quinta-feira, 23 de julho de 2015

A MENINA QUE VIVIA A SONHAR


lá longe, num planeta extremo, havia uma ilha, de pés dados ao mar
albergava uma casa pequena, refulgente de branco, qual campo de neve sob o luar do sol
mas não era neve, era simples cal
bem, escondia um segredo, não era apenas cal, pois - e só aqui entre nós - pó de diamante se lhe misturara
era mesmo isso que tanto brilhava!
tinha uma varanda, enrolada à volta, qual écharpe flutuante
uma varanda redonda, um círculo fechado, quero dizer, um círculo
só podia, pois a casa circunferenciava
dispensava telhado, escancarava-se para cima, com intenção
assim, os seus moradores podiam colher directamente farrapos de nuvens, aves vagabundas e estrelas cadentes
e até as outras, quiçá
tinha uma só porta, de caras para o mar
quando não alterava a localização, espantando-se para os lados ou para a parte de trás
quando, não cansada do mar - nunca se cansava do mar -, lhe apetecia ver o arvoredo, mudava de posto e quando, não cansada do arvoredo - nunca se cansava do arvoredo -, lhe apetecia o mar, voltava a mudar
e o mesmo quando queria ver ambos...
era apenas isso
mas, ao contrário do telhado, a porta permanecia sempre fechada
porquê?
porque não havia ninguém para lá entrar, a não ser quem, vindo da parte de cima, lá quisesse aterrar, embora depois fosse livre de voltar a voar
ah! já me esquecia de dizer, a ilha era deserta, sem sombra de alminha para a habitar
bem, não era exactamente assim, alguém lá haveria, mas era segredo, bem guardado da porta para dentro - e só aqui entre nós deixa de o ser, que falo baixinho, num murmúrio brando e estou bem ciente que não ireis contar
e quem era esse alguém?
isso já não sei, toca a adivinhar!
seria um duende, um troll, um dragão, um cãozinho agitado, uma fada madrinha, uma bruxa má, uma pessoa bonita, uma rã coxa, sempre a coaxar, a princesa da ervilha, o joão ratão, o burro do schreck, um qualquer minion ou então quem?
toca a adivinhar!
nada disso, estou já a avisar
quando descobrirem, venham-me contar!
... ora, ninguém sabe, vou confidenciar: era uma menina que vivia a sonhar!
   








