domingo, 31 de agosto de 2014

RIO LARGO, RIO AZUL

 
ao fundo, o rio largo, soberba passadeira azul
debruada da altura verde das colinas
 
omito os monstros esporádicos de cimento armado
feias imposições, mal situadas
o lado impróprio da realidade
 
podiam pintar-lhes paisagens em trompe l`oeil
ninguém se lembrou, parece
deviam pintar-lhes paisagens em trompe l`oeil
ninguém reparou, parece  
outras tantas colinas, salpicadas de flores
um rio outro, paralelo
pássaros brancos, rodeados de prata
meros exemplos, a multiplicar
 
abstraio dos monstros esporádicos de cimento armado
apago-os com um trompe l`oeil imaginário
fixo-me sobre e é azul, um azul sem mancha ou inquietação
desço os olhos, mergulho picado sobre o rio
superfície  ao de leve franzida
suave manto de crepon
por lá deslizam anónimos transeuntes
levados por velas brancas, serenas
o vento é breve, apenas se percebe na quebra do calor
fim de Verão, já escurece pelas 20H
 
vou tecendo o meu contínuo em trompe l`oeil
a harmonia merece a prevalência que a minha sobrevivência exige
quem diz harmonia diz assim
outra coisa qualquer
 
claro que não é outra coisa qualquer
sei o que é e basta
mesmo que em trompe l`oeil
esta realidade é minha
este contínuo é meu
e vou tecendo...
 
 
  
 Nota: imagem obtida em pesquisa do Google.
 
  
 
 

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

A NÃO HISTÓRIA DE VLADIMIR BLUE (VI)

