sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

JÁ MORRIA!


uma infinidade de passos curtos e inconstantes levou-a até ao cadeirão de verga que repousava à sombra da macieira. Sentou-se devagar, como devagar era a sua existência, já ia para uma eternidade, parecia-lhe. encostou a um lado a bengala brilhante, encimada por uma figura pequena e delicada, talhada em prata, agora escurecida. era um pato ou ou cisne. sempre gostara de animais, quer dizer, como elementos decorativos. reproduções de animais. animais a sério era assunto diverso, requeriam condições especiais, como um jardim ou um quintal onde pudessem habitar e soltar-se para a vida. para estarem presos em apartamentos, isso não, não era coisa que fizesse sentido. agora tinha o jardim, aquele jardim, mas já era tarde.

já era tão tarde, nem dava para perceber aquele atraso, tal a falta de sentido para continuar a permanecer. quer se quisesse quer não, a partir de certa altura - senão, mesmo, do início! - fazia-se tarde para todas as pessoas. era o que sempre constatava quando se punha a olhar para a sua figura, agora tão diminuta, para a sua vida e para a vida, em geral.

recostou-se no cadeirão já um pouco usado, olhou para cima, na medida das possibilidades da sua cervical empedernida - como se estivesse zangada com ela, que disparate! - e prendeu os olhos embaciados nas maçãs verdes que começavam a despontar. o sol, repartido em pequenos pedaços que desenhavam os intervalos da folhagem, quais caramelos de formato irregular, aquecia-lhe as faces. pensou no tempo em que passara tardes inteiras de torreira, na paria, toda oferecida ao clamor ardente do astro-rei, sem se preocupar com coisas que só mais tarde entrariam em artigos de revistas banais, coisas do tipo de cancro de pele, envelhecimento precoce, etc. por essa altura a sua pele era límpida e lisa e brilhante como as faces do mais puro diamante. não que tivesse consciência disso. como tal, também não tinha consciência de que pudesse deixar de ser assim, ou melhor, de que um dia haveria necessariamente de deixar de ser assim. por isso ficou muito espantada quando, décadas depois, um qualquer espelho lhe devolveu uma cara que já não era a sua. mas isso eram águas passadas. foram os tempos do écran total diário, verão ou inverno, trezentos e sessenta e cinco dias por ano, na esperança de sustar estragos futuros. isso agora já não interessava, não que se tivesse habituado àquela cara que não era a sua, que cada vez era menos a sua, apenas se habituara a essa desabituação. não é a mesma coisa.

pensou na sua vida por etapas, dos zero aos dez anos, a infância protegida, as primeiras desconfianças do mundo, as expectativas depositadas no futuro, não por ela, entenda-se. dos onze aos vinte anos, a adolescência amordaçada, a juventude enclausurada, um tédio descomunal, um mundo paralelo, sabido paralelo, para fugir a tudo aquilo. dos vinte e um aos trinta anos, um início relampejante da vida, da vida boa e compensadora que podia ter sido e o seu oposto, quando as esperanças se esboroaram. dos trinta e um aos quarenta anos, o mergulho nos infernos, a vida a negar-se-lhe ou seria ela a negar-se à vida? e por aí fora, tudo medido em décadas, nisso era um bocado maníaca. até chegar ao agora, quase a fechar os oitenta e cinco anos, números redondos, a mania dos balanços. nada que verdadeiramente se aproveitasse, que pudesse dizer-se, valeu a pena o esforço e o tormento.

ouviu um remoinho de passos amansando tufos de relva. lá vinha a bandeja do chá, o chazinho, como ela dizia, a outra, a empregada do lar de luxo em que se tinha feito depositar quando concluiu já não ter mais nada a cumprir no mundo lá de fora (não que alguma vez tivesse tido!). que mania aquela, falar por diminutivos, como se os velhos recolhessem à criancice. 

