sábado, 21 de maio de 2016

AS MENINAS CASAVAM TODAS


Lembro-me bem. Tinha ido de férias e encontrámos-nos, casualmente, na Central da Vila, a pastelaria chique lá da terrinha, o longínquo sítio em que, sem me terem consultado, me despejaram neste mundo. De seu nome, Vila Cinzenta, a terrinha, nome que já diz tudo. 

Ele, o senhor ... como-é-que-era?-não-me-lembro-do-nome!, armado dum ar todo composto, que escondia (tanto quanto revelava) um contentamento secreto de ascensão social, disse-me, - a minha filha vai casar com um médico. A filha era a Emília, minha colega do Liceu, por sinal muito bonita (como eu também era, segundo ouvi dizer). Tinha uma irmã mais nova, não-me-lembro-do-nome, mas não se lhe comparava e era um bocado espalha-brasas.

Seguiu-se a pergunta fatal, - e a menina, quando casa?, talvez formulada na esperança secreta de que lhe anunciasse um noivo enfermeiro, empregado de balcão ou manga de alpaca ao serviço duma qualquer repartição. Mas não, não tinha notícias para lhe dar nesse capítulo. Não porque não tivesse a intenção de casar, aliás, crescera com a ideia ou convicção íntima de que o casamento era uma coisa natural, quero dizer, uma coisa-a-suceder, uma certeza, como tomar o pequeno almoço de manhã, estudar para arranjar um bom trabalho ou morrer quando tivesse de ser. Sucedia, apenas, que nunca corri atrás do casamento, nem sequer fantasiei com tal ideia, por exemplo, com o grande dia, como, um dia, aí por volta dos dezasseis anos, lhe ouvi chamar, não sem basta admiração. Nem estava a perceber ao que ela se referia, a menina-não-sei-quantas-também-não-me-lembro-do-nome, uns anos mais velha do que eu, quando, ao falar com grande entusiasmo do seu iminente casamento, disparou, - então, e quando é o seu grande dia? Devo ter assumido uma expressão bem intrigada, que a levou a explicar-se melhor, - quero dizer, quando se casa?   

Era mania das pessoas, especialmente das mais velhas, amigas ou conhecidas dos Pais, formularem aquela pergunta. Eu achava aquilo uma idiotice, primeiro, porque sempre entendi que ninguém tinha nada a ver com a minha vida, segundo, porque não percebia qual era a pressa.

Ao longo do tempo, a pergunta foi mudando de formulação, à entusiasta curiosidade inicial, seguiu-se um espasmo de preocupação (de faz de conta, está claro!), à medida que me aproximava dos trinta, - olhe que o tempo está a passar! E eu, sempre fechada, para não dizer trombuda, na resposta.

Finalmente, seguiu-se um conformismo (fingidamente) entristecido, ia eu aí por meados dos trinta, - não quis casar, não é verdade?, olhe fez muito bem! E eu de explicar que não, que não era nenhuma opção, nada tinha contra o casamento (e, aqui entre nós, não era por falta de namorados, para não falar nos pretendentes que não aceitei nessa qualidade).

Ora bem, consoante já referi, nunca fantasiei com o casamento, sobretudo depois de saber que se tratava dum contrato, facto que me deixou completamente siderada. É que eu sempre fantasiei com o amor, e, na plenitude romântica em que o sonhava (ao amor), o casamento seria mera consequência, mero remate social, como tal, dispensável. Por exemplo, sempre me pareceu um desperdício investir num sumptuoso vestido-para-um-dia e correspondente festança.

Agora, ultrapassados os noventa, fiz ontem noventa e dois - ou seriam noventa e três?, já não me lembro bem, isto da idade é f*****, quanto mais tempo se tem menos tempo se tem, se chegar aos cem hei de explicar melhor este conceito -, lembro-me assim de coisas parvas, embora já não saiba se as escadas para sair de casa são a descer ou a subir. Para o caso não importa muito, pois já nem sei se habito uma casa ou uma daquelas coisas a que chamam lar. Hahaha, lar está muito bem apanhado.

Só mais uma historieta, com a qual muito me ri e continuo a rir. Trata-se duma anedota contada por uma amiga, com o objectivo de me persuadir a casar com o namorado da altura, tinha eu uns vinte e seis ou vinte e sete anos. Sabes - disse-me ela - lá na minha terra havia um par de namorados que nunca mais se decidiam a casar. O tempo foi passando, primeiro lentamente, depois, com a vertigem que se sabe, e, atingidos os sessenta, ela, a Maria, virou-se para ele e perguntou, Oh! Manel, e se casássemos, que é que achas? Resposta dele, - Por mim, acho bem, mas, por esta altura, quem é que nos quer?! 

Enfim, pode dizer-se que, naquele tempo, as meninas casavam todas...

