segunda-feira, 6 de outubro de 2014

SUCH FUCKING LIFES

 
Estás para ali deitada, uma data de fios e coisas pendurados do corpo, quando a outra irrompe - é espantosa a quantidade de pessoas que irrompem por um quarto de hospital! e não estou a falar de visitas -, munida dum pano e dum frasco de detergente.
Não lhe surpreendes um cumprimento, talvez tenha falado baixo, talvez não o tenha proferido, o catálogo dos preconceitos abre-se mesmo sem que queiras, antipática, já está! Mas não, ali há tempo, o que sobra é tempo, tempo para reparar nos olhos da intrusa autorizada, sobretudo nas olheiras que se lhe desenham pela cara abaixo, escuras, castanhas, da cor dos pesadelos - pelo menos os teus pesadelos são sonhados em castanho escuro -, parecendo deslizar até ao chão, onde se confundem com as tiras da esfregona que, pouco mais tarde, há-de empunhar. É tempo de rever o preconceito, qual antipática...
- Está com um ar cansado - começas, na tua voz doce, agora obscurecida pela razão que te levou até ali, e no teu sorriso, também doce, e cúmplice - as suas olheiras não deixam mentir...
- Tenho sempre olheiras, mas é verdade, estou cansada. Quando sair deste turno vou para o meu outro trabalho, é sempre assim. E não consigo descansar, durmo pouco e muito mal - responde, numa voz que está para além da queixa e para aquém da simples constatação ou vice-versa, enquanto movimenta activamente os utensílios de limpeza.
- Mas devia ver isso, essa questão do sono, dormir mal é uma grande causa de fadiga permanente.
- Pois, eu sei, mas também sei que me receitariam coisas que me poriam a dormir e eu não posso, tenho de trabalhar. Isto já vem de trás,  de há cerca de vinte anos, quando tive uma grande depressão. Receitaram-me dez comprimidos por dia e deixei de funcionar. Não podia ser, não dava com a minha vida, com o filho pequeno, deixei de os tomar dum dia para o outro, mesmo sem desmame, é assim que eles dizem, não é?, e fiz-me à vida. Até hoje. Nunca mais dormi bem.
- Sim, chamam-lhe desmame, mas devia voltar a ver isso, olhe que, hoje em dia, já há outro tipo de medicamentos, com menos efeitos secundários.
- Fora de questão.
Já não são os seus lábios a responder, são os seus olhos, olhos de sorriso à superfície, apenas um espelho agradável,  mas inquieto, por trás do qual se oculta um mundo amarrado nas grades duma tal escuridão, que não há o direito de tentar desvendá-lo.
Por isso, não lhe perguntas sequer pelo filho, embora fiques curiosa, empaticamente curiosa, entenda-se, mas não te sentes nesse direito, porque não consegues perceber se ela quer partilhar, se partilhar poderá ser um alívio para ela, aliás, parece-te que não, aquilo que se esconde atrás do seu sorriso é demasiado reservado e insusceptível de discussão, pertence ao domínio do que já nem é caso de  aceitar, mas, apenas, de suportar.
E pensas,  such fucking lifes. 
No dia seguinte, acabaste de pagar a conta, deixas o teu fancy room do Hospital XPTO e cruzas-te com ela no corredor:
- Olá!
- Olá! - responde-te, com simpatia no olhar, na face-espelho do olhar - assim, quase nem a conhecia.
- Pois é, já vou embora - sorris.
- As melhoras!
- Obrigada!
E pensas,  such fucking lifes, é o que é.
 


 
 
 
 
 
 

Sem comentários:

Enviar um comentário