domingo, 31 de janeiro de 2016

O ÚLTIMO RISO DE AKEMI


Acabo de me libertar do meu cárcere ambulante. Apesar da leveza que me envolve,  permaneço presa no eco daquela última cena. Espero que por pouco tempo, não é de todo agradável.
Vejo-o afastar-se, sem pressa especial, embora perdendo-se rapidamente na neblina. Balança, com inusitada descoordenação, os braços longos, como se procurasse libertar-se do seu acto, e esse é o único sinal de inquietação. O som das ondas esvai-se-me nos tímpanos (ainda) melindrados pelas palavras, as únicas que foram proferidas, não aos berros, mas num sossego premeditado, frio, calculado. E eu para ali… 
Chamo-me, aliás, chamava-me Akemi. Tenho (ou tinha) vinte e um anos e, segundo consta (constava), sou (era) bonita, inteligente, irreverente e dotada dum afiado sentido de humor. Enfim, só coisas boas ou nem tanto, que, excepto a juventude e a beleza, os outros atributos só me trouxeram dissabores. Refiro-me às relações com os homens e, em especial, com ele. Mas isso já não me interessa, já não me pode interessar. Alguém se encarregará de juntar as pontas desprendidas desse passado curto, em cujo futuro tantas esperanças foram depositadas (não apenas por mim). Será ensaiada a reconstituição dos factos, mas duma coisa estou certa, nada poderá ser reconstruído. Isso também já não me interessa, situo-me, agora, para além da reconstrução. Ainda não me habituei bem à ideia, mas lá chegará o tempo e tempo é coisa que não me falta. Poderá mesmo dizer-se - embora com risco de cedência ao cliché - que tenho a eternidade à minha espera, ahahaha. Riso estranho, este, dadas as circunstâncias, mas cresci a acreditar que o riso é melhor remédio do que o choro. Mais uma coisa que o irritava sobremaneira.
Quase não ouço as ondas, ignoro se o mar morreu, mas a areia está bem viva, levanta-se em nuvens agressivas, que rodopiam sobre a minha pele nua, branca, derramada na vegetação ressequida das dunas. Imagino-me um pacote de leite vertido no chão. Mas alguém misturou xarope de framboesa ou algo do género, não consigo ver bem, já não consigo ver bem. Fecho os olhos ao sangue que me foge da carótida esventrada, muito sangue, demasiado apressado,  um gorgolejo enjoativo, glu-glu, a fazer-me evocar o peru de Natal da minha infância. Arregalo os olhos na estranheza desta associação parva e é assim que ficam, colados à imensidão do céu toldado de cinzento. Já não serei eu a fechá-los.  

Após me observar demoradamente, a mim e à minha volta, com atenção minuciosa, cerra-me as pálpebras, enquanto explode, numa fúria a que não é alheia uma mistura de raiva e frustração, - nada, absolutamente nada, nenhum vestígio, nem a porra duma pegada, que o cabrão foi matreiro e este vento estuporado encarregou-se de desfazer tudo, é só areia no ar! Uma coisa é certa, a desgraçada não podia estar mais morta. Grande naifada lhe atravessou o pescoço. Mal empregue pescocinho de cisne! Trata-se do Inspector Marques, Abílio Marques, como tem a mania de se apresentar, talvez convencido de que pode  passar por Bond, James Bond. A azáfama à sua volta não passa dum intróito. 








2 comentários:

  1. Ainda vai o comentário pela terceira vez, não sei o que se passa mas não fica gravado.
    Gostei e fiquei com muito interesse em saber a razão do assassinato. Vais contar o resto? Espero que sim.bjs

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  2. Aleluia, um comentário!!! Obrigada, Ana. Penso contar o resto, mas ainda não sei se será aqui.
    Quanto à dificuldade de deixar comentários, já me foi referida por várias pessoas, mas, infelizmente, não sei a que se deve. Talvez resulte começar por inserir a identificação (seguida do comentário, pré-visualização e publicação). Bjs.

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