segunda-feira, 8 de junho de 2015

VIDAS!


Há vidas que são meras abstracções, não passam de coisa nenhuma.  Os seus ocupantes nada têm para contar. Mantos lisos, planícies intocadas. Nem sequer uma história, mesmo sendo a daquele  sem abrigo, o da reportagem da televisão, do sorriso metido para dentro, como quem pede desculpa por se apresentar, mas simultaneamente  estremece de orgulho dos seus quinze minutos de fama. Bastou perguntarem-lhe e começou logo a desfiar, como quem cospe caroços de cerejas, o sorriso engolido, sempre. Primeiro foi a infância abundante de bolachas e brinquedos e amor de pais e avós e irmãos e cânticos celestiais, depois o casamento desejado (sim, saltou da infância para o casamento, talvez por restrições do tempo de antena, afinal são apenas quinze minutos...). Tinha um óptimo trabalho, muito bem remunerado, socialmente relevante, uma mulher bonita e esperta, que se fazia passar por burra quando convinha, dois filhos deliciosos, um rapaz e uma rapariga, como convém (o casalinho, costuma dizer-se, embora eu ache ridículo, muito pequeno burguês e mesmo salazarento, como se as pessoas estivessem obrigadas a parir médias em nome da família perfeita e compostinha), um carro topo de gama, um Rolex que quase lhe esmagava o pulso forte, e por aí fora, tudo nos conformes do deus da abundância e do consumo, símbolo de perfeição, ao menos naquela década, em que perfeição era sinónimo de sucesso e sucesso significava aquilo, aquele padrão, soletrado por entre dentes, agora escurecidos. Depois veio a crise,  no início não ligou, parecia que só afectava os outros, os que, parvamente, se tinham deixado apanhar, até que um dia os despedimentos bateram à porta da empresa, as entranhas a espremerem-se de expectativa, depois a lividez a corar de alívio, quando os Recursos Humanos ainda só clamavam pelos outros, por fim o estrondo, a porta a fechar-se-lhe nas costas desabrigadas, começar a descer as escadas às arrecuas do sucesso, inventar uma coragem desconhecida, porque até então desnecessária, caminhar até ao carro numa nuvem de tontura, atinar com a chave na ignição, por entre a tremura dos dedos moles, a escorrerem de suor, aquela coisa pegajosa, antes só conhecida dos jogos de ténis e da sala de cardio do ginásio XPTO, nunca do espanto e do medo do inimaginável. DESPEDIMENTO! Dar voltas e voltas à toa, ainda sem pensar onde iria de futuro buscar o dinheiro para a gasolina, uma indemnização miserável, nenhuma desculpa, apenas a crise - lamentamos muito, Sr. Dr., mas temos de dispensar os seus serviços, aliás, magníficos - se são magníficos por que dispensá-los?, pensou, mas omitiu, porque o espanto, a incredulidade e ainda não a raiva, apenas a sua promessa, se lhe enrolaram na garganta, como se tivesse acabado de engolir um emaranhado de cabelos espessos, os da mulher..., não, não podiam ser os da mulher, os dela eram sedosos, a condizer com o brilho dourado da cor, e compridos, bem abaixo dos ombros..., a mulher, como havia de lhe contar? Ensaiava um sorriso medroso, merdoso, uma coisa ou outra ou ambas, era medroso e era merdoso, porque aliava o medo à vergonha da confissão, ia ter de assumir, perdera a condição de macho alfa, o providenciador de alimento e luxo, de status e sexo (embora este último, nem sempre quando ele queria...). Chegou a casa, custou-lhe ainda mais acertar com a chave na fechadura do que com a chave do carro na ignição, as mãos tremiam com mais força, como varas verdes, só lhe vinha à ideia esta expressão, ressoando sabe-se lá de que profundezas, a avó, sim, era a avó que tinha a mania de dizer aquilo, que alguém tremia como varas verdes, porque estava pedrada de medo - bem, a avó não dizia pedrada. Mas estava com medo de quê? Ora, tinha as suas competências, ainda agora se estreara nos quarenta, contactos e influências não lhe faltavam, havia de arranjar algo, rapidamente, para esfregar na cara do Dr. António Pinto, o dos Recursos Humanos, e do patrão, embora não soubesse bem quem era o patrão, afinal a empresa era uma multinacional. O abraço da mulher, embrulhado num grande ponto de interrogação, e a farpa, as farpas - mas escolheram-te a ti porquê? E agora, vais fazer o quê? E ele, todo amarelo por dentro, a cara torcida num sorriso de AVC, a sentir-se desapoiado e desafiado e culpado, uma mistura que o vergava com a força dum dever, o dever da sua condição de macho-alfa, o preço a pagar, um dos preços a pagar por poder apresentar-se perante a sociedade como um número positivo, um símbolo de realização e de sucesso, poder exibir um Rolex esmagador, um trabalho de prestígio, uma família esplendorosa - por essa altura, Deus e a Pátria tinham abandonado a trilogia, a família manteve-se, porque fica sempre bem. Depois, a passagem dos dias e dos meses, ele a multiplicar-se em energia e a desdobrar-se em contactos e iniciativas, entrevistas e testes, e as portas a fecharem-se-lhe, primeiro de mansinho, primeiro, e depois com estrondo, atrás das costas, contra as costas, fechando a esperança, amordaçando o orgulho, quebrando a vontade de continuar. O dinheiro a esvair-se como pulmão de tuberculoso, os amigos a passarem ao largo, os filhos a mudarem para a escola pública, a mulher a reclamar e, não tardou nada, a fechar-se em copas até que um dia, ele a chegar ela a sair, toda aperaltada com o resto dos luxos acumulados, e o anúncio - vou trabalhar, alguém tem de sustentar a casa, os meninos, a família, tudo palavras atiradas que nem facas de circo, mas mais certeiras do que facas de circo. E ele apanhado pelo mesmo espanto e incredulidade, gago de vergonha e de ressentimento, ainda não era ou já não era o tempo da raiva, porque já estava desistente, sentia-se um farrapo, até os filhos fugiam dele, não o reconheciam, como cães que ladram a mendigos. Ela a regressar e ele a descair do sofá, a garrafa de JB acabada de diluir, a fúria dela a subir e a comandar - rua, isto não é albergue de desocupados!, os filhos espavoridos, cada um para seu lado, a menina, seis anos, dava saltinhos aflitos, o menino, oito anos, desaguava lágrimas sobre o comando da PlayStation, enquanto devorava as unhas, um fio de sangue a deslizar pelo sabugo - lindo exemplo para os teus filhos, olha para eles, já nem te reconhecem, rua, deixa-nos em paz! - rugia ela, agora mais despreziva do que raivosa. E ele saiu e daí até debaixo da ponte, por assim dizer, foi questão de meses, as últimas janelas - já não restavam portas - fechadas, o horizonte a fechar-se, a fechá-lo naquele imenso espaço aberto que é a rua, terra de todos e por isso de ninguém. Foi no dia 23 de Dezembro que o entrevistaram, no salão da Paróquia de não sei das quantas, à espera daquela espécie de consoada, servida por voluntários, um deles, o dos Recursos Humanos. Talvez ocupasse uma vida abstracta, o dos Recursos Humanos. Ou talvez não. 








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