murmurou por entre dentes, já morria (nada que não se viesse repetindo há décadas). a outra, a empregada, ouviu e, com a alegria encomendada que lhe pagavam para exibir, disse, no seu ar apalermado de quem não percebe nada, o quê, senhora D. Maria Luísa, o que é que já morria, o sconezinho delicioso que lhe trago aqui? ainda quentinho, acabado de fazer, é um regalo...

ponha aí na mesa, deixe ficar, interrompeu-a a velha senhora, procurando, sem êxito, dissimular a irritação. 

o sol fez-se menos quente por entre a folhagem da macieira. depois apagou-se. já não era sem tempo.








segunda-feira, 28 de novembro de 2016

PAI NATAL E MENINO JESUS: O ENCONTRO (RAP)


eis o tempo a repetir-se
o pai natal pôs-se a mexer
arranjou lauto farnel
deu um beijo à mãe natal
despediu-se dos duendes
agradeceu-lhes o labor
carregou embrulhos mil
todos muito engalanados
era só papel brilhante
e laçarotes de cetim
mandou assobio às renas
segredou-lhes ao ouvido
não se sabe bem o quê
talvez o itinerário
e pôs-se a milhas, por fim

a tarefa era pesada 
mas muito do seu agrado
fazer numa meia noite
o que poucos tinham feito
em certos oitenta dias
(mesmo assim, só em romance!)
ir do norte até ao sul
do leste até ao oeste
sem deixar no esquecimento
sequer uma chaminé
fosse de casa fraquinha
ou do mais belo chalé

aqueceu-se com licor
cantou uma moda alegre
as renas acompanharam
num suave relinchar
(ou relinchar é de cavalos?)

tudo correu à maneira
até uma certa lareira
esqueceram-se dela acesa
ia queimando a traseira
sacudiu as cinzas da roupa
esboçou uma cara feia
depois riu-se divertido e pensou
ora, é natal, não posso levar a mal
por fim, tudo correu bem
empanturrou a barriga
foi leitinho, bolachinhas
e até um potinho de mel 

já ele ia de regresso, destino rovaniemi,
deparou-se-lhe uma estrela
com brilho descomunal
apontando lá para o longe
para um caravançarai

apressou-se na descida
apeou-se do trenó
as renas a resmungarem
cansadas de meter dó
é só mais um bocadinho
segredou-lhes ao ouvido

ouviu uma vaca mugir
e um burrinho zurrar
passou pela multidão
e quem viu ele
quem viu ele?
um menino pequenino
acabado de nascer
mãe dum lado, pai do outro,
três reis cheios de presentes
e muito mais pessoal
todos em adoração

perguntou-se, angustiado
e que faço eu agora
já sem nada para dar?
o menino remexeu-se
virou-se para ele e disse
ora essa, pai natal
não quero qualquer oferta
já te vi, fico feliz
o pai natal,  intrigado
ia mesmo perguntar
mas o menino interrompeu-o
e disse-lhe devagar
quantos meninos no mundo
já viram o pai natal
o verdadiro?
pensa nisto! 
ah! sorriu o pai natal
está bem visto, meu menino...
... Jesus, o meu nome é Jesus
digo-te antes que perguntes
ah! gaguejou o pai natal...
não te assustes, bom velhinho
que não te vou acusar
de concorrência desleal
acho mesmo que nós dois
formamos a equipa ideal
amamos as criancinhas
e mantemos, em conjunto
a magia do natal

despediu-se o pai natal
de coração mais quentinho
montou-se no seu trenó
regressou ao polo norte
esperavam-no, animados
os duendes e a mãe natal
contou-lhes o sucedido
com enorme excitação
abraçaram-se, contentes
beberam uns grogues quentes
e lá foram descansar


