domingo, 29 de março de 2015

AJA


Bem que não queria, afinal estava tão comodamente  instalada no criticismo participativo! Quer dizer, vinha exercendo a intervenção cidadã, através da análise da realidade circundante.

Todavia, a capacidade foi-se-me esgotando, não por falta de objecto de incidência, mas porque este passou a situar-se em planos que exorbitam, manifestamente, a lógica de qualquer crítica: porque quebram todos os padrões de julgamento ético, dada a torpe violação das fronteiras mínimas do aceitável; porque quebram todos os padrões de julgamento racional, dada a grosseira irracionalidade de que padecem. E por aí fora...

Simultaneamente expressão e corolário mor desta realidade, logo, paradigma dos paradigmas, foi, por certo, o comportamento do mais alto magistrado da nação, quando, na tentativa de desvalorizar o impossível de desvalorizar - toda a polémica das dívidas do primeiro-ministro à segurança social, aliás, não consideradas, (também) pelo próprio, como motivo de pedido de demissão! - assobiou para o lado, aliás, cheirou para o lado. Vocês sabem, anunciou que já sentia um cheirinho a campanha eleitoral, insinuando tratar-se de lutas partidárias... 

Que comentário pode isto merecer de qualquer cidadão minimamente esclarecido, inteligente e preocupado com a dignidade própria e institucional? Nenhum! Nenhum, porque, como digo acima, está muito para além das razoáveis fronteiras da transgressão/aceitação, no plano lógico e deontológico.

Talvez tenha sido aí que, olhando para o copo do meu descontentamento e estupefacção  me deparei com a última gota, a que fez transbordar o conteúdo. Ou seja, concluí que estava na hora de mudar de registo! 

Eis por que, alguma reflexão depois, decidi criar um anti-partido, o Acção Já!, abreviadamente, AJA.

Como anti-partido que é, o AJA não arregimenta militantes ou dirigentes, não faz promessas, não pede nem aceita subvenções estatais ou qualquer outra espécie de donativos, não participa em arcos governativos nem etc. Limita-se a ter uma ideologia, uma missão e uma visão: 

(como uma fotografia ao acaso inspira a criação dum anti-partido e se transforma no respectivo cartaz :)


      


quinta-feira, 26 de março de 2015

NÉON NIGHTS


códigos de barras
desenhados a néon

multiplicam-se na noite das cidades relevantes
povoam, assimétricos e distantes
beiras de auto-estradas, extensas e desertas

subtraem o brilho à escuridão das noites
que é disso o néon
da luz roubada aos poços de negrume

iluminam transumâncias
agitações
e outras transfigurações

dão vida aos mortos dos dias extintos
ressurreição em fôlegos tardios e desarticulados

acompanham músicas incandescentes
ao som de vazios profundos
rasos como linhas rectas, horizontais
sumidas nas distâncias perdidas

ocultam-se de dia, quais vampiros
passando incólumes, despercebidos

seduzem pela noite
fingimento de dias espampanantes
inocente engano
de tão tolo, consentido

são códigos de barras
multiplicados pelo dentro das noites
roubando ao negrume o brilho

desinquietando os mortos do dia
cadáveres sobrantes 
convertidos em passos de dança

tudo se agita ao som ondulante dos néons faiscantes
códigos de barras das cidades relevantes
esparsos pelas beiras das auto-estradas do silêncio
longas e desertas

códigos de barras
consumindo-se em néons brilhantes
convertendo sobras de vivos em mutantes




  


