segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

O NATAL ESTÁ NO AR!



As mãos pendiam-lhe, sujas. Era a sujidade da fome. Acabara de remexer um caixote do lixo, na esperança de surpreender desperdícios alheios, capazes de lhe preencher a cratera que tinha no lugar onde, habitualmente, as pessoas alojam um órgão designado estômago. Porém, o êxito da incursão foi semelhante ao do suicida que tenta a intoxicação por gás sem se lembrar que o mesmo acabou de ser cortado por falta de atempado pagamento da conta.

Adiantou uns passos e descaiu, semi-enrolado, junto à porta dum prédio, que, caso não tivesse os olhos tão vermelhos e a visão tão turva, teria reparado não lhe ser conveniente.

Quando, exaurido por tantas carências que já não sabia quantas  nem quais, e sempre acompanhado por aqueles dentes mordentes cravados no lugar do estômago, tentava mergulhar na esperança do adormecer, quando não do desligar, ouviu a aproximação dum carro, seguida do bater, determinado, quase violento, duma porta. Nos seus olhos vermelhos de visão turva, adentraram-se umas pernas quilométricas, montadas nuns stilettos de pelo menos treze centímetros de altura, rodeadas de fitas brilhantes, que pendiam de papel lustroso e discretamente colorido, armado, com gosto e distinção, em sacos encerrados por elegantes etiquetas de exclusivas marcas internacionais. Um pouco à frente, saltitando em passinhos curtos e amestrados, irrompia um cão milimétrico, de marca caniche.

Reparou que as solas dos sapatos - por assim dizer, o ponto final naquelas pernas de tamanha distância - eram vermelhas, dum vermelho vibrante e sumarento, que lhe evocou um bife, tapume perfeito para o buraco no lugar do estômago, pensou, aliás, salivou.

Embora fraco, não estava maluco, sabia que aquilo não era um bife, aliás, dois bifes, cada um revestindo seu pé. Mas também não ignorava que uns certos marujos, duma longínqua Nau Catrineta, à falta de melhor, deitaram sola de molho para o outro dia jantar. Reuniu a sua derradeira falta de forças e lançou-se aos pés daquela esbelta  silhueta, já o caniche se adentrava no prédio, cuja porta se abrira por gentil intervenção dum porteiro fardado a rigor, tão a rigor que mais parecia um dos sacos transportados pela dama alcandorada na altura dos rosados bifes ou assim.

Do alto dum compreensível sobressalto, ela, que estava habituada a caminhar a direito, de cabeça erguida, desceu o olhar ao nível do atacante e, mesmo sem levantar excessivamente a voz e mantendo um elegante ar, como dizer?, dengoso (se é que a elegância pode conviver com a denguice), ordenou ao porteiro:

- Ambrósio, apetecia-me algo! 

E ele:

- Tomei a liberdade de pensar nisso, Senhora! - ao mesmo tempo que enxotava, discretamente, o atacante da sola de sapato da madame, que, espavorido, com a cratera interior a explodir, desaparecia de cena, qual vítima de auto combustão súbita (não se dignando ficar para o resto da história e sem lhe escapar que não passara de pretexto para a mesma...ou talvez não).

Grata pela elegante e síntona prontidão  do Ambrósio, a senhora ofereceu-lhe um bombom Ferrero Rocher, previamente lambido,  deixando o caniche cheio de ciúmes, ao menos até chegar a casa, onde o aguardava um delicioso patê (se é que os cães em geral e os caniches em particular são aficionados de patê).





Agradecimentos:

Esta história não teria sido possível sem a colaboração de Almeida Garrett, que recolheu o icónico poema Nau Catrineta, onde se tenta por certos marinheiros, desesperados pela fome, a jantar solas demolhadas,  todavia sem êxito, pois a sola era tão rija, Que a não puderam tragar. Calculo que, nos tempos idos da minha meninice, este episódio deva ter-me afectado um bocadinho...

O mesmo se diga, no tocante ao mítico anúncio dos magníficos bombons Ferrero Rocher (supra, a partir do Youtube), que, em minha modesta opinião, é digno duma extensa tese psico-sociológica sobre as relações entre as classes dominantes e as dominadas e pertinentes artimanhas (no mínimo).

A época natalícia também teve a sua influência...

Obrigada, pois, ao autor do poema e a Almeida Garrett, ao autor do anúncio e à quadra em trânsito.

Só mais uma coisa: a Ferrero Rocher pode considerar-se à vontade para enviar uma caixa (ou várias) dos magníficos bombons; Dispenso os sapatos da sola vermelha (Christian Louboutin), pois não me aguento em stilettos, tropeço (e, por menos, até já parti um pé!).







      

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