(imagem obtida em pesquisa no google)




segunda-feira, 21 de novembro de 2016

BALZAC E A COSTUREIRINHA CHINESA


Balzac e a Costureirinha Chinesa, da autoria de Dai Sijie, é um livro simplesmente delicioso! Conta-nos a história de dois adolescentes oriundos da burguesia intelectual chinesa, que, em plena Revolução Cultural, ao mando do Grande Timoneiro Mao Tsé-Tung, são desterrados para uma aldeia suspensa no tempo e na montanha da Fénix Celestial, junto ao Tibete, a fim de serem reeducados às mãos de camponeses praticamente analfabetos e tacanhamente incultos (à chegada, o chefe da aldeia quase destruiu o violino dum dos rapazes, que confundiu com um simples brinquedo burguês, logo, objecto proibido pelos rigores da revolução...). 

O percurso de (re)aprendizagem passa pelo cumprimento de duras obrigações, incluindo, nomeadamente, o trabalho nos campos e nas minas. Todavia, os talentos narrativos, sobretudo dum dos jovens, acabam por lhes render inesperada vantagem, ao transformá-los em veículos orais dos filmes que passam numa aldeia vizinha, introduzindo na aldeia a única modalidade de cinema aí conhecida, o, por assim dizer, cinema falado...

No percurso, surgem mais dois personagens-chave, uma jovem costureira, a costureirinha, filha do alfaiate da região, e um outro rapaz, também em reeducação. Com aquela surgem os mistérios do amor, com este revela-se um objecto proibido, altamente desejado pelos dois protagonistas, uma mala de livros de autores (ocidentais) clássicos, entre os quais, Balzac (sendo que, em matéria de livros, os comandos revolucionária apenas permitiam o Livro Vermelho...).

São, justamente, estes dois elementos que vêm a estabelecer o fio condutor da acção e a determinar o seu desfecho, pondo, nuclearmente, em evidência a magia e o poder da literatura. Isto, sem deixar de fazer sobressair um conjunto de (outros) valores, como a amizade, a entreajuda, o entusiasmo e o destemor da juventude, o poder de adaptação e de superação (só para mencionar  alguns).

Mas, o que torna este livro verdadeiramente delicioso é, a par da fluidez e limpidez da escrita, a perspectiva adoptada na narrativa, duma pureza da ordem da quase inocência, duma leveza de pássaro distante, que, sem pretender branquear a rudeza da situação de partida -  está lá, em toda a sua nudez -, coloca a tónica nos valores - da ordem dos acima mencionados -, que acabam por sobressair mesmo em situações limite e, logo, em contraponto aos seus opostos. Não esquecendo um fio de humor ou de brincadeira, que perpassa todo o romance.    

Note-se que o Autor, nascido em Chengdu, Sichuan, China, em 1954,  foi, ele próprio, colocado em reeducação entre 1971 e 1974. Mais tarde, veio a estabelecer-se em França, tendo publicado este livro em 2000. Em 2002, adaptou-o e levou-o, sob sua direcção, ao cinema.





    

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

MOON, SWEET MOON!







Ainda não vi a prometida grande LUA de hoje, mas ontem, na hora crepuscular, registei-a assim, maravilhosa!














































PEDRO NOITES, A VERDADE!


Eis-me aqui, despido na primeira pessoa, para vos contar o verdadeiramente acontecido neste tempo de menos de um mês, em que vi a minha vida transformada numa espécie de reality show, no qual fui forçado, entre outras coisas, a sobreviver com meia dúzia de dezenas de euros e sem o apoio de ninguém.

Então oiçam:

Naquele dia que vocês já sabem, estava eu muito sossegado da vida, quando, do nada e sem mais nem menos, fui abordado por dois guardas da GNR, embonecados nos seus trajes de ofício e armados das correspondentes armas. Surgiram-me tão ameaçadores e destituídos de motivo alegado que me assustei deveras, tornando-me mais frágil e mais pequeno. Vai daí, em resposta à minha pergunta, - porquê?, expliquem-me porquê, se faz favor!, senti um estrondo deflagrar-me nos tímpanos e um projétil enfiar-se-me nas entranhas. Sem perda de tempo, eu para ali caído, afadigaram-se ambos a encaixar-me na bagageira do veículo de serviço, todo ataviado com a imagem de marca da instituição. Pararam um bocado adiante, no meio do mato, arrancaram-me à bruta daquela sinistra clausura e amarraram-me a uma árvore, como se estivesse capaz de ir a lado algum. Não contentes com isso, dispararam novamente sobre mim e puseram-se a milhas. 

