quinta-feira, 3 de julho de 2014

A NÃO HISTÓRIA DE VLADIMIR BLUE (IV)

 
Todavia, estacou, inflectiu resolutamente a direcção, e retomou o seu lugar no banco das tirinhas de madeira. Tinha de continuar com aquele exercício, organizar o passado, por forma a conseguir a paz. Não digo a paz perfeita, mas a minha ideia de um pouco de sossego, não quero evadir-me sem ter compreendido tudo, chegar a um novo inferno sem ter esgotado as possibilidades de compreensão e afastamento deste, murmurou, através dos seus lábios frios, cobertos da geada da desolação. Os olhos abriram-se-lhe num alento determinado, deixando a surpresa estampada na invisibilidade da Sombra, que se ajeitou, cuidadosamente, ao seu lado, e, em tom mais elevado, afirmou, então vamos lá a isto!
Natasha, agora mais lesta, desviou-se da violência do golpe de punho de Piotr, que aterrou, em cheio, na parede, acompanhado dum ruído rachado de ossos espatifados, enquanto ele se dobrava de dor, numa expressão primeira de primazia duma emoção alternativa à habitual, a da violência do ódio. Então, pela primeira vez, como por efeito dum súbito relâmpago, ela percebeu tudo com a clareza das revelações inesperadas e com a determinação das decisões imprescindíveis. E com mais alguma coisa, que a levou a estourar numa monumental gargalhada, uma espécie de gozo há muito reprimido, mas era gozo de si própria, pois se apercebeu da estupidez com que se deixara dominar por aquele anormal, que, afinal, talvez não passasse dum humano frágil, ou seja, sujeito ao sofrimento da dor, não é nisto que consiste a fragilidade humana? Enquanto isso, ele desdobrava o corpo em violentos espasmos de dor, esquecido até da fúria que o riso dela poderia ter-lhe causado, em circunstâncias normais, e emitia guinchos encharcados em lágrimas de desespero. Pediu-lhe que o ajudasse, mas ela tinha percebido a sua liberdade e a do filho que transportava na barriga e no coração e, continuando a rir, dirigiu-se ao exíguo quarto, amarfanhou o essencial dos seus pertences gastos numa velha mala, que já tinha servido para a fuga anterior, aquela que a trouxera da casa materna para a deste triste fenómeno, por quem até há momentos se julgara completamente manietada, e, passando-lhe, ostensivamente, à frente, agora iluminada por um sorriso neutro, declamou, adeus Piotr, talvez fosse boa ideia ires ao hospital. Distraído das dores por aquela visão impensável, logo impossível, admitiu estar a delirar, desmaiou de boca aberta, para ali deitado no chão frio, e ela partiu, animada pela ideia de nunca mais o ver. Só não sabia para onde ia, nem o que fazer, apenas tinha um plano, salvar-se para salvar o filho e também por si, se não fosse também por si, como poderia salvar o filho? Naquele mesmo dia, após voltas e voltas pelas ruas, dirigiu-se a uma esquadra e pediu que lhe indicassem o Centro de Apoio a Jovens Mães Solteiras (CAJMS), tinha 18 anos, os suficientes para saber da existência de tal instituição. O Polícia que a atendeu pretendeu saber antecedentes, mas ela não quis entrar por aí, afinal era maior de idade e nada nem ninguém a poderia obrigar a prestar satisfações, nem um qualquer polícia curioso e, acima de tudo, na sua obsessão de não mais se cruzar com Piotr, achou por bem não mencionar a sua existência, causa do seu estado e da sua determinação. Após uma insistência secante e um tanto ou quanto ameaçadora, o polícia desistiu e conduziu-a ao CAJMS, onde foi recebida por uma voluntária, que a informou sobre as regras de acolhimento e a admitiu, levando-a a uma camarata, onde se encontravam cinco jovens mulheres, que a olharam com animosidade, como se onde cabem cinco não devessem caber seis e como se as suas histórias merecessem uma atenção que a dela não deveria merecer. Quero lá saber, se pude aguentar o monstro também me hei-de aguentar com estas, pensou ela, ainda cheia da determinação inicial e concentrando as suas forças na previsualização da construção do futuro. Então centrou-se no nome a dar ao menino, sim, havia de ser um menino.
A Sombra notou uma quase imperceptível elevação da cabeça de Vladimir Blue, suspeitando-lhe um brilho inusitado nos olhos, que percebeu serem dum cinzento intenso, rodeados de finas rugas de expressão, próprias de quem se interroga constantemente, com uma angústia costurada. Depois percebeu que esse brilho era afinal um princípio de sorriso e notou que a tensão dos bolsos da gabardine se tinha distendido um pouco, só um pouco, mas significativo, se comparado com o estado habitual. Afinal talvez tenha tido uma infância, pensou a Sombra.
Distraída nesta congeminação, nem se apercebeu de que Vladimir Blue já não estava ao seu lado, perdendo-se o seu rasto atrás dum aglomerado de árvores frondosas, onde já o não conseguiu recuperar, talvez estivesse cansado de recordar, talvez quisesse ficar por um tempo com o fumo daquela recordação boa, a da mãe entusiasmada, concentrada no amanhã de ambos, como se fossem um só, e tivesse retomado o seu passo apressado para interromper pensamentos outros. Isto era o que a Sombra pensava, enquanto, distraída da sua inépcia, se confortava na promessa de que, no dia seguinte, haveria de prosseguir, com êxito, a sua tarefa indagatória. As Sombras, como as pessoas, têm sempre tendência a encontrar desculpas para os seus próprios falhanços, mesmo quando parecem querer responsabilizar-se pelos mesmos, no que parece ser uma forma de autopunição desculpabilizante.
 
 
 

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