Eu não casei, não por não ser dada a fantasiar com o casamento, mas por ser dada a fantasiar com o amor... Ah!, e nunca fiz a pergunta que a Maria fez ao Manel.

Portanto, teria escolhido um bolo deste tipo:

(Imagem encontrada em pesquisa do Google)







sexta-feira, 20 de maio de 2016

O O.V.N.I. QUE SÓ QUERIA PAIRAR


Pairava lá no alto-longe como quem estacionou no vazio. Apenas uma ligeira tremura denunciava o seu mal-entendido com a força da gravidade. Ou talvez não. Motivo de dúvida e perplexidade, afinal nunca se viu um avião parado em pleno céu. Ou viu? Eu não. Também ninguém disse que era um avião! E não era.

Brilhava num metálico-dourado, feito bloco, depois halo, para se explodir em franjas, seguidas de partículas que se espalhavam em pó ligeiro, etéreo, mera reverberação, nada. Atraía qualquer par de olhos, dos mais aos menos curiosos, dos menos aos mais cansados, inclusivamente, os que só dispunham da capacidade de ver para dentro, vá-se lá saber porquê. Deixava-os, a todos, pendurados no alto, lá no alto-longe em que pairava, num estacionamento impossível.

Devia ser o brilho, aquele brilho tinha qualquer coisa de muito especial. O metálico-dourado era deveras inusitado, congregava, em união improvável, o frio do mais puro glaciar com o calor do vulcão mais estridente. E os pares de olhos, espantados, interrogavam-se, - será que vai ficar ali para sempre? - será que vai explodir? - será que, a todo o momento, vai começar a esboroar-se, qual glaciar caído em pedaços por efeito do aquecimento global, deixando à sua volta um mar de icebergs flutuantes?

Só depois, e apenas alguns, se perguntaram, - o que faz ali

Seguiram-se-lhes dois que se interrogaram, - o que é aquilo?

Por fim, um único par de olhos, os mais abertos, menos perplexos e mais extasiados, exclamaram, - como é belo! Seguiu-se ligeira agitação lá no alto-longe, uma azáfama repentina uniu as partículas do pó ligeiro que irradiava do metálico-dourado, estendeu-se em feixe deslumbrante, desceu até àquele par de olhos e elevou-os até à origem, dispersando novamente em brilhante reverberação.

OHHHHH!, exclamaram, atónitas, as bocas abertas dos outros pares de olhos, verdadeiramente sem saberem o que pensar.

Com o tempo e as coisas da vida, acabaram por se fechar, as bocas, os olhos desceram à terra, ao dia-a-dia das certezas resignadas e das incertezas receadas, já ninguém olhava para o alto-longe. 

Excepto um, o que seguia a bordo da reverberação, passageiro improvável do O.V.N.I. que só queria pairar.

(uma das minhas múltiplas fotos da Lua, aqui a fingir de O.V.N.I.)







sexta-feira, 13 de maio de 2016

O ASSASSINATO DA MORTE


Nunca deixará de me intrigar e espantar o facto de a Humanidade ter assassinado a morte. Depois varreu o cadáver para debaixo do tapete. E não se falou mais nisso.

Acredito que a agressividade existente em nós - não raro disfarçada de gentileza... - radica no medo (medos vários, entenda-se). Em relação directa, quanto maior o medo, mais acentuada a agressividade. Por outro lado, quanto mais atávico o medo, maior o desnorte da agressividade.

Ora, que maior e mais atávico medo enfrenta a Humanidade senão esse ignoto destino, tão certo quanto (aparentemente) definitivo, que é a morte (essa porta que se fecha sobre o conhecido, abrindo-se para sabe-se lá o quê)? Talvez aí resida a razão do assassinato da morte, acto de agressividade suprema, justiça de Talião, olho por olho... morte por morte.

A perspectiva individual da morte revela-se bem mais versátil. Ao menos, enquanto abordagem conceptual e reactiva. Desde o partilhado medo comunitário ao anseio romântico duma idealizada fuga ou libertação, desdobra-se um largo espectro de abordagens intelectuais e emocionais. Mais ou menos lúcidas e, por vezes, até lúdicas. 

Uma coisa permanece, todavia, certa. Só quando ela, a morte, expressamente se anuncia, com a precisão/ameaça duma bomba-relógio, mais segundo menos segundo - permitindo um dado tempo de adaptação à ideia realizada, luxo ou perversão (depende dos pontos de vista), que nem sempre concede - é que se pode testar a reacção do eleito

É este, porventura, o momento mais crítico de revelação da natureza duma pessoa. A reacção lúcida é, quer se queira quer não, uma marca de heroísmo, (simplesmente?) porque foge ao padrão do pavor atávico colectivo (apesar do mesmo? E apesar de certas cedências implicadas...). Refiro-me à opção por enfrentar a morte, retirá-la debaixo do tapete, falar-lhe cara a cara, inclusivamente, antecipá-la (surpreendê-la pela antecipação). Em vez de se negociar com ela, escondendo-se no desespero e na dor de tratamentos absurdos e no fingimento de esperanças improváveis. Talvez seja outra forma de assassinato da morte, talvez assim a morte se sinta duplamente assassinada.