Bem, calculo que se puseram a milhas, porque (felizmente) nunca mais lhes pus a vista em cima e, mal tive acesso a uma TV, vim a saber que tinham abandonado a viatura, substituindo-a por uma outra, que roubaram a um casal, após o terem baleado. Pobrezinhos, quero dizer, o casal, o homem ficou logo ali, esticado que nem um pernil, a mulher ficou ligada a máquinas, em plena suspensão entre os dois lados, o de cá e o de lá. Oxalá recupere, é mais uma valiosa testemunha da minha verdade.

Não sei dizer-vos como sobrevivi, talvez por milagre. O certo é que consegui desenganchar-me da árvore de amarração e fugir a caminho do bosque circundante. Obviamente, era minha intenção alcançar gente, alguém que me levasse ao hospital mais próximo e desse o alerta à minha família e às autoridades, sobretudo à GNR.  

Qual não foi o meu espanto quando, ao tropeçar numa pedra, dei de caras com um ribeiro, onde a minha figura se reflectia intacta, sem marca de beliscadura! Passei as mãos pelo corpo e o sangue tinha desaparecido. Os buracos da entrada dos balázios, idem. Pensei, deve ser do choque ou então foi milagre, assim sossegando o espírito e disposto a reflectir no próximo passo.

Uma apreensão apoderou-se de mim, quem iria acreditar na minha história, se as marcas não estavam lá para a suportar? Pus-me a vaguear pelo mato e, quando pude, puxei a gola do casaco até aos queixos, e entrei subrepticiamente num café de beira de estrada, onde, de cabeça baixa, dei atenção ao que passava na TV, sintonizada no canal do CM.

Ali estava, uma história completamente surrealista, em que o malandro era eu, acusado de ter matado um dos GNR e ferido o outro, deixando-o amarrado a uma árvore, de ter roubado o carro ao casal, matando o homem e deixando a mulher em suspensão entre o cá e o lá, e outras barbaridades mais, que calculo já deveis saber e por isso me dispenso de esmiuçar.

E eu para ali, completamente boquiaberto, vendo a minha fronha espalmada no écran da TV, chamado de fugitivo, ladrão e assassino,  alvo duma monumental caça ao homem. O homem era eu, claro! Registei, tomei consciência.

Saí do café e voltei a embrenhar-me no mato, para obter algum distanciamento que me permitisse pensar no passo seguinte. Duas coisas estavam claras na minha cabeça, primeira, queria ir ter com as autoridades, contar-lhes o sucedido, pedir justiça e protecção, segunda, tinha pavor de que, na tentativa, as autoridades me matassem. Ah! pois, fora isso que ouvira na notícia da CMTV, que as polícias, GNR à cabeça, andavam numa busca desenfreada da minha pessoa, com ordem para abater. Estava enredado num verdadeiro e dramático dilema. Que fazer?

Ainda permanecia na dúvida quando, indisposto, talvez devido ao stress, senti as tripas às voltas. Baixei as calças e acocorei-me atrás duma moita. Foi então que o som dos tiros, acompanhado do ruído das botifarras a esfarrapar o mato,  se aproximou assustadoramente na minha direcção. Apertei-me todo, tal o medo, cheguei a ver balas luminosas roçarem as ervas que me encobriam. Pior, ouvi distintamente uma voz enraivecida, saída dum vulto que pressenti quase sobre mim, proferir, - o sacana não se vai safar, é aparecer e levar um tiro nos cornos! Como fez aos nossos e a mais alguns! Tão certo como eu ser um GNR certificado! 

