segunda-feira, 25 de agosto de 2014

A NÃO HISTÓRIA DE VLADIMIR BLUE (VI)

 Encostada ao portão verde, acabou por se deixar adormecer, na longa espera até às três da tarde, hora da chegada pontual de Vladimir Blue. Valeu-lhe o latido do cachorro branco da véspera, mesmo a tempo de surpreender a entrada do outro. Mais uma vez deixara escapar a sua procedência, tinha que se por mais atenta. Como na véspera – e como nos múltiplos dias que se seguiriam – acompanhou, cautelosamente, o percurso apressado de Vladimir Blue até ao banco de trás do recato da velha arrecadação, e esperou que este começasse a murmurar, o que, após longa meia hora de inquietação exacerbada, em que as mãos nodosas pareciam rebentar a resistência exausta dos bolsos da gabardine, acabou por suceder. Então, num esticão imobilizador, como quem toma uma decisão súbita, mas inevitável, Vladimir Blue começou os murmúrios, por entre a cal estalada dos seus lábios ressequidos.
Naquela altura, Natasha estava feliz e, como tal, parecia ainda mais bonita, com o brilho dos olhos verdes reacendido e o dourado dos cabelos a reluzir em ondas sobre as costas, como se fosse um mar batido pelo sol de fim de tarde. O corpo franzino não perdera a elegância, nem sequer interrompida pela curta barriga lançada para a frente, orgulhosamente adiantada aos passos saltitantes, qual excrescência de felicidade sobrada do lodaçal do desvario amoroso, que, tão brevemente, se transformara no inferno que já se sabe. Sim, a violência de Piotr não datava da notícia da gravidez, antes se revelara na aquisição da posse, quase logo a seguir à entrega que, de si própria, lhe fizera Natasha, debandada da casa materna, sem arrepio de remorso ou nostalgia, tal o amor que sentia por ele ou, pelo menos, julgava sentir. Mas, agora, ela estava feliz, não pensava nisso, nem sequer na vitória da libertação, conseguida com esta nova fuga, o decidido e vitorioso abandono de Piotr. Então, o seu objectivo foi escolher nome para a criança, e o nome foi Vladimir, da cidade por onde passara na sua única viagem feliz, e Blue, dum cachorro de desenhos animados, que o pai lhe dera a conhecer e de que lhe oferecera uma réplica em peluche.
E assim fiquei a chamar-me Vladimir Blue – articulou o próprio, para além dos simples murmúrios, novamente com o brilho no olhar habitualmente esvaído, pois sabia do carinho que lhe ditara a identidade.
Portanto, chama-se Vladimir Blue – comentou a Sombra consigo própria, talvez um pouco confusa com a origem daquele nome. Mas que importa a estranheza dum nome se foi escolhido com tanta ternura! - pensou, enquanto notou a espécie de luzinha saída do fundo dos olhos de Vladimir Blue, que parecia ser sinónimo de sorriso, o único equivalente de sorriso que aqueles olhos tinham sido capazes de revelar, ao menos até ao presente.
O pai de Natasha desaparecera no mar da pesca, sem retorno sequer dum resto de corpo carcomido pelos peixes. Partiu uma madrugada, como tantas outras, o mar encheu-se de raivas, as nuvens desceram, ocultando tudo quanto havia para ver, e o resto era o mistério, não tão misterioso assim, dum barco a dar à costa, em momentos e pedaços sucessivos, como se peças desconjuntadas dum puzzle desconstruído pelas mãos duma criança inábil. Os corpos dos dois companheiros ainda apareceram, no espaço de dias soltos e angustiados, preenchidos pelo choro e as rezas das viúvas e dos filhos, aglomerados na praia, mas, como já foi dito, o do pai de Natasha nunca mais foi visto, sugado pela boca raivosa do mar, ao que todos supunham, pela ordem natural das coisas. Mas Natasha ainda não saíra da infância, não ultrapassara os seis ou sete anos e, como tal, ainda desconhecia a ordem natural das coisas e, fosse por isso ou por outra razão qualquer, quando a mãe e todos os outros já tinham desistido, continuou a ir todos os dias à praia, onde, aconchegada numa rocha como pássaro em ninho, esperava, convictamente, o regresso do pai, sempre acompanhada do seu cãozinho de peluche chamado Blue. Assim se perdia e gastava o verde dos olhos, perscrutando o longe do mar horas a fio, naquela espera que era mais do que esperança, embora um pouco menos do que certeza absoluta, não que ela soubesse tais distinções, por essa altura. Por vezes, parecia-lhe ver o corpo atlético do pai a emergir do mar, num passo lento mas determinado, pisando a areia na sua direcção, e, então, largava o ninho da sua rocha e corria na direcção daquela figura curtida pelo sol e pelo vento, sorrindo e gritando, pai, pai. Depois, como o pai se tornasse mais longe até desaparecer num vestígio de segundo, ela estacava, perplexa, engolia o som, iap, iap, que se lhe prendia na garganta enrolado num soluço seco, deixava-se cair, mesmo na fímbria do mar, ao alcance da espuma da última onda, e batia com as pequenas mãos na areia, enquanto Blue a observava aflito, na sua impotência de boneco de peluche. Assim a encontraram várias vezes, restituindo-a à escola ou a casa da mãe, donde fugira em direcção à promessa incumprida do mar ou do pai, umas vezes dum outras do outro, consoante vertia as culpas do insucesso num ou noutro, no mar porque não lhe devolvia o pai, no pai porque não se lhe devolvia, um ou o outro eram, assim, os seus carrascos, os responsáveis pela sua espera infrutífera, da qual, todavia, nunca chegou a desistir, ao menos até ter ultrapassado a barreira do pensamento infantil e, com ela, a barreira (racional) da ausência do ser que mais amava, o pai.
Depois cresceu, ela, a irmã e os dois irmãos, todos mais velhos do que ela, com intervalos mais ou menos regulares de cerca dum ano, todos dependentes do trabalho da mãe e da solidariedade dalguns vizinhos, também conhecedores da inclemência do mar e do seu espírito democrático, ao menos no tocante à escolha das vítimas.
Era inteligente e estudiosa – a partir de certa altura, canalizou a crença no reaparecimento do pai para a de que, se aprendesse muitas coisas, principalmente sobre o mar, poderia arquitectar uma maneira de o resgatar, desprendendo-o da sua prisão marinha. É assim, a invenção das crenças também pode servir para alimentar desejos de impossível ou para camuflar desistências óbvias, não serve apenas para esconjurar medos do vazio ou do desconhecido.
 
 
 

Sem comentários:

Enviar um comentário