A INTRIGA


Mary irrompeu na sala como só um amarelo electrizante consegue irromper num qualquer olhar desprevenido, levando Frederic a movimentar agilmente a cabeça na sua direcção. Nem um íman seria capaz de provocar movimento tão urgente e tão precisamente direccionado. 
Vinha de roxo, cor detestável, ao menos para ele. Sem grande originalidade, associava-a à Semana Santa, época de celebração de martírios, feridas abertas em carne exposta,  lágrimas contidas em dor resignada, lenitivos amargos, enfim, voluntariado do sofrimento, tão prenhe de significado e, todavia, tão vão. Haverá algo mais contraditório e desperdiçado? Portanto olhou-a com ar acusador.
Ela acalmou a estridência da sua entrada intempestiva numa cadeira em frente à dele, com o tampo liso da mesa de permeio, vestido na toalha verde, qual campo de jogo. Expirou ruidosamente, abanou o cabelo de lado a lado, sustentou o olhar dele como quem pronuncia um ponto de interrogação, e disse, assim sem mais, tão repentina e violenta quanto fora a sua entrada na sala:
- Olha lá, achas normal aquilo do Thomas Firth?
- Bom dia também para ti - retorquiu Frederic, forçando uma calma que não lhe assistia, mas que fazia questão de exibir, como quem pretende sublinhar o agitado despropósito alheio.  
- Ok, ok, bom dia! Mas diz-me lá o que pensas…
- …Daquilo do Thomas Firth - rematou ele, incomodado, sentindo-se invadido. E calou-se, recolhendo os olhos ao jornal cuja leitura ela travara naquela tão característica pose de furacão assanhado.
Sabendo que ela não iria desistir, interrogou:
- Afinal o que se passou com o Thomas para estares nesse alvoroço? Pensei que já não andavas com ele.
- E pensaste muito bem, já não ando com ele, como bem dizes. O problema é que  ele continua a existir e a comportar-se duma forma muito estranha. Não me digas que não sabes o que ele fez?   
Como não obtivesse resposta, continuou:
- Aquilo não é normal, já ultrapassa todos os limites! Dirigir-se ao presidente do Instituto com aquela conversa. Ainda por cima cheio de bons modos, todo bem vestido, fato Boss azul escuro, gravata Hermés, sapatinho inglês, o Rolex herdado do avô... Parece um lorde dos tempos modernos, mas não se sabe comportar.
- Vais mesmo contar o que aconteceu ou não aconteceu mesmo nada e estás só a desabafar a velha raiva de mulher abandonada?
Como se um vento súbito, os cabelos dela voltaram a abanar furiosamente, enquanto um  aceso rubor quebrava a fina camada de maquilhagem que lhe amenizava os ângulos demasiado expostos do rosto alongado, levando Frederic a murmurar, sem som, num recolhimento (agora) divertido, é curioso, quando se põe neste desvario parece mesmo um cavalo afogueado, galopando com as crinas ao vento. Eu é que não queria ser o seu cavaleiro, ao menos nesses momentos…
- Devo dizer-te que, apesar do que consta por aí, o Thomas não me abandonou. Fui eu que me cansei de o aturar, sempre naquele mutismo, sempre a querer fechar-se em casa, sempre a exigir que tudo estivesse perfeito, sempre, sempre... Isto para não falar nos tiques que foi coleccionando, o último era entrelaçar as mãos e rodar incessantemente um polegar à volta do outro, como se o movimento da terra dependesse desse gesto. Nem calculas como aquilo me irritava! Um dia, a minha irmã disse-lhe que aquela rotação sem descanso significava que a vida dele estava presa, fechada num círculo e que tinha de parar com aquilo se queria evoluir. Ficou tão furioso que os olhos lhe iam saltando para o prato - estávamos a jantar - e respondeu-lhe, agressivamente, que da vida dele sabia ele e não tinha de receber lições de ninguém, muito menos dela.
- Acho isso muito estranho, Mary, o Thomas poderá ter muitos defeitos, como todos nós, aliás, mas é um tipo bem educado e reservado.
- Pois, pois, isso é o que toda a gente pensa, mas não passa dum sonso, sempre a manter as aparências e a disfarçar as obsessões. Depois, está claro, a má da fita sou  eu. 
- Ora, não exageres, muito gostas tu de armar em vítima! Já o conheço há bastantes anos e nada tenho a apontar-lhe. É verdade que não gosta muito de conviver, de socializar, mas isso é lá com ele. Ao menos não chateia.
- Já cá faltava a solidariedade masculina. Sempre prontos a falar de gajas e a protegerem-se uns aos outros, mas olha que ele nem isso. Não penses que tem algum apreço por ti…
- E isso vem a que propósito, podes esclarecer-me, Mary?
- Ah!, agora já te interessa, não é? 
- Parece-te?
- Tenho a certeza.
- Bem, tenho de ir andando, foi um enorme prazer falar contigo, quer dizer, ouvir-te falar.
- Grande lata! És mesmo malcriado. E incompetente. Nisso ele tem razão.
- O que queres dizer com isso?
- Ora, o que toda a gente sabe, que o Thomas foi dizer, aliás, sugerir ao presidente do Instituto que tu não tens perfil para o cargo de direcção a que concorreste.
Frederic, a quem o Presidente tinha acabado de comunicar ser o escolhido para dirigir o novo departamento, salientando o contributo das excelentes referências feitas por Thomas, levantou-se com uma lentidão de preguiça de gato, adiantou a cabeça na direcção de Mary e segredou-lhe que a cerimónia da sua tomada de posse iria ocorrer no dia seguinte, pelas três, que teria muito gosto em que ela aparecesse e que seria do seu interesse aceitar o convite, pois Thomas também estaria presente. Depois deixou uma reticência no ar, enquanto ela quase virava a mesa, na fúria de se desenvencilhar da cadeira onde, pouco antes, o tempo duma conversa parva, tinha procurado acalmar a estridência da sua entrada intempestiva. Só então percebeu a cilada que Rose lhe tinha armado, sempre a inventar histórias para a manter longe do Thomas. 