 Encostada ao portão verde, acabou por se deixar adormecer, na longa espera até às três da tarde, hora da chegada pontual de Vladimir Blue. Valeu-lhe o latido do cachorro branco da véspera, mesmo a tempo de surpreender a entrada do outro. Mais uma vez deixara escapar a sua procedência, tinha que se por mais atenta. Como na véspera – e como nos múltiplos dias que se seguiriam – acompanhou, cautelosamente, o percurso apressado de Vladimir Blue até ao banco de trás do recato da velha arrecadação, e esperou que este começasse a murmurar, o que, após longa meia hora de inquietação exacerbada, em que as mãos nodosas pareciam rebentar a resistência exausta dos bolsos da gabardine, acabou por suceder. Então, num esticão imobilizador, como quem toma uma decisão súbita, mas inevitável, Vladimir Blue começou os murmúrios, por entre a cal estalada dos seus lábios ressequidos.
Naquela altura, Natasha estava feliz e, como tal, parecia ainda mais bonita, com o brilho dos olhos verdes reacendido e o dourado dos cabelos a reluzir em ondas sobre as costas, como se fosse um mar batido pelo sol de fim de tarde. O corpo franzino não perdera a elegância, nem sequer interrompida pela curta barriga lançada para a frente, orgulhosamente adiantada aos passos saltitantes, qual excrescência de felicidade sobrada do lodaçal do desvario amoroso, que, tão brevemente, se transformara no inferno que já se sabe. Sim, a violência de Piotr não datava da notícia da gravidez, antes se revelara na aquisição da posse, quase logo a seguir à entrega que, de si própria, lhe fizera Natasha, debandada da casa materna, sem arrepio de remorso ou nostalgia, tal o amor que sentia por ele ou, pelo menos, julgava sentir. Mas, agora, ela estava feliz, não pensava nisso, nem sequer na vitória da libertação, conseguida com esta nova fuga, o decidido e vitorioso abandono de Piotr. Então, o seu objectivo foi escolher nome para a criança, e o nome foi Vladimir, da cidade por onde passara na sua única viagem feliz, e Blue, dum cachorro de desenhos animados, que o pai lhe dera a conhecer e de que lhe oferecera uma réplica em peluche.
E assim fiquei a chamar-me Vladimir Blue – articulou o próprio, para além dos simples murmúrios, novamente com o brilho no olhar habitualmente esvaído, pois sabia do carinho que lhe ditara a identidade.
Portanto, chama-se Vladimir Blue – comentou a Sombra consigo própria, talvez um pouco confusa com a origem daquele nome. Mas que importa a estranheza dum nome se foi escolhido com tanta ternura! - pensou, enquanto notou a espécie de luzinha saída do fundo dos olhos de Vladimir Blue, que parecia ser sinónimo de sorriso, o único equivalente de sorriso que aqueles olhos tinham sido capazes de revelar, ao menos até ao presente.
O pai de Natasha desaparecera no mar da pesca, sem retorno sequer dum resto de corpo carcomido pelos peixes. Partiu uma madrugada, como tantas outras, o mar encheu-se de raivas, as nuvens desceram, ocultando tudo quanto havia para ver, e o resto era o mistério, não tão misterioso assim, dum barco a dar à costa, em momentos e pedaços sucessivos, como se peças desconjuntadas dum puzzle desconstruído pelas mãos duma criança inábil. Os corpos dos dois companheiros ainda apareceram, no espaço de dias soltos e angustiados, preenchidos pelo choro e as rezas das viúvas e dos filhos, aglomerados na praia, mas, como já foi dito, o do pai de Natasha nunca mais foi visto, sugado pela boca raivosa do mar, ao que todos supunham, pela ordem natural das coisas. Mas Natasha ainda não saíra da infância, não ultrapassara os seis ou sete anos e, como tal, ainda desconhecia a ordem natural das coisas e, fosse por isso ou por outra razão qualquer, quando a mãe e todos os outros já tinham desistido, continuou a ir todos os dias à praia, onde, aconchegada numa rocha como pássaro em ninho, esperava, convictamente, o regresso do pai, sempre acompanhada do seu cãozinho de peluche chamado Blue. Assim se perdia e gastava o verde dos olhos, perscrutando o longe do mar horas a fio, naquela espera que era mais do que esperança, embora um pouco menos do que certeza absoluta, não que ela soubesse tais distinções, por essa altura. Por vezes, parecia-lhe ver o corpo atlético do pai a emergir do mar, num passo lento mas determinado, pisando a areia na sua direcção, e, então, largava o ninho da sua rocha e corria na direcção daquela figura curtida pelo sol e pelo vento, sorrindo e gritando, pai, pai. Depois, como o pai se tornasse mais longe até desaparecer num vestígio de segundo, ela estacava, perplexa, engolia o som, iap, iap, que se lhe prendia na garganta enrolado num soluço seco, deixava-se cair, mesmo na fímbria do mar, ao alcance da espuma da última onda, e batia com as pequenas mãos na areia, enquanto Blue a observava aflito, na sua impotência de boneco de peluche. Assim a encontraram várias vezes, restituindo-a à escola ou a casa da mãe, donde fugira em direcção à promessa incumprida do mar ou do pai, umas vezes dum outras do outro, consoante vertia as culpas do insucesso num ou noutro, no mar porque não lhe devolvia o pai, no pai porque não se lhe devolvia, um ou o outro eram, assim, os seus carrascos, os responsáveis pela sua espera infrutífera, da qual, todavia, nunca chegou a desistir, ao menos até ter ultrapassado a barreira do pensamento infantil e, com ela, a barreira (racional) da ausência do ser que mais amava, o pai.
Depois cresceu, ela, a irmã e os dois irmãos, todos mais velhos do que ela, com intervalos mais ou menos regulares de cerca dum ano, todos dependentes do trabalho da mãe e da solidariedade dalguns vizinhos, também conhecedores da inclemência do mar e do seu espírito democrático, ao menos no tocante à escolha das vítimas.
Era inteligente e estudiosa – a partir de certa altura, canalizou a crença no reaparecimento do pai para a de que, se aprendesse muitas coisas, principalmente sobre o mar, poderia arquitectar uma maneira de o resgatar, desprendendo-o da sua prisão marinha. É assim, a invenção das crenças também pode servir para alimentar desejos de impossível ou para camuflar desistências óbvias, não serve apenas para esconjurar medos do vazio ou do desconhecido.
 
 
 

domingo, 24 de agosto de 2014

AS SIGLAS DA POLÍTICA NACIONAL

 
Está bem, eu sei que chamar a isto política é desadequado, pseudopolítica seria mais conforme à lamentável realidade...
Todavia, não vale a pena perder tempo com detalhes desta natureza, tanto mais que apenas está em causa apresentar uma leitura pessoal das siglas mais presentes e/ou influentes na dita realidade.
Aí vai:
 
ACS - Ainda Cá Sobras 
PPC - Petas Parvas e Canalhas
PP - Precisam-se Provas  
AJS - Aquele Jeitinho Sonso 
AC - Ai a Câmara 
JS - Já te Safavas
 
PSD - Partido dos Sendeiros e dos Dinheiros  
PP - Partido do Portas 
PS - Partido Sôfrego
PCP - Partido do Caraças de Portugal
BE - BrrrrE
 
RES - Richie É Salafrário 
BES - Banco Era Sugado
GES - Grupo Era Surdo
BB - Banco Bingo
BM - Banco Magro
BPN - Banco Para Negociatas
 
E pronto. Cansei, não me apetece continuar.
 
