Poderá haver contra-senso maior e mais disparatado? E assim ficou sem nome, porque perdeu a identidade. Por isso até aqui nunca apareceu nomeada, contrariamente a ele, o eterno Artur Adriano. O patético Artur Adriano. 
 
 
 
 


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