segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

PAISAGEM DE BAIXO PARA CIMA


Sempre para ali estendida, que essa é a forma de cumprir o seu destino. Sente-lhes o peso e observa-lhes as formas e as maneiras. Por vezes, um arraso, outras, uma leveza saltitante. E todas as cambiantes possíveis entre extremos. Pelo intervalo das fendas de pesos diversos, os olhos espreitam cenários duma variedade alucinante e, todavia, repetidos. Bainhas bem alinhadas ou em vias de descoser, directamente saídas de mãos tristes e laboriosas da China ou do Bangladesh, bordas de camisas estranguladas em cintos de todos os feitios e cores, quando não esparramadas por fora de calças e saias, pendendo como panos de cozinha a assombrar  paredes límpidas ou engorduradas. Barrigas salientes ou metidas para dentro e todos os seus intermédios. Peitos largos, espalmados, enormes, descaídos, atirados para a frente e mais. Mãos que afagam queixos proeminentes ou retraídos, ainda virgens de peles ou semelhantes a pingos de perú. Também um perú, uma vez. Surgiu, precedido dum gru-gru desorientado, em pânico, ela atrás, de faca em riste, a cozinheira, que não, que não podia ir para ali, não eram domínios nem dum nem doutro. Enfim, só aconteceu uma vez, compreende-se, era véspera de Natal. Mais um aparte, a cabeça do corpo alapado no sofá - sim, também via as solas dos pés do sofá, sempre imóveis, pesando no mesmo sítio, tolendo-lhe os movimentos, impedindo-lhe a fuga - desnorteou-se num movimento circular, quer dizer, semi-circular, elevou umas pálpebras condenatórias, sublinhadas por várias linhas paralelas, situadas um pouco acima, na testa. E houve palavras desagradáveis. Ouviu-as, embora a sua missão fosse mais ver. Ver e observar. Por vezes passam-lhe por cima duma forma atabalhoada. Elevam-lhe lombas, desamassam-lhe a penugem, agora mais lisa do que no início, quando da entrada triunfante na sala. Olha, é esta, genuína, disse alguém orgulhosamente. Naquela sua perspectiva de vistas, também calha observar intimidades, descuidos de quem lhe ignora a existência. Por vezes fica chocada. Outras vezes ri-se, divertida, animada pelo pensamento (mágico, diga-se de passagem) de que um dia poderá falar. Entretanto, continua a cumprir o seu papel, ao menos até ficar no fio e ser substituída (como todos nós, aliás!). É bege e por isso passa a vida na lavandaria. Só nessas alturas se liberta do peso permanente do sofá. Enfim, vida de carpete.   


(Imagem obtida em pesquisa Google)





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