terça-feira, 10 de junho de 2014

A TRISTE MORTE DO SR. MELGA

 
Insistes, mas tenho a certeza de que não foi assim, como dizes. Ele não estava cansado da vida, de forma nenhuma, andava até muito entusiasmado, aliás, andava não é o termo, voava, voava até muito entusiasmado, assim é que está certo. Não insistas, não tens razão, não é verdade que se tenha atirado da janela, num desespero súbito ou programado. Ok., aí concedo, não há desesperos programados, quando muito fingimentos, e também não há desesperos súbitos, quando muito, manifestações súbitas de desesperos acumulados, mas isso não interessa ao caso, pois estava calor, como ele gostava, o sol brilhava, como ele gostava, e havia árvores e flores por perto, como ele gostava. E, caso se tivesse atirado da janela, tinha aterrado de cabeça e não de costas. Dizes-me que não, que não gostava de calor, de sol, de árvores nem de flores? Então gostava de quê, de escuridão, de mofo, de cimento armado? Ai era isso, gostava de se fechar em casa e que ninguém o chateasse e estava farto de estar fechado em casa e de ninguém o chatear? Não, não podemos estar a falar do mesmo!
Talvez seja isso, eu falo do Sr. Fernandes, do 7º esq.º, e não tenho a menor dúvida de que se atirou e, na verdade, aterrou de cabeça, por isso aquela azáfama das démarches para o reconhecimento, ninguém de família ou amigos por perto - não tinha -, e aquela papa espalhada no passeio, pronta a ser pisada por um cão ou um humano distraído, não fosse a eficácia do SRM.
O que é isso, o SRM?
Ai não sabes, pensei que sabias tudo, é o Serviço de Recolha de Mortos. E agora, estás convencido?
Estou, tens razão, eu estava a pensar noutro caso, aterrou de costas, não se partiu nem se derreteu, porque era demasiado leve, ainda tentou dar a volta, mas em vão. Deve ter sofrido uma eternidade de horrores, assim, de costas, a ver o mundo ao contrário, apardalado, sem a noção exacta do que lhe estava a acontecer, e com uma enorme sensação de impotência. Deve ser tramado. Meteu-me imensa impressão quando lhe vi as patas hirtas, denunciadoras dos últimos momentos fatais. Pobrezinho!
As patas? Mas estás a falar de quê? Tens a certeza que estás a atinar bem?
E porque não havia de estar? Estou a falar do Sr. Melga, ali do alto.
Ok., como queiras...
 
 
 
 
 
 
 

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