sexta-feira, 17 de julho de 2015

MORREM MAIS DE MÁGOA


Quando li este título dum livro do Saul Bellow - Morrem Mais de Mágoa -, podia ter pensado numa frase que, ouvida repetidas vezes, por alturas da adolescência, me suscitava uma certa sobranceria. Morreu de desgosto, era a frase, que, acompanhada dum empático coitadinha, se referia a uma senhora - creio que a D. Guilhermina, da sapataria... -, que expirara do coração, depois de inúmeras traições maritais. Para mim, era do domínio do inconcebível que alguém pudesse morrer de desgosto e, para mais, por um tal motivo. Enfim, pouca vida, quero dizer, vivência. Hoje, muito tempo depois, já percebo que alguém possa morrer de desgosto, pelo motivo mais improvável, sobretudo se se entender como morte a recusa ou impossibilidade de viver (mesmo continuando vivo)...  
Não é que tenha pensado nisso, na tal frase e no mais, mas fiquei curiosa sobre que causas de mágoa/morte versaria o livro e criei a ideia de que talvez pudesse tratar-se duma narrativa pungente, de tom magoado. 
Puro engano, felizmente! O tom deste romance nada tem do (tipo de) dramatismo que o título possa sugerir. Não que a história não contenha elementos dramáticos, mas é abordada com uma notável dose de  distanciamento crítico, tecido, com mestria, numa base de racionalismo e objectividade. No entanto, versa sobre questões tão subjectivas como sejam as relações de amizade, aliás, elevadas ao grau duma invulgar cumplicidade, entre um tio e um sobrinho - o narrador -, como pano de fundo para o discurso sobre as dificuldades de ambos - por razões bem diversas, apesar de, eventualmente, remetidas a uma matriz comum (de individualismo e solidão) - em estabelecerem relações amorosas gratificantes - face aos seus padrões de expectativa e, já agora, aos padrões socialmente dominantes. Assim, o narrador vai-nos contando o percurso amoroso do tio, enquanto nos desvenda o seu, embora aparentando conferir-lhe o nível dum segundo plano e dissertando em termos que, por vezes, se revelam quase ensaísticos, sobre vários assuntos, pessoais, sociais e políticos, o que faz num tom surpreendente, pela argúcia de observação psicológica, pelo humor, de marca irónica, e, sobretudo, por uma cativante actualidade, que me deixou francamente rendida. Abro um parêntesis para salientar que este último aspecto pode considerar-se indicado no próprio texto (de forma mais ou menos subliminar), quando o Autor coloca na voz do narrador as seguintes observações: "Embora ela fosse apreciadora de Balzac, os seus interesses mais profundos estavam tão longe do mundo contemporâneo como os do marido. Quando nos metemos na vida quotidiana, podemos ser apanhados pelo pescoço, mas se, por outro lado, nos recusarmos a entrar nela nunca se perceberá nada." (p. 356) e, mais adiante: "Contudo, o certo é que, sem tais dons, não havia forma de compreender a América, e de que servia batalhar por compreendê-la se falta a aptidão? E possuo uma forte tendência para ser contemporâneo, se assim não fosse estaria, se calhar, a discorrer sobre a Grande Muralha da China. " (p. 365). 
A acção é conduzida com doses precisas de teasing, que nos ajudam a manter o foco no fio condutor - a história do tio - pelo meio dos interessantes (aparentes e abrangentes) desvios com que nos vai presenteando.
Também a merecer destaque, a exitosa fuga aos lugares comuns, com frases deliciosas, que dizem tanto em tão pouco e dum modo tão original, como quando refere: "Eu observava atentamente o tio Benn. Conhecia o seu rosto do direito e do avesso. Quando estava bem, era como a Lua antes de termos lá poisado;"  e "Matilda precisava de tirar medidas ao apartamento de Roanoke, que herdara da tia, e levou Benn com ela para a ajudar a segurar na fita métrica." (respectivamente, pp. 154 e 188, sendo os sublinhados meus). 
Acresce uma particular evidência do fenómeno da intertextualidade, traduzido nas constantes referências a outros escritores (sobretudo, os clássicos franceses e russos, em linha, aliás, com a própria biografia do personagem-narrador, de formação francesa e professor de literatura russa).
E a razão do título? A este propósito e não querendo adiantar mais, limito-me a deixar, de resto, sem qualquer compromisso, umas frases em que fui reparando pelo caminho da tão grata leitura deste óptimo romance: "Bom... concordei que era mau, mas por fim disse: "É terrivelmente grave, claro, mas acho que morre mais gente de mágoa do que de radiação."" (p. 109); "E pode seguramente calcular-se que morre mais gente de mágoa do que de radiações atómicas, mas não existem movimentos de massas nem manifestações de rua contra ela." (p. 251); "- Não a afastou, Treckie, o seu comentário foi que morre mais gente de mágoa do que de envenenamento por radiação." (p. 404).
Quanto ao cerne da questão, esse, para mim, está sintetizado numa certa (e magistral) passagem, situada na página 395...
Alguém quer ler o livro, encontrá-la e deixá-la aqui em comentário? Gostava que alguém o fizesse ... e fico à espera!







