quarta-feira, 30 de julho de 2014

A SOMBRA DAS ÁRVORES


Há umas noites atrás, em pleno jantar de casamento - do filho duma amiga -, a conversa evoluiu para assuntos de vária ordem, desde livros, filmes e peças de teatro ao misticismo da natureza - chamo-lhe assim, por não me ocorrer designação mais apropriada. Na verdade, o cavalheiro que se sentava à minha esquerda aventou a hipótese de as árvores falarem entre si. O da minha direita, talvez mais pragmático e menos poético, manifestou o seu justo cepticismo, perguntando, mas como, como podem as árvores falar? Eu, que estava de ouvinte, acudi em defesa do primeiro, corroborando a hipótese, sim, era bem possível que as árvores falassem, que, mesmo não demonstrado, era facto de admitir, no magnífico reino da natureza - note-se que amo a natureza, em geral, e as árvores, em particular. Acrescentei, em tom convicto, que, nos bosques da Noruega, tinha alcançado a certeza da existência de duendes, não me perguntassem se cheguei a ver algum... Por entre sorrisos, meus e do senhor céptico, acabámos por aceitar que sim, as árvores dialogam. O autor da afirmação justificava-se com a versão que lhe tinha sido referida por um cuidador de árvores, a qual, todavia, não consigo reproduzir. Para mim, o facto de as árvores falarem e dos duendes existirem em certos locais é do puro domínio do pensamento mágico e, como tal, não carece de prova, basta acreditar nesta espécie de pensamento e nas suas entusiasmantes potencialidades. Depois voltámos à conversa cultural - muito interessante, aliás -, enquanto os noivos, melhor, os recém-casados, trocavam brindes e beijos.
 
Ontem, já noutro registo, dei comigo a interrogar-me sobre quem dará sombra às árvores. Quer dizer, as benditas árvores prodigalizam flores, frutos e sombra, a preciosa sombra, mas, bem vistas as coisas, quem dará sombra às árvores? Aparentemente, ninguém. E a minha divagação espraiou-se e dei comigo a pensar que isso mesmo sucede com certas pessoas, não são a regra, não são muitas, mas há pessoas que passam por esta vida desdobrando-se em flores, frutos e sombras refrescantes, de que muitos beneficiam, mas, aparentemente, ninguém cuida de lhes proporcionar flores, frutos ou sombras refrescantes. E isto já não é do reino do pensamento mágico. 
 


 
 
 
 
 
 

segunda-feira, 28 de julho de 2014

A INVENÇÃO DO DESASSOSSEGO

 
então resolveste seguir por aquela estrada que se desdobrava em infindos quilómetros, o carro evoluía a uma velocidade razoavelmente elevada e constante e a tua atenção prendia-se nos lados dos quilómetros, sempre mais e mais quilómetros, que, embora tragados pela monotonia do motor, pareciam repetir-se numa sucessão de infinitos. aparências, como bem sabias, sabes.
os lados espalhavam-se, planícies de verde musgo colado, desenhadas em formas estranhas, arredondadas, como se corpos adormecidos se lhes escondessem por baixo, não todo o volume de corpos adormecidos, mas a saliência de partes soltas de corpos adormecidos, talvez abandonados, é isso, abandonados, perdidos de há séculos de abandono. que se esbatiam - as planícies - ao fundo, lá muito ao fundo, longe, na fuligem intervalada de verde de montanhas cujas bocas bem poderiam ter sido as desamorosas mães daqueles submersos corpos arredondados.
continuavas a olhar, os teus olhos, o fascínio dos teus olhos, desabituados desta espécie de assombro trazido pela diferença, sempre à espera de ver aqueles corpos levantarem-se, o musgo rasteiro a elevar-se como cabelo cortado à escovinha, depois um ombro feito de lava, uma mão nos seus cinco dedos retorcidos e uma boca gritando surdamente à tua passagem, à passagem do carro, como quem pede boleia, tirem-me daqui, levem-me para onde possa reconhecer-me, saber donde vim, esquecer-me desta prisão de séculos e sepultura.
era assim aquela terra, a terra estendida nas bordas dos quilómetros infindáveis.
na verdade, era um lugar desalmado, no estrito sentido de não se vislumbrar que fosse ocupado, sequer, por uma única alma, alma de gente, entenda-se. e, no entanto, era um lugar com alma, com a animação própria da sobriedade, da estranheza e da imponência de certos elementos. e sempre poderá dizer-se que havia por lá umas alminhas, mas habitavam ovelhas, agrupadas em peludos montículos brancos, muito rechonchudas, por vezes misturava-se uma ovelha negra ou uma cabra, também negra, e todas por lá andavam, entretidas, a olhar o pasto musgo com os dentes leitosos, indiferentes a ti e ao carro em que te transportavas, te transportavam. e também havia uns pequenos grupos de vacas e outros de cavalos, todos fazendo o mesmo, mordendo a verdura com os olhos, ou então, talvez saciados dessa fome, encostando os focinhos num jeito que só podia ser de beijo ou, talvez cansados do amor, deitando-se de lado, com os dentes mordendo o céu, carregado de nuvens ricas de cinzento e de formas caprichosas, que caminhavam empurradas pelo vento constante. Talvez mordessem o vento, também.
não paravas de olhar e absorver a paisagem repetida mas cambiante - porque, num repente, a fuligem das colinas longínquas elevava-se em formas mais estranhas ou escurecia num tom diferente ou então brilhava de branco, já não era noite, era luz, e porque, num repente, um braço de água viva atravessava a planície e prometia uma frescura que negava aquela cinza e aquelas formas adormecidas sob os lados dos quilómetros. não paravas de olhar e absorver a paisagem desigual, poderosa e, como tal, neutra, enquanto outros conversavam ou conversavam e riam, ou dormiam (um chegou, mesmo, a ressonar).
esses seguiam contigo, no carro grande, que parecia vomitar quilómetros, em vez de os engolir, sempre mais e mais e mais, e mais um grupinho de ovelhas saciadas e outro de vacas saciadas e, ainda, outro de cavalos saciados e ninguém, absolutamente ninguém, nenhuma pessoa. todos esses seres entregues à natureza, por sua conta e risco, nos seus pequenos grupos, separados uns dos outros por uma imensidão de quilómetros percorridos e a percorrer. nenhum homem, nenhuma mulher, nenhuma criança. apesar duma ou outra casa, tão minúscula na grandiosa dimensão da paisagem, prestes a ser engolida pela vastidão, como se desabitada, à cautela.
e então pensaste coisas estrambólicas, assim tipo, que as ovelhas talvez tivessem alma, quem diz ovelhas diz vacas e cavalos, e que as almas de todos eles eram mais pacíficas do que as humanas, e que mais valera que deus se tivesse ficado por aí. o deus das ovelhas. um deus sem necessidade de reconhecimento e de adoração, um não-deus, portanto. só que depois deve-se ter cansado daquele pasmo do pasto e daquela simplicidade dos encostos de focinho e daquela paz de corpos refastelados de lado no verde musgo sobre cinza e resolveu inventar. e vai daí, inventou o ser humano e este pôs-se logo a inventar o desassossego. e, para começar, atemorizado por quilómetros e quilómetros de tundra, e outras coisas mais complexas e inexplicadas, inventou deus.
   
