segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

A VISITA


A indecisão feria, no atrito da sua intermitência, tique-taque, tique-taque, vou, não vou, aquilo magoava, dum lado a ilusão, sabida ilusão, mas nem por isso menos cativante, de capturar momentos perdidos, como se a reinvenção do presente, doutro lado, a certeza, feita pedra fria, de que o passado é isso mesmo, um futuro enterrado, sem promessa de redenção. Esta ideia levou-me a partir, afinal o realismo acabava sempre por se impor, acrescendo o facto de adorar o reencontro com as montanhas. Precisava de revê-las, talvez para me rever, quem sabe!
Após umas horas de viagem, a iminência da aproximação deixou-se marcar pelo recorte majestoso da primeira montanha, parcialmente arborizada, parcialmente nua, qual cabeça em início ou recuperação de processo de calvície, agora refulgindo, manto incerto, no brilho da alvura restante do nevão de há dias, como o boletim meteorológico se tinha encarregado de anunciar, por uma vez sem lapso. Daí até à casa foi um mínimo, acompanhado pelo desdobramento das sucessivas montanhas, mas agitado, diga-se em abono da verdade, que o tique-taque ressurgiu, um alvoroço de ansiedade, como se fosse possível reencontrá-los, a eles, à minha espera, sem saber se…, bem agora esse se já não interessava, já não podia interessar. 
Estacionei o carro na velha rua - que já fora a primeira daquela zona -, junto ao passeio, no único  espaço deixado em claro pela carrinha da padaria - essa, a do prédio de esquina, ainda presente -, acabada de sair, qual pungente sinal de boas-vindas. 
Empurrei o portão verde, de ferro trabalhado, caminhei por entre os maciços de hortênsias, agora desaparecidos, como se se tivessem esvaído no pastel das suas cores desbotadas, ignorei o cacto alto, aquele que subiu, subiu, quase ultrapassando as janelas do andar de cima ou o próprio  telhado, para depois cair, quando já não…, bem, subi as escadas, ainda as mesmas, de pedra, que conduziam à porta das traseiras, e vi, juro que vi, desenhada nos poros da pedra, a marca dos nossos assentos, de quando, já nos tempos últimos, ao fim de tardes primaveris e estivais, nos instalávamos, em amenas conversas, actualizando estados banais, que a distância geográfica transformava em objectos de premente curiosidade e interesse, enquanto contemplávamos os intermináveis e animados voos dos pardais,  das andorinhas e das pombas, estas nas suas idas e vindas descontraídas, na certeza de que a generosidade do pombal e do milho espalhado pelo chão as aguardava. Também à noite, com o cenário alternativo, o do manto de estrelas vivas, espalhadas ao acaso das suas constelações, sobre o azul-negro do infinito tecto do mundo, de vez em quando, uma estrela cadente, de vez em quando um pontinho de brilho deslizando milimetricamente, como se empurrado por um caracol, que eu assegurava ser um OVNI, hipótese bem mais interessante do que a verdadeira (imagine-se, simples avião!).    
Atravessei a cor viva, mas ressequida, aqui e ali, do vermelho da porta de madeira, após ter accionado o seu batente metálico, mas, vá-se lá saber porquê, não me pareceu que ainda fosse de madeira vermelha e a estridência foi a duma vulgar campainha. Não me detive na prova das diferenças - afinal, não devia passar duma moderna porta blindada, talvez em tom castanho, dotada duma campainha qualquer, tudo demasiado previsível, a condizer com o amarelo das paredes exteriores, que amarfanhara o branco original -, ultrapassei o pequeno corredor e entrei naquela que, de todas as divisões, mais me ressoava nas profundezas da reminiscência, o que fica do que sobra ou o que sobra do que parte, vai dar ao mesmo.