  

sábado, 11 de julho de 2015

PALAVRAS CALADAS, GESTOS MUDOS


Não entendo o que te deu, de repente iniciaste um murmúrio, como quem reza a nenhum santo, como quem entrega palavras ao vento que passa devagar ou se limita a deixá-las cair, sem qualquer intenção de arremesso, nem zanga nem mágoa nem resignação, apenas um cântico da indiferença, da mera constatação, liberto de juízos, melindres ou acusações, como quem está tão de fora, do lado do além, que só pode ter mergulhado fundo, por dentro, ultrapassado as paredes de si e, com elas, o desgosto, o irrealizado, o conto dos amores desfeitos, e começaste a dizer: 

calam-se as palavras do desejo
poupam-se os gestos da ternura
prendem-se os beijos
desaprende-se o sonho
fecham-se os corpos, hirtos
apagam-se as luzes 
resta a penumbra 
uma réstia
resta uma réstia de penumbra
para ver
apenas
o filme
das ausências
para lá das ausências
na paz 
da simples
observação

Espantei-me para ti, como quem interroga, o que estás a dizer, isso é contigo, é de ti que falas, nessa abstracção de desenganos, nessa calma de quem reza mas não é a santos? E tu, nada, nem sequer me retribuíste o olhar! Já te perdias nas próximas palavras, talvez, nessa litania sem o ser. Vestiste o casaco, levantaste a gola, que estava frio, já ia estando frio, olhaste para fora e, de repente, já de saída, rodaste o corpo na minha direcção e disseste, sabes, apetecia-me chuva, que chovesse, quero dizer. Derramei-te a minha perplexidade, esquecendo-me que sempre gostaste de chuva e perguntei, sem jeito, chuva, apetece-te chuva, mas porquê? Já estavas de saída, nem ouviste a pergunta, já ias longe, mas continuava o tempo seco. Pensei e, ao mesmo tempo, disse, como quem reza a nenhum santo, como quem entrega palavras ao vento que passa devagar ou se limita a deixá-las cair, sem qualquer intenção de arremesso, nem zanga nem mágoa nem resignação, apenas um cântico da indiferença, da mera constatação, liberto de juízos, melindres ou acusações, como quem está tão de fora, do lado do além, que só pode ter mergulhado fundo, por dentro, ultrapassado as paredes de si e, com elas, o desgosto, o irrealizado, o conto dos amores desfeitos, disse:

cala-se a chuva
até a chuva se calou

Espanejo os cabelos,  e é a minha vez de sair, preciso de apanhar ar, visto o casaco, levanto a gola, que está frio, já vai estando frio, bato a porta, coloco os olhos em modo de ver e estás lá, e, como se nada fosse e nada importasse, dizes, estava à tua espera, vamos? Ou terá sido uma ilusão, porque, como começaste por dizer,  calam-se as palavras...  Calam-se as palavras do desejo, foi o que comecei por dizer - corriges. 

Seja, engolem-se as palavras do desejo... 







domingo, 5 de julho de 2015

À GRÉCIA, AOS GREGOS!


Quem frequenta este blog, sabe que a minha posição só podia ser esta: SIM (NAI) à Grécia, NÃO (OXI) à Alemanha! A UE vem por acréscimo, reduzida a uma enorme interrogação, mais de espanto que doutra coisa...







(As imagens de base - desenho das bandeiras - foram obtidas em pesquisa Google; a concepção e execução dos elementos gráficos acrescentados são de minha autoria)




sexta-feira, 3 de julho de 2015

TRALHAS VAZIAS


levas muito por fazer
levas muito por dizer
levas muito por viver
levas nada para contar

deixas ideias por cumprir
e sonhos por acordar
deixas laços por tecer
e peças por representar

à escala do infinito

incertezas, ansiedades
alegrias, estilhaços
coisas azuis, verdes, mais
o som dos risos libertos
o silêncio dos trovões
afagos de chuva forte
gestos suspensos no ar
primaveras glamorosas
angústias da cor da cinza
um contínuo bater de asa
penas soltas como estrelas
luas seguindo-se a luas
movimento pendular

uma incompreensão basilar
uma resistência invulgar
uma luta permanente, assimétrica, tentacular

só queres rematar as pontas
numa pressa alucinada
nada ter para levar
nada ter para deixar
mergulho no universo
sem memória ou identidade
nada de vidas suspensas
de tralhas a carregar

(Imagem obtida em pesquisa Google)