 


quinta-feira, 21 de agosto de 2014

AS CRIANÇAS ESTÃO À SUA ESPERA, RUI CÉSAR PEIXOTO!


Não o conheci pessoalmente, nem sequer imaginava que (também) fosse surfista, desse aulas numa universidade ou tivesse 45 anos.
 
Apenas me cruzei com ele umas poucas vezes, talvez tivéssemos trocado um sorriso de simpatia, a título de cumprimento, isso creio que sim.
 
Era o Professor de Judo do Joãozinho e de tantos outros meninos e meninas, e essas vezes em que me cruzei com ele foram aquelas em que assisti às exibições dos seus pequenos e entusiastas judocas, talvez uma vez por ano, desde há uns três ou quatro anos, a última, em 31 de Maio passado.
 
Foram, todavia, as suficientes para ficar a admirá-lo, pela maneira muito especial como se relacionava com os seus pequenos alunos, deixando transparecer valores tão estruturantes como, por exemplo, a serenidade e a segurança, a  compreensão e a protecção, o entusiasmo e o incentivo, a amizade e a camaradagem e, acima de tudo, uma grande (e forte) ternura.
 
Não era sem razão que o Joãozinho - e, estou certa, os outros meninos e meninas - tanto gostava do Professor Rui César Peixoto. Melhor dizer, gosta, pois, para ele, essa grande amizade ainda não é passado, visto ainda não saber que o Professor partiu, nas asas do surf, num paraíso chamado Bali. Aliás, continuará a gostar, pois as verdadeiras e sólidas amizades não se desfazem com este tipo de partidas, impostas pela mão caprichosa dessa fria divindade do definitivo. Estou certa de que, muito mais longe no tempo, o Professor de Judo ainda vai ser recordado como o grande Professor e o grande Amigo que foi.
 
Nada percebo do enigma dessa única certeza que todos nós partilhamos, mas gostava de imaginar que o Professor de Judo atravessou as nuvens num surf radical, ao som da espuma das ondas, e foi acolhido pela alegre gritaria dum magote de anjinhos judocas. Ele ia gostar. Tenho a certeza. E este desejo imaginado é a sentida homenagem que aqui lhe deixo.
 
 
Fotos de 03-06-2012
 
 
 
 
 
Vídeo de 02-06-2013
 
 

 
 
  
 
 

domingo, 17 de agosto de 2014

DE URBINO A SINTRA, PASSANDO POR SILVES


Em meados da década de 90 do século passado - soa estranho, isto do século passado! - frequentei um curso de Verão (de Direito Internacional), na Universidade de Urbino, magnífica cidade medieval italiana, com os montes Apeninos à vista. Foram duas semanas interessantes, apenas perturbadas pelo facto de ter de prestar provas, para além do mais em idioma estrangeiro - escolhi o francês, estudei o que tinha de estudar e despachei os exames na primeira leva, para gozar um tempo de pura descontracção.
 
Entre as actividades culturais, visitei os museus disponíveis, incluindo a casa do pintor renascentista Rafael - Raffaello da Urbino - e fiquei vacinada contra a temática da Madonna, em todas as suas possíveis variações, Madonna al latte, Madonna con Bambino, etc.

Também aproveitei para visitar algumas paragens próximas, como foi o caso de Gubbio, outra encantadora cidade medieval, onde S. Francisco de Assis chegou a viver algum tempo. Assis e Perugia, a dos chocolates Bacci, também se incluíram no roteiro, mas já na viagem de regresso a Roma.

Todavia, aquilo que, verdadeiramente, me surpreendeu e emocionou foi a recriação dum torneio, inserida na Festa do Duque, tipo de espectáculo a que nunca assistira.

Que eu saiba, só muito mais tarde esse género de evento chegou a Portugal, designadamente, com a reconstituição de feiras medievais, como é o caso da de Silves, por onde passei há uns dias e de que aqui deixo algumas fotos. Já hoje, tendo almoçado em S. Pedro de Sintra, acabei por visitar a Feira Árabe, a decorrer em tal localidade.