 




 
 
 
 



 
 
  
 
 
 

terça-feira, 22 de julho de 2014

ICELAND: THIS AND MUCH MORE!

 
Por vezes é uma simples palavra e lá estou eu a cavalgar no sonho. Normalmente sucede com palavras que sugerem lonjura, mistério, contraste, isolamento, espiritualidade... E não, não me refiro às palavras dos livros, embora também estes me levem por mundos paralelos (exteriores, interiores?) e me pareça que não posso passar sem eles - afirmação esta, aliás,  não verídica, pois, sendo necessário ou imposto, acabamos por nos render a toda a espécie de ausências, é a genética da sobrevivência, tão marcada nos humanos e, de resto, em todos os seres. Mas não, não me refiro a livros, antes a viagens.
Assim se me têm imposto muitas delas, por via do apelo duma palavra, dum nome, não um qualquer nome, mas, repito, um que sugira lonjura, mistério, contraste, isolamento, espiritualidade... ou qualquer outro dos motivos que me despertam a necessidade (urgência, desespero?) da partida.
A partida, a viagem, corresponde a um estado ideal, próprio da latência do sonho, ao qual chamo em trânsito. Trata-se duma espécie de suspensão, em que é possível libertar o espírito e o pensamento, sobrevoar as nuvens, cintilar para além das estrelas, confundir-se com as árvores, aproximar-se da estranheza e da profundidade, flutuar sem linha de partida ou de regresso, como se, apenas como se...
Ah! impõe-se esclarecer, tais palavras têm a ver com natureza e com diferença, não são as que me puxam para as metrópoles, embora também ame pendurar-me nas metrópoles, mas aí é diferente, aí o apelo é o movimento, a agitação, as realizações humanas, feitas arte ou outra coisa qualquer, enfim, não se trata do sonho, trata-se dum propósito, não se trata de fusão mística, mas de  devorar a realidade.
Essas palavras são, por exemplo, Escandinávia, Alaska, Japão...
A palavra concreta de que agora falo é Islândia, I-C-E-L-A-N-D!
Na verdade, a palavra fala por si, soletra um conjunto de paisagens e visões susceptíveis de me levantar em voo, poisar em modo de flutuação, e constatar a veracidade do apelo, enfim, da sedução.
É espantosa a riqueza, variedade e força cénica das paisagens islandesas. Sonhei com elas durante uns tempos, desta vez, talvez cerca de um a dois anos. Depois parti, entretanto voltei, e, enquanto não reduzo as maravilhosas memórias da viagem à condição de testemunho escrito - que, talvez, vá partilhando por aqui -, deixo algumas das muitíssimas imagens que por lá captei, naquela espécie de ilusão de materializar o estado de sonho, prévio e determinante do estado de em trânsito e, mediatamente, do estado de regresso à realidade. Apesar de prosaico, talvez banal, este estado também possui a sua valia, porque a realidade já nunca será a mesma, enriqueceu, pelo caminho, quer dizer, não propriamente a realidade, o viajante, neste caso, eu...