domingo, 19 de outubro de 2014

CONHECI HARUKI MURAKAMI, À BEIRA-MAR, ATRAVÉS DE KAFKA!

 
Poderia dizer que travei conhecimento com Haruki Murakami à beira-mar, através de Kafka!
Na realidade, não foi esse o caso, aconteceu apenas que  Kafka à Beira Mar foi o primeiro dos seus livros que tive o privilégio de ler e que logo me deixou rendida à estranheza daquele universo que o Autor tão bem sabe construir e onde tão bem situa e faz evoluir os seus singulares personagens, levando-os a viver hipóteses de histórias tão desafiadoras da imaginação, quanto da coerência lógica, sempre embalados na reflexão sobre o enigma da mente e da natureza humanas.
Após outros seus livros, em que o meu nível de encantamento em nada ficou defraudado, surgiu o célebre e icónico 1Q84, que, por comparação com aqueles, me pareceu configurar uma nova abordagem de estilo -  desde logo na estrutura do fio condutor, mais linear - e de solução de encerramento - a escolha dum desfecho concreto, assumido enquanto tal. Isto, sem nada perder da fascinante estranheza do mundo, aliás, dos dois mundos paralelos, em que a acção se desenrola, o mesmo se aplicando à singularidade dos personagens e ao permanente desafio à linha duma certa coerência, a do estabelecido, ou, dito doutro modo, da normatividade do real. Embora se me afigure que os personagens, maxime, os principais - meus saudosos Tengo e Aomame, sem esquecer Fukaeri - possuem uma definição mais estruturada e, sobretudo, que a história acaba por evoluir, a par e passo, para um destino que, (só) a final, se descobre marcado por uma lógica eventualmente susceptível de ser considerada alheia à irrealidade do percurso a ela conducente.
Passaram uns dois anos e eis-me, novamente, a explorar o universo murakamiano. Aconteceu que ia comprar A Sul da Fronteira, a Oeste do Sol (1992), e comprei, também, Auto-retrato do Escritor Enquanto Corredor de Fundo.  
Comecei por este, no qual, como o título indica, Murakami nos dá testemunho da sua prática desportiva, enquanto corredor de fundo, ou, talvez melhor, nos dá testemunho de si próprio, através do seu percurso desportivo. Na verdade, é curioso notar que, a par de alguns factos da sua vida - como o início profissional, enquanto dono/gestor de dois bares de Jazz, e o momento, tão inesperado quanto luminoso, em que, sem mais, decidiu ser escritor, escrevendo, de seguida, o seu o 1º livro, Hear the Wind Sing , com o qual, fulgurantemente, arrecadou um prémio para novo escritor revelação -, ele acaba por nos oferecer uma imagem da sua personalidade, que é, também, uma imagem da modelação japonesa, na qual se destacam, como pontos fortes, a cultura do trabalho, da perseverança e do sacrifício, do desejo de excelência e de superação, do rigor e da humildade, e uma interioridade marcada pela solidão, enquanto reduto último (e íntimo) da criatividade e do pensamento. O estilo é simples, directo e, no essencial, espartano, a condizer com a (suposta) personalidade. Compreensivelmente, os mundos fictícios da literatura de Murakami  não têm aqui lugar, mas, em contrapartida, o muito da interioridade que aqui nos é revelada, encontra-se, dum modo ou doutro, reflectido no desenho daqueles mundos. Em suma, embora num género - e, consequentemente, num estilo e com um registo - diferente, também gostei muito deste livro.
Abro um parêntesis para referir que nem sempre assim sucede. Por exemplo, alguns dos registos autobiográficos de Paul Auster - outro dos meus Escritores de eleição -, v.g., Diário de Inverno causaram-me alguma decepção, por comparação com os seus romances, que, dum modo geral, muito aprecio, com especial destaque para os maravilhosos Mr. Vertigo e Timbuktu.
Passei, depois, à leitura de  A Sul da Fronteira, a Oeste do Sol, um dos livros mais antigos de Murakami, que, após ter lido o precedente, me deixou a impressão de possuir uma acentuada vertente autobiográfica - também o personagem principal tem e gere dois bares de Jazz, para além de revelar uma interioridade que não parece ser alheia à que julgo ser a do Autor. Aí se conta a vida solitária e introvertida dum homem, através do percurso dos seus relacionamentos amorosos, desde a pre-adolescência até à idade adulta, quando, tendo já constituído família, de acordo com o molde social vigente, reencontra o seu primeiro (aliás e como se vem a ver, único, amor)... Mas será que reencontra, mesmo? Deixo aqui a interrogação. Uma aura de nostalgia e de romantismo envolve a narrativa, a par com a (aliás, tão sua habitual) reflexão sobre os estados de alma e o sentido da vida, e o ponto enigmático que viria a constituir a marca dos primeiros romances que referi. Conclusão, mais um livro de grande profundidade e beleza!
Por tudo isto, confesso-me Murakamiaholic, com muito gosto, e assim, no último dia de Setembro passado, corri a uma Bertrand perto de mim, a comprar o seu mais recente livro, saído nesse mesmo dia, A Peregrinação do Rapaz Sem Cor, que aguarda, impacientemente, a sua vez de ser lido. Na realidade, não é este o caso, a impaciência é toda minha!



 
 
 
 


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