Tomei uma decisão. Afinal, bem vistas as coisas, não tinha tudo a perder, a minha verdade acabaria por prevalecer, como sempre sucede com a verdade, estava farto de andar a pastar duma moita para a outra e a ouvir desaforos da CMTV e de GNRs desaustinados, e, acima de tudo, precisava duma boa noite de sono. 

Embora não pudesse contactar ninguém e, muito menos, aparecer de visita, tive a sorte de ser resgatado pela Sr.ª D. Coisa, que, em plena actividade de apanha de míscaros, me encontrou descoroçoado, de encontro a uma árvore (já os GNR tinham abandonado a moita). Olhou-me enternecida, fez-me uma festinha na cara e disse, - olha, olha, se não és o Pedrinho, juro que não me chamo D. Coisa! Respondi-lhe que sim, por entre soluços, e ela disse, - nesta vida não há nada que não se resolva, anda até lá a casa, faço-te um chazinho, ok? E eu, que sim, ok, aquilo a calhar que nem ginjas, que os parcos euros estavam a acabar e as noites a ficar frias. Voltei a pensar, só pode ser milagre! Aquilo do chazinho era força de expressão, seguiu-se uma refeição de enfarta brutos, que isto na Província já se sabe.

Passaram os dias, dei comigo a engordar, do descanso e da boa comida da D. Coisa, fiquei um bocado preocupado, com esta cara quem vai acreditar em mim?, contrapus, ora essa, claro que vão acreditar, isto é sinal de consciência tranquila!, e, ainda perdido nestas divagações, aparece-me um par de advogados, oferecendo-se para tratar da minha apresentação a quem de direito, à revelia dos tiros da GNR. Só pude voltar a pensar, milagre! e acrescentei, aleluia!

Daí em diante, foi o que vocês já sabem e, como tal, dispenso-me de relembrar. Afinal o meu objectivo era levar-vos a minha versão dos factos, tal como sucederam. O resto, designadamente aquela espécie de entrevista que não dei à TV do Estado e ao jornalista dum pasquim de Coimbra, não passa de fait-divers, engendrados pelos meus advogados só para contentamento dos telespectadores (já aclimatados ao meu reality show) e cortesia à CMTV.

Para terminar, resta-me confessar o enorme espanto por me encontrar em prisão preventiva!

Enfim, não se dorme nem se come tão bem como em casa da D. Coisa, mas sempre é melhor do que sobreviver entre as moitas a ouvir os tiros e os disparates dos GNRs. Por outro lado, como dizia a minha avó ou a vossa, a esperança é a última a morrer (salvo seja!) e a verdade vem sempre ao de cima.

Vosso,

Pedro Noites





(imagem obtida em pesquisa Google)








sábado, 29 de outubro de 2016

BIOGRAFIA DUM FETO FEITO VELHO



Aconchego Inquieto

De repente dei comigo enfiado num saco mole. Vim a saber que se chamava pele. Um par de joelhos dobrados sob o queixo, um par de cotovelos dobrados junto ao tronco, uma cabeça inclinada sobre os ditos joelhos, como se lhes quisesse contar os ossinhos menores, ainda tão feitos cartilagens. Navegava num espaço pouco, que, de vantagem, tinha ser aconchegante e, sobretudo, ser só meu, pelo menos ninguém me acotovelava ou dava pontapés. Passei a ouvir uns sons vindos de fora, mas agora não me lembro o que diziam. Passei a sentir umas pancadinhas, não doíam, eram devagarinho, circulares, calmantes. Achei por bem responder, mandei um pontapé, à experiência. Senti um alvoroço do lado de lá, cá dentro continuava tudo calmo, quente, líquido. Pareceu-me um alvoroço bom e resolvi repetir. Daí em diante, quando me apetecia sentir aquele alvoroço, mandava um pontapé. Dava sempre resultado. Eram esses os momentos em que me sentia mais desperto, menos propenso a mergulhar na ausência. Verdadeiramente, não queria pensar no que me esperava. Tinha ouvido tantos relatos pavorosos sobre vidas futuras que preferia fingir-me de morto, ressalvados os pontapés. Tempo de pontapés era tempo de alvoroço bom, logo, tempo de esperança. Talvez as coisas não viessem a ser tão más como ouvira dizer, já não me lembro a quem, nem onde, nem como, nem quando. Comecei a mentalizar-me, viesse o que viesse, o melhor era sair o quanto antes. Já tinha a noção de que não vale a pena adiar o que tem de acontecer. Bem, acabei de dizer uma idiotice, eu sei! Obviamente, não está nas nossas mãos adiar o que tem de acontecer. 

