quinta-feira, 1 de maio de 2014

IMPLOSÃO

 
Começou a deixar-se sofrer pelo sofrimento.
 
Não foi no dia x, essas coisas não mordem assim, dum dia para o outro, quais revelações místicas. Vinha sofrendo de há bastante tempo, ora era isto ora aquilo, nem sempre sendo iguais, isto e aquilo, embora houvesse um padrão mais ou menos regular e aquela sombra negra, tecida de ansiedade e angústia, que despertara cedo e ficara para lhe fazer companhia. Manifestava-se de diferentes formas, oscilando entre o tédio inicial, o esquecimento do tédio, pela descoberta da vida, logo seguido do alarme de repetidos e incompreendidos fracassos, a demissão, o desgosto negado, depositado no fundo de si como uma pequena pedra, apercebida com a obscuridade e o enigma da rejeição, mas com a dor viva da ferida exposta.
 
Muito mais se poderia dizer, por exemplo, que os tons do tédio e da angústia eram muito bem definidos, respectivamente, cinzento e castanho, ambos escuros. Até os pesadelos se lhe apresentavam vestidos de castanho, fechados numa penumbra espessa e agoniante.
Mas não se justifica dizer mais, como dados de diagnóstico, parecem suficientes.
 
Automedicou-se, por força da força de vontade, da luta contínua e, muito importante, pela arte do disfarce, porque não queria revelar as suas sombras, disso tinha a certeza absoluta, e, então, não parava de engolir sombras, até que se lhe formou uma bola na garganta.
O seu objectivo foi atingido, ninguém reparou, ou isso ou fingimento, que é fácil desistir das solidões do lado, são isso as solidões, uma monumental forma de desistência alheia.
 
Passaram tempos e começou a notar protuberâncias internas, primeiro no abdómen, depois, no peito, depois mais acima e por aí fora. De cada vez, lá se deslocava ao médico, o diagnóstico surgia com uma certeza cristalina, o senhor tem aqui uma massa em crescimento, é preciso extrair. Extraída a massa e submetida a análise, o médico mostrava-se perplexo e pouco à vontade, quando lhe comunicava o resultado, olhe, tudo se resumiu a uma pequena pedra, que, uma vez exposta, se evaporou em sombras, não se encontra explicação, lamento; mas sente-se melhor?
 
Eram melhoras de pouca dura, logo se evidenciava novo volume em expansão, repetindo-se os diagnósticos e as comunicações finais.
 
Por essa altura, extenuado de tanta força de vontade, ele começou, verdadeiramente, a sofrer o seu sofrimento. Na carne!
 
Até que um dia, não interessando a circunstância meteorológica ou qualquer outra - motivo por que se não descrevem -, num último esforço, este não sofrido, engoliu a bola presa na garganta, suspirou aliviado, e implodiu.
Estava sentado num banco de jardim e uma criança que passava perto perguntou ao pai, pendurada da sua mão, o que é aquela nuvem branca a subir do banco, pai? - Que nuvem, filha? - Não vês, parece um anjo. Não, não via.
 



Nota: Curiosamente, ao escrever este texto, lembrei-me de Sándor Márai, concretamente, do seu romance, A Irmã.
 
 
 
 
 


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