Enfim, agora há reconstituições de toda a espécie de feiras e outos acontecimentos, mas a emoção do torneio do Duque de Urbino é irrepetível, como tudo o que, sendo de qualidade, constitui novidade e surpresa. 
 
 

















 

sábado, 9 de agosto de 2014

E LOGO HOJE...


[E logo hoje, que queria tanto estar contigo, despenharam-se sobre mim centenas de azares!
Primeiro, faltou a água, foi logo à hora a que me levantei e fiz a directa habitual para o duche, caso para dizer, sem acerto, grande balde de água fria. Não vou entrar em pormenores sobre a chamada que fiz para a EPAL e assim, seria maçador...
Quando, passados 45 minutos de tempo e, pelo menos, 45 horas de impaciência, pude, finalmente, meter-me debaixo do chuveiro - a água lisa a sair castanha e a ditar mais uns desesperos de espera, até clarear -, molhei abundantemente o cabelo, joguei a mão ao frasco do champô e, qual não é a contrariada surpresa, quando, devidamente espremido, não exalou nem uma única bolhinha de espuma. Esquecera-me de o substituir, quer dizer, de comprar um novo para substituição, o tipo de esquecimentos que se sofrem caros. Saí do duche, ia escorregando no molhado dos pés contra o pavimento, e fui procurar amostras, daquelas que, ocasionalmente, nos dão nas farmácias ou vêm coladas às páginas das revistas, aliás, para enorme aborrecimento, pois, quando se retiram, acode metade da página atrás, como quem se apaixonou por aquela cola peganhenta e não se dispõe a abandoná-la. Não encontrei nenhuma, o chão ficou todo molhado dos pingos que caíam do meu corpo, reentrei no duche sem saber o que fazer e acabei por fazer uma das coisas possíveis, lavar o cabelo com o gel do duche. Mais tarde viria a constatar que não é a mesma coisa, quer dizer, eu já sabia, mas fiquei a saber demonstradamente, quando, após uma rápida passagem da escova, senti os dedos ameaçados por arame farpado.
Abreviando, maquilhei-me, vesti-me e calcei-me com o requinte que a circunstância exigia - a circunstância, como bem sabes, era ir ter contigo -, mas, tal como diz o ditado, a pressa é inimiga da perfeição.
Quando me apreciei no espelho do elevador, pareceu-me que o blush sobrava do lado direito e que a sombra me escurecia demasiado o olhar, como se tivesse engolido fumo pelos olhos, se tal é possível. Surripiei um lenço de papel e comecei a atenuar os estragos, mas não gostei do resultado, que isto o que torto nasce, etc. (tu sabes o resto).
À saída do elevador, dei de caras com o meu vizinho do 5º-Dt.º, atrelado ao monumento rugidor que é o seu cão, e que, no cruzamento, eu a sair eles a entrar, me deu uma lambidela na perna - o cão,  não o vizinho -, coisa que detesto, detesto ser lambida por cães, aquela baba, acho que, mal por mal, preferia uma dentada. Dei um giro de slide e fiz má cara, instando o vizinho, pode prender o cão? Como se não soubesse a ladainha da resposta, ele não faz mal, é o que todos dizem, estou farta de ouvir.
Fugi para a rua e, mal chegada, enfiei um dos saltos num pérfido abismo do passeio. Partiu, a sorte foi não ter sido o pé.
Recambiei-me para casa, chamei o elevador, agora a cheirar a cão, e troquei os sapatos. Por esta altura o meu atraso deveria ser superior a uma hora e meia, no mínimo. Mesmo assim, investi para a saída, tapei o nariz, enquanto viajava no elevador - ainda cheirava a cão - e fiz ziguezagues pelo passeio, procurando evitar novos abismos da calçada, que bonita seria a calçada portuguesa, se não andasse permanentemente a ser desenterrada para obras, findas as quais, nunca é completamente reposta! Há-de ficar sempre um buraco e meia dúzia de pedras soltas à tona, como se as obras merecessem testemunho eterno.
Eu sei que tínhamos combinado um brunch, mas já são quase horas da sobremesa do almoço. Será que resististe? Se usasses telemóvel nada disto estaria a acontecer, tinha-te telefonado e convidado para passares lá em casa, eu própria prepararia o brunch, sempre se poupava o tempo da deslocação, a minha. Pois não é que, para cúmulo do azar, não consegui encontrar o meu carro, já não é a primeira vez, esqueço-me do sítio onde o deixo, parece impossível. Com a greve dos transportes públicos, tive de ir a pé...]
 