Aterragem Turbulenta

Passar por aquele túnel desiluminado, estreito, pegajoso de viscosidades estranhamente coloridas e opressor como um corredor de tenazes, foi uma experiência e tanto! Quero dizer, foi doloroso, apavorante e claustrofóbico. Vá lá que, por fim, se fez luz, aliás, uma luz deveras forte, que me forçou a abrir os olhos ramelosos num espanto de desconhecido. Mãos enormes prendiam-me, como para me impedirem de ir a algum lado (algo que, de toda a maneira, não conseguiria). Olhos enormes e sorridentes vasculhavam o meu corpo desvalido e nu, apenas envolto num muco nojento e ligado ao sítio donde acabara de sair por uma estranha corda de cor esquisita. Vozes altas e animadas diziam coisas várias que eu não estava com cabeça para entender, coisas dirigidas em várias direções, mas, sobretudo, na minha - como se eu pudesse responder! - e na do corpo donde eu acabara de sair e que jazia, de barriga inchada, cabelos colados à testa e um ar apalermado, estendendo os braços na minha direção. Estava super assustado, sem perceber bem onde acabara de aportar e o que se seguiria, de modo que resolvi explodir em gritos. Pareceu-me terem ficado todos muito contentes, o que me fez berrar ainda mais alto, pois acabara de me aperceber de como aqueles seres podiam ser perversos (sim, a rirem-se da desgraça alheia!). 


Sobrevivência

Mais tarde, vim a perceber que não se tinham rido por maldade, antes pelo contrário. Infelizmente, também vim a constatar que aquele meu julgamento inicial, enquanto avaliação dos meus pares, não andava nada longe da realidade. Pior para mim.

De repente dei comigo enfiado neste saco mole, enrugado e descaído, que é a minha pele feita serapilheira de amparar restos. Não que o tempo tenha passado de repente. Sinto, aliás, que o tempo demorou muito tempo a passar, tive momentos em que lhe perdi a conta, derreado que andava de lhe sobreviver. Só que chegou um momento, assim um súbito, em que me olhei ao espelho e vi, de atacado, os seus efeitos, a marca do longo tempo que me passara por cima. Intensificou-se-me a vontade de partir, mas o tempo insistiu em me habitar, em me empurrar para diante, em vez de me deixar para trás, de desistir de mim.

Agora sabia-me bem o aconchego morno em que me balançava antes de ter sido largado por cá - já falei disso, aí acima. Falta-me esse aconchego ou outro qualquer. Prometo que não darei pontapés, já não careço de alvoroço, do alvoroço alheio. Já não sou ingénuo, não levo a sério nenhuma das versões correntes sobre o que me espera, o próximo desaguar. Sei que nenhum dos autores dessas versões sabe do que fala, ninguém lá esteve para poder testemunhar. Não que isso me deixe substancialmente mais tranquilo do que na transição anterior. Mas uma certeza eu tenho, desta vez será um ponto final para este tempo que me dura tanto. Isto é, por si só, uma boa notícia. 


