quinta-feira, 2 de abril de 2015

DE CABEÇA PERDIDA



Após a conversa com Frederic, Mary, balançando entre a perplexidade e a raiva, precipitou-se para o exterior, numa pressa desaustinada de engolir um poço de ar fresco, não fosse cair para o lado, asfixiada por aquela insana agitação.
O empregado do café olhou-a com a estupefacção residual de quem se habitua a estar habituado.
Desceu as escadas quase aos tombos, atravessou a rua pregando fintas a condutores apanhados no espanto, e caminhou longo tempo, com passada tão decidida quanto destrambelhada, até atingir as imediações do seu apartamento, já encerrado nas sombras da noite e da tempestade que teimara todo o dia em se aproximar. Os roncos surdos à distância tornavam-se cada vez mais fortes e sistemáticos, enquanto pingas grossas de chuva esparsa mal podiam esperar para tecer uma cortina opaca.
Contra todas as recomendações prudenciais da meteorologia - para só falar na meteorologia! - ela decidiu adiar a entrada em casa, adentrando-se no parque próximo, cuja folhagem rugia segredos soprados por um vento morno e incessante.
Dirigiu-se ao banco verde, de madeira envelhecida por uma vida de servidão, e, finalmente, dignou-se parar e inspirar e expirar várias vezes seguidas, ao ritmo dum suposto autodomínio, desencantado sabe-se lá onde. Só depois, num movimento de rendição assumida, começou a deixar descair o corpo exausto no banco, não sem previamente lhe passar a mão pelo assento, varrendo o monte de folhas por lá espalhadas. O gesto foi interrompido pelo toque pegajoso que lhe sacudiu os dedos numa agonia, os olhos num espanto de terror e a boca num grito de angústia, assim, por esta ordem, primeiro os dedos, depois os olhos e, por fim a boca, embora numa sucessão quase síncrona. O corpo já não descaiu para o banco, seria impossível, depois daquilo, visão terrível que mais parecia saída dum pesadelo alucinado, daqueles que, aliás, ela costumava padecer. Mas não, não era pesadelo. Nem sequer era castanho escuro - cor habitual dos seus pesadelos -, ao menos a avaliar pelo nojo que se lhe colara às mãos, tal como lhe aparecia, rubro, embora escuro, à luz difusa do candeeiro público que enchapelava o banco. 
Deixou-se escorregar para o chão, procurando com toda a força da sua determinação fugir do desmaio que ameaçava prendê-la nos braços do abandono e do esquecimento, olhou aflitivamente à volta, sem saber se com medo se com esperança de vislumbrar alguém, apertou os joelhos com as mãos ainda pegajosas, na tentativa de proibir a tremura que lhe sacudia o corpo, repercutindo um barulho metálico por entre os dentes, e procurou pensar, pensar no que seria aquilo. Podia tratar-se dum engano, podia não ser exactamente o que lhe parecera, valia mais acalmar-se e olhar de novo. Após uma pausa que lhe pareceu de séculos, lá conseguiu enfrentar aquilo. E confirmou. Então, tudo o que não tinha comido durante o dia saltou-lhe à boca e da boca para fora, num espasmo de entranhas arrancadas. Contrariou, com todas as forças de que foi capaz, a sensação de desmaio, levantou-se numa finta de coragem e correu sem parar até quase embater na parede do prédio. Enrolou as mãos no emaranhado mundo da carteira traçada  a tiracolo, até conseguir desenvencilhar o molho de chaves, e, depois, seleccionar a da porta da entrada, que, com a dificuldade duma tremura persistente, lá conseguiu, ao fim de vários desacertos, introduzir na fechadura, precipitando-se, de seguida, para o elevador, que, parado no 11º andar, teimava em não descer. Maldisse os vizinhos, lançou-se às escadas num trote de cortar o fôlego a qualquer atleta, desenterrou a segunda chave da molhada, enfiou-a na fechadura, ainda trémula, cada vez mais trémula, e precipitou-se para dentro, batendo a porta com estrondo, do qual ninguém se apercebeu, tal a violência do trovão que se lhe sobrepôs, ao mesmo tempo que a chuvada mais monumental de que podia haver memória viva se despenhava contra os vidros das janelas.
Lançou o fato roxo para o caixote do lixo - não, não haveria lavagem capaz de retirar aquela viscosidade e, muito menos, de apagar a respectiva memória -, enfiou-se debaixo do chuveiro, chamando a si uma chuva escaldante, ensaboou-se até à exaustão, esfregou as mãos com a escova das unhas até arrancar pedaços de pele, enrolou-se na toalha felpuda, secou o cabelo até não restar pingo de humidade, olhou-se ao espelho e soltou um grito tão forte e tão agudo, que até as cerdas da escova de dentes se eriçaram de medo e angústia - bem, não exactamente, mas até poderia ter sucedido, caso se tratasse dum pesadelo. Todavia, continuava a não se tratar dum pesadelo. Era real, bem real. Lá estava ela, toda reflectida no espelho de alto a baixo, excepto a cabeça. A cabeça, por mais que o grito testemunhasse a sua existência, não estava lá. Apalpou os olhos, o nariz, os lábios, o cabelo e todos responderam afirmativamente. Mas continuava ausente do espelho. Um aperto no coração fê-la cair desamparada. Finalmente o desmaio tomava conta dela.
Quando acordou, demorou menos dum segundo a recordar-se do sucedido, pegou no telemóvel e ligou para ele, precisamente ele, Thomas, para quem mais haveria de ser?
Ele começou a rir, quando ela lhe relatou que não conseguia encontrar a cabeça, invocando o espelho como testemunha.
- Ora, Mary, mas isso não é novidade nenhuma, afinal não seria a primeira vez que perdes a cabeça!
O choro que lhe chegou do outro lado fê-lo refrear a vontade de brincar, embora admitisse tratar-se dum pretexto dela, mais um, para novo reencontro. Procurou acalmá-la e foi rapidamente ter com ela. Encontrou-a para lá de perturbada, tentou perceber o motivo, insistiu em levá-la ao hospital, tudo em vão. 
- Não volto a sair, como posso fazê-lo, neste estado?
- Qual estado, Mary?
- Sem cabeça, sem cabeça, não vês?! - desesperou-se ela.
Thomas só aí percebeu que o caso transcendia as suas capacidades de ajuda. 
Mais tarde, após a ter deixado entregue aos cuidados dum familiar e do INEM, caminhando, preocupado, de regresso a casa, deparou-se com um enorme aparato policial, junto à entrada do parque. Aproximou-se cautelosamente e um dos muitos mirones já ali reunidos esclareceu-o:
- Parece que encontraram uma cabeça humana ensanguentada num banco do parque…
- Como assim?

- Sei lá, não sei mais do que isto, foi o que ouvi.


(Imagem obtida em pesquisa Google)





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