Lá estava ela, a saleta-de-todos-os-dias, quadrado perfeito, bordado com os vidros quadriculados das quatro janelas, duas para trás, duas para o lado da casa, caixilharia de madeira, cor bege, mix de osso de marfim e casaco de canário, portadas interiores, também de madeira, esta castanha escura, que se fechavam à noite, resguardo de perigos invisíveis e sustos inopinados, a mesa redonda de camilha, bem ao centro, rodeada das seis cadeiras de madeira, costas trabalhadas, o maple roubado ao conjunto da sala de visitas, situado entre as duas janelas debruçadas sobre a lateral da casa, equilibrando o divã, encostado a uma das paredes, e o móvel da máquina de tricotar, do outro lado, e, na parede frontal, logo à direita da entrada da porta, a pequena estante, a meia altura, com duas ou três prateleiras, e um recanto mais elevado, onde repousava a Sagrada Família que, periodicamente, circulava pelas casas de família, motivo de tantas benzeduras, pelo menos até ao despertar da dúvida, que a vida não condizia com o canto da religião.
De repente, assim sem mais, estávamos todos sentados à volta da mesa, de roda da sobremesa, castanhas assadas barradas de manteiga - uma hipótese -, os pés apoiados no estrado de madeira, aproveitando-se do calor da braseira, eficaz desmentido da dureza invernal, e ouvíamos, eu deliciada - e ele, estou certa, também -, as histórias maravilhosas que ambos contavam, (o outro, adulto) ele, com o rigor do método, ela com o humor do saudável distanciamento, histórias de família, de estudos, de profissão, elos apertados como raízes, afinal. Era o quê, essa quentura? Aconchego, parece-me que era isso, pertença, também, e, seguramente, protecção. Ao mesmo tempo, estou do lado de fora, a brincar com a enorme boneca de trapos, com quem falo, e descubro, num embaraço tolo, que, de trás dos vidros das janelas, eles, os três, me observam, com um divertimento terno. Então, a chuva interpõe-se, vejo-a cair em grossas fitas, furando a terra com um ploc-ploc contínuo e metódico, libertando um cheiro que a cidade de depois viria a matar, na sua armadilha de cimento armado, o inconfundível cheiro da terra molhada, haverá cheiro mais cálido e aconchegante?  
Um movimento à volta empurra-me de regresso, todas as madeiras desapareceram, as dos caixilhos e das portadas de madeira das janelas, agora alumínio, as da mesa e das cadeiras, da estante e do móvel da máquina de tricotar, que, aliás, já não existe. Quem ainda quer fazer camisolas e cachecóis, com as Zaras ou Mangos, para não falar nos chineses, da nossa globalização?! Agora é uma mesa quadrada, quatro cadeiras, tudo em acrílico, uma chaise-longue, e uma estante Ikea. Tudo muito clínico, atrevo-me a sentir, enquanto um choque de realidade me agita o corpo, convulsão de pressa de sair dali.
Despeço-me da senhora que provocara o movimento, agradeço-lhe a gentileza, afinal a casa já não é nossa, e ela, a nova dona, que aí habita com o marido, sem crianças - quanto desperdício! -, acedeu a que eu a visitasse. Declino o convite para o chá, só quero sair dali, correr de volta, penso, é bem certo - e passe o lugar comum - nunca se deve voltar a um sítio onde se foi feliz!
Desço as escadas de há pouco - afinal, reparo, já não são de pedra, mas de cimento - fixo-me no vazio deixado pela generosa figueira, pela alegre laranjeira, pelas macieiras rosadas, e as ameixoeiras e os canteiros de flores e… e tudo foi impiedosamente banido, para dar lugar a uma prosaica garagem, um prosaico barbecue, um prosaico chão de cimento ou lá como se chama aquela superfície cinzenta onde a chuva já não comunga com a terra, onde o cheiro de terra molhada foi assassinado tão impiedosamente quanto as árvores e as flores.
Sinto uma zanga tão amarga quanto irracional, que tem por destinatários primeiros os novos donos da casa, o alvoroço ansioso da chegada deu lugar a uma pressa ansiosa de evasão, meto-me no carro sem olhar para trás, acelero irritadamente, e subo à serra. Afinal as montanhas continuam lá, na certeza da sua identidade  telúrica e, com sorte, desaba uma chuva boa, ploc-ploc, sobre a terra, e aquele cheiro inunda-me as narinas e bem mais cá dentro, o recôndito onde mora a casa, a outra, onde não posso mais voltar, aquela em que a infância e adolescência me teceram as raízes, ao som daquelas histórias.
Depois é o regresso, chego a casa, algo me incomoda, atrevo-me a chamar-lhe vazio, talvez a desnecessidade de lhes telefonar a anunciar que cheguei bem. Felizmente, há outros telefonemas a fazer. 





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