Abandono

Enrolo-me na cama, joelhos dobrados junto ao peito, quase a tocarem a cabeça descaída, braços dobrados junto ao tronco. Alguém me ajeita um edredão com mãos suaves, movimentos calmantes, circulares, sobre a minha cabeça, agora despojada de cabelos. Como outrora, pese embora tratar-se duma mão alheia, uma mão ao acaso, talvez mera ilusão. Penso, divertido, que a pele à volta do crânio foi a única que não esmoreceu, esticada que nem uma pista de aterragem, pronta a receber o voo rasante das moscas. Sorrio. Um sorriso que se apaga. Devagar, nada daquela agitação da chegada. Não voltarei para contar se tive de atravessar mais um túnel.








segunda-feira, 24 de outubro de 2016

OLHAR, SORRIR, PARTIR!



Esta história - de que, aliás, já falei por aqui - podia chamar-se, Olhar, Sorrir, Partir (ou, simplesmente, O Enigma). Começou com uma troca de olhares, acompanhada duma troca de sorrisos.

Mas vou começar pelo princípio.

Aconteceu já lá vão uns vinte e tal anos, não sei exactamente quantos.

O amplo espaço começou a encher-se de pessoas, mal as portas se abriram, como se todas ansiassem por um pouco de conversa, um café, esticar as pernas, tossir à vontade ou qualquer outra coisa igualmente simples e previsível, dada a natureza do espaço e do acontecimento.

Numa mínima fracção de segundo - que estas coisas acontecem sempre nesse espaço de tempo -, o meu olhar, distraído da conversa com os amigos que me acompanhavam, cruzou-se com o de um homem, não muito alto, que também convergia para o átrio. Sorrimos ambos, com a franqueza, a simpatia e a cumplicidade dum conhecimento antigo, protegido da distância, de qualquer espécie de distância (espacial, temporal ou qualquer outra).

Ele prosseguiu, com a senhora que o acompanhava, eu continuei com os meus amigos, e - como viria a descobrir pouco depois - ambos ficámos um pouco abstraídos, na resolução do enigma criado (bem, eu fiquei). As portas voltaram a chamar-nos para dentro, retomámos os nossos lugares, desfrutámos o que tínhamos a desfrutar e, no tempo próprio, voltámos a rumar ao átrio ou salão-átrio.

Quis o acaso, ou outro qualquer fenómeno insondável, que os nossos olhares voltassem a cruzar-se, que os nossos sorrisos se trocassem de novo, espontânea a abertamente. Estávamos, agora, mais perto, e ele avançou para cumprimentar e apresentar a mulher. Não podíamos adiar mais,  tornava-se imperioso adiantar os nomes. Tomei a iniciativa da confissão. Exibindo um à vontade conquistado à custa sabe-se lá de quantas penas, encarei-o, sorridente, e disse, - peço desculpa, mas não estou a lembrar-me donde nos conhecemos! Também mantendo o sorriso, respondeu-me que o mesmo sucedia com ele. Começámos a enumerar as terras de nascimento, os locais de estudo, de morada e de trabalho, e tudo o mais de que nos lembrámos, para mutuamente concluirmos não nos conhecermos de lado nenhum… Não garanto que, por essa altura, não tenhamos experimentado um certo incómodo ou falta de à vontade, mas, se assim foi, disfarçámos airosamente com o sorriso - esse nunca se esbateu - e com uma frase do tipo, - bem, então muito prazer em conhecê-lo(la). Fiquei a imaginar a cena que a mulher lhe deve ter feito, - estás parvo ou a fazer-te de parvo?, deve ter sido o mínimo que o desgraçado há de ter ouvido ao longo do resto da noite, quem sabe se com direito a prolongamento por mais alguns dias!

Cada um seguiu o seu caminho, e, talvez porque não houve mais nenhum intervalo - no espectáculo, já nem me lembro qual, a que assistíamos, na Fundação Calouste Gulbenkian - não nos voltámos a cruzar, o que é dizer, não voltámos a sorrir um para o outro. 

