terça-feira, 16 de setembro de 2014

ANJO CAÍDO

 
... e, naquele (talvez) último dia de praia, a maneira como o mar se desenhava na areia, num esbatimento suave mas assertivo, rasgando uma cicatriz, fez-me lembrar uma linha de demarcação, aliás, de separação (embora a diferença possa nem existir e, existindo, não se saiba muito bem qual vai mais longe, se a demarcação, se a separação)
 
 
 
 
uma linha de separação, pois, em que, a montante e a jusante, jaziam peças soltas, incomodativas, carregadas de significados e simbologias. testemunhas, também, do que já ficara para trás, remetido ao passado, a espécie de passado que é um fardo, repercutido no presente e, talvez, no futuro, com seus pesados desperdícios
 
essas peças soltas podiam estar ali só porque sim, porque sobraram, arrastadas numa qualquer inércia, mas também pode dar-se o caso de terem sido atiradas para ali com um qualquer intuito, um intuito não inocente. em qualquer dos casos, não inocente, porque nada do que se deixa arrastar pela inércia ou se deixa atirar o é
 
como noutras alturas e contextos, limitei-me a registar e aventurei-me a interpretar, embora, nestes casos, qualquer interpretação possa configurar mera ilusão ou invenção ou ficção, sei lá (!), tudo menos inocente, também aqui, tudo menos inocente
 
e concluí, ninguém é ou permanece inocente em presença duma linha de separação. nem o mar nem a areia. e os destroços, quer dizer, as peças soltas são disso mero testemunho. ou veredicto
 
 
 
 
 
 
e permaneciam todas unidas, porque constituíam uma trajectória, a imagem selada duma trajectória. e, sim, a última era um anjo caído. sem asas. perdera-as no caminho
 
 
 
 

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