domingo, 22 de março de 2015

O ANJO


Se acredito em anjos? Na verdade, não (se, por vezes, até tenho dificuldade em acreditar no que vejo, ía lá acreditar em anjos!).
E, todavia, gosto de anjos! Assim como gosto de duendes, por exemplo. E do Pai Natal, não convém esquecer o Pai Natal.
Os anjos representam o etéreo, a simbiose da presença e da ausência, uma eterna viagem. Acho que é por isso que gosto deles.
Está bem, não é de anjos que gosto, já admiti não acreditar na sua existência. Fascina-me  é a ideia de anjo, a ideia que construí para os anjos. O mesmo, por exemplo, com os duendes e o Pai Natal.
Afinal, talvez a maior parte do que nos atrai e fascina seja aquilo a que aspiramos, enquanto idealização, e não o visível e palpável.
Eventualmente, na altura própria, transformo-me em anjo, e ponho-me a circular por aí em passinhos de veludo!
Obviamente, o corolário do referido acima é que se pode dar aos anjos a forma desejada.
Daí o anjo que segue, em nove variações fotográficas, sobre uma estatueta que fiz a partir de modelo vivo (homem, não anjo), na SNBA, e que, posteriormente, me diverti a pintar e a enfeitar, em (intencional) jeito ultra kitsch, com umas asas compradas por aí.
Está, assim, apresentado o Anjo!    












quarta-feira, 11 de março de 2015

DARKNESS


Imagens da inspirada performance gótica de Kina Karvel, no passado dia 2, em mais uma sessão de Desenho Cru, realizada no espaço Art Estúdio.
Desta vez, releguei o desenho para secundíssimo plano, enquanto me perdia na recolha destas imagens.
Mas houve quem produzisse belíssimos desenhos, que podem ser apreciados no blogue destes eventos: www.desenhocru1.blogspot.pt
Espero que a falta de qualidade técnica das imagens - note-se que, por exigências do espectáculo, as condições de iluminação eram deficientes - seja compensada pela emoção que  possam transmitir! :)