Nunca mais o vi. Por mais que me tivesse obcecado na exploração de todas as circunstâncias em que o pudesse ter conhecido, nunca cheguei a desvendar tal enigma. Curiosamente, apesar do tempo decorrido, mantenho uma memória - breve e difusa, é certo - do seu rosto e, sobretudo, do seu sorriso. Se fosse dada a creditar em fenómenos dessa natureza, iria concluir que nos tínhamos conhecido e sido próximos - amigos, familiares... - numa vida anterior. 






sábado, 22 de outubro de 2016

UMA TARDE, UMA PRAIA


Eis-me aqui sentada, costas levemente inclinadas para trás, pernas estendidas adiante, descontraídas, como quem acabou de se espreguiçar. Gosto sempre de chegar aqui. Há anos que chego aqui, fico e depois parto. Assim será até ao dia que for o último, aquele em que já não irei ou já não regressarei, mas isso é da vida,  como se sabe.

Foco-me na distância, na linha de separação ou de junção, consoante o ponto de vista - curiosamente, também é da vida, isto da distância coincidir sempre com um ou outro dos extremos -, diviso movimentos leves, lentos, esbatidos, talvez assim pareçam, apenas porque longínquos. Retraio o olhar, mais perto, de longe para perto, e surpreendo-me, surpreendo-me sempre. A cadência nunca se repete, a cor nunca se repete, o som nunca se repete e todavia... Também a vida nunca se repete, embora, por vezes, manifeste uma irritante tendência de repetição.

Através dos vidros entreabertos, não tolhidos pelo empecilho de cortinas impensáveis, apercebo-me, quase sem os ver, da passagem de um ou outro carro. Dispensável, penso. Volto a focar-me na distância, não quero deixar distrair-me pela ocorrência de banalidades. Todavia, as banalidades acontecem, mais um facto da vida. Movimentos de pessoas, vozes de pessoas, risos de pessoas. Não quero saber para onde vão, o que dizem e, muito menos, do que riem. Pelo vidro despido de cortinas desnecessárias, vejo-as, sou forçada a vê-las, estão quase à minha frente, bem, um pouco ao lado.

Volto a mergulhar na distância. Elevo o olhar, como se quisesse planar acima das banalidades. Camadas de cinzento, de vários graus de cinzento, deslizam lentamente, sem pressa nem destino, debruçadas sobre vários graus de verde, azul, cinzento, todas as cores em matizes foscos e cambiantes. Cores que se desdobram, encimadas por cristas brancas, como se manejadas pela hábil e caprichosa mão dum pintor de repetições, todavia, inovadoras - se é que existe tal coisa, repetições...inovadoras!

Esqueci o movimento dos carros, mas não o ruído dos palradores. Procuro concentrar-me no murmúrio de fundo, em cujos braços, outrora, me deixava adormecer. Agora não. Ignoro porquê. Bem, faço uma ideia, mas não é para aqui.

Levo os olhos para a meia distância e avisto um homem em luta, serena mas determinada, com a falta de vento. Curioso, isto de lutar com uma ausência, mas também é da vida, há ausências assim, mais poderosas e determinantes do que mil presenças! Os seus movimentos, a sua insistência na repetição esforçada, têm algo de desafiador. Talvez não queira render-se ao destino ou sei lá a que outra imposição. Por isso insiste no seu ballet falhado.

Uma ave atravessa, por instantes, o meu campo de visão.

O tecto cinzento ameaça romper-se, descarrilar em miríades de gotas, primeiro lentas, talvez, depois, vertiginosas.

Antes de partir - sei lá se pela última vez, não que isso interesse alguma coisa - ocorrem-me dois pensamentos, aparentemente, não conexionados: - este lugar devia ser só meu (talvez assim pudesse voltar a adormecer)!; - tomara que chova!