- Não posso crer que ainda estás à minha espera! Mil desculpas, nem imaginas as centenas de azares que desabaram sobre mim! E logo hoje, que queria tanto estar contigo! Estás linda, maravilhosa!
 
- Também estás maravilhoso! Valeu a pena a espera, também queria tanto estar contigo!
 
- Lanchamos?
 
- Claro!
 
  
 
   
 


domingo, 3 de agosto de 2014

ADORO LIVROS (E NONSENSE)!


E se escrever uma só palavra pudesse ter o sentido dum texto completo, cheio de palavras, vírgulas e pontos finais? Não me parece, usadas e abusadas como as palavras estão, sobretudo as mais importantes, não me parece mesmo nada provável.
 
Creio que todos os escritores (e os que por tal se fazem passar) já escreveram todas as palavras, conjugadas e interpretadas duma forma ou doutra, oferecidas, sonegadas, rasgadas, sei lá que mais!
 
Muda o pensamento, esse sim, não tem espartilho, diferentemente das palavras, presas naquelas letras miúdas, sempre as mesmas, com as mínimas variações dos esporádicos desacordos ortográficos. E, todavia, podem ser elásticas, as palavras, consoante a intenção que sirvam ou o sentido a que dêem luz ou transparência.
 
Por isso, uma só palavra não poderia constituir um texto. Já se imaginou um livro urdido numa só palavra, por exemplo, AMOR? Chegava-se à Livraria Bertrand - gosto da Bertrand, prefiro-a, entre outras, àquela das quatro letras - e pedia-se, tem por aí o AMOR? E o empregado, habituado a livros duma só palavra, como título e como conteúdo, respondia:
- Qual deles?
- Como assim, há vários?
- Sim, pelo menos 20, só de escritores nacionais, se juntarmos os estrangeiros, devem ascender a uns 300 ou 3000, no mínimo.
- Ah!, agora que me diz, sinto-me confusa, não fixei o nome do autor ou da autora, mas sei que foi publicado há pouco tempo e ganhou um prémio qualquer...
- Já sei, deve ser o AMOR, do Manuel Friborg, acabou de sair e já vai na 3ª edição! Na verdade, ganhou o prémio para o melhor uniromance de principiante deste ano. Curiosamente, a cerimónia de entrega do prémio é amanhã, na Biblioteca das Palavras Contadas, ali para os lados do Campo Poupado, conhece?
- Conheço sim, belo edifício, por sinal. E então de que trata o romance?
- Olhe, ainda não li e, como sabe, não tem sinopse, pois corria-se o risco do contra-senso,  quer dizer, de ser mais extensa do que o próprio livro, mas quem já leu disse-me tratar-se duma divagação profunda e inteligente sobre o relacionamento entre as páginas dum livro e a sua capa. Já outro me disse que o tema era a intriga e a futilidade do futebol, e um terceiro sugeriu algo relacionado com a prática da jardinagem, no contexto da evolução das estações do ano. Enfim, é mesmo preciso ler para se ficar a saber.
- Pois, já calculava, é o que sucede com os livros de palavra única, cada qual lê o que lhe vai na alma ou no corpo ou em ambos... Aliás,  não sucede o mesmo com os outros livros?
Talvez, mas não é bem a mesma coisa, não lhe parece?
- É capaz de ter razão, embora se trate apenas duma questão de grau... Olhe, estou a pensar escrever um livro, mas vai exceder uma só palavra, pois não tenho grande poder de síntese.  
- Boa sorte!
 
Vou para casa e escrevo: Título - VAGABUNDAS; Texto: Por vezes ocorrem-me ideias vagabundas. Duvido que passem pela cabeça de mais alguém. Apesar disso, são ideias vagabundas.
 
Mando para a editora e, ao fim dum ano de negociações, VAGABUNDAS é publicado. Sem modificação do título ou do texto. Fico feliz.

O primeiro leitor que me pede um autógrafo, diz-me - sabe, adorei a ideia central do seu livro, a tese de que as ondas sentem ciúmes das gaivotas, sobretudo quando estas bicam a superfície do mar; é essa a ideia que procura transmitir, não é?

Finjo-me de pensadora e respondo - você é, seguramente, o protótipo do leitor inteligente, diria mesmo visionário.

Os olhos dele brilham de felicidade.

O meu próximo livro já tem texto, O leitor feliz é um visionário. Do tudo e do nada faz imaginação. Falta-me inventar um título criativo.