Vem esta breve e vaga reflexão a propósito de dois magníficos documentos que, recentemente, passaram por mim (ou em mim), um, o texto do recentemente falecido Paulo Varela Gomes, Morrer É Mais Difícil Do Que Parece, sobre a forma como decidiu, estoicamente, enfrentar a sua morte para breve anunciada; o outro, do domínio da ficção, versando sobre idêntico tema, o filme Truman.

Aqui os deixo, para quem, ao menos enquanto não é rondado mais de perto pela mesma - depois, só depois, se verá -, não se rende ao assassinato social da morte. E junto uma fotografia, porque sim.
O texto:

http://www.caritas.pt/site/lisboa/index.php/destaques-principais/620-morrer-e-mais-dificil-do-que-parece-o-texto-de-paulo-varela-gomes
O filme:


A fotografia:







terça-feira, 3 de maio de 2016

DIZEM QUE É MAIS BOLO!


O rádio, sintonizado na TSF, desempenha o seu papel (seja lá qual for), enquanto faço uma coisa e outra, sem lhe prestar especial atenção. No caso, acabo de escovar o cabelo e lavar os dentes, ponto de passagem para o duche - não que isto interesse alguma coisa, enfim... Já levanto o pé para entrar na banheira, quando as radialistas ondas se me impõem, desviando-me dos pensamentos ou divagações habituais para uma entrevista em curso. Arrebito as orelhas e foco os neurónios. Receio estar a ouvir ou a entender mal, mas não, confirma-se, o tema é, mesmouma alegada comunidade de assexuais, cujo símbolo é - imagine-se! - o bolo.

Pois, também duvidei, senti-me perplexa, mas era justamente sobre isso que a repórter indagava e a entrevistada discorria, que sim, havia, aliás, há, uma comunidade de pessoas, homens e mulheres, assexuais, com direito, inclusivamente, a página de Facebook, essa deslumbrante-montra-do-que-cada-qual-quiser

Tanto quanto percebi, não se trata de pessoas destituídas de sexo (quer dizer, de órgão sexuais, como diria o instruído Pedro Arroja, embora com maior grau de especificação), mas carentes de desejo ou atracção sexual, que, no dizer da entrevistada e a simples título de exemplo, preferem estar sossegadamente enroscadas numa cama a fazer conchinha ou ir ao cinema, a fazer sexo, actividade que nem lhes passa pela cabeça (ou por outro sítio, digo eu). Simplesmente porque dele não carecem, não lhe sentem o apelo nem, por consequência, a falta. Quanto ao símbolo, o bolo, não fui a tempo de captar a explicação.

Enquanto abstracção ou hipótese, a situação não me espanta - que a gente ouve e vê e pressente cada coisa, que já nada parece susceptível de causar espanto. Já noutra perspectiva, debato-me com alguma dificuldade em assimilar o fenómeno. Trata-se duma dificuldade da ordem da que tenho em compreender a existência de pessoas que não gostam de chocolate. Neste caso (e a  despeito do que a lógica da diversidade recomenda), tenho para mim que, a) ou gostam muito, mas não podem ou não querem comer (por exemplo, para não engordar); b) ou tiveram o azar de comer um chocolate estragado e ficaram traumatizadas para a vida; c) ou nunca provaram (nem vislumbram hipótese de provar) e não querem confessar; d) ou então é só birra, como as crianças que, apesar de nunca terem experimentado qualquer coisa, garantem a pés juntos não gostar; e) ah! ou, ainda, sofrem dum perverso fastio. Em qualquer das hipóteses, parece-me óbvio que a negação lhes deve ser bem mais fácil do que assumir a realidade. Trata-se, aliás, de psicologia básica.

Longe de mim insinuar que algo assim se passa com os ditos assexuais - que sei eu disso! Trata-se, antes, dum pressentimento ou, vá lá, duma desconfiança.

Depois, pensando bem, ter um namorado só para fazer conchinha, afigura-se-me um bocado descabido e, sobretudo, um enorme desperdício de recursos, até porque há aqueles peluches enormes, com um ar deveras fofinho, aos quais apetece fazer festinhas e que talvez sirvam para o efeito, libertando o namorado para outras aplicações. Não que esteja a dar ideias, não me venham depois acusar de que os peluches são verdadeiras colónias de ácaros. Por outro lado, em se tratando apenas de amigos, não vejo o gozo, quer dizer, a ideia - nada de confusões! - de fazer conchinha. Creio, até, ser meio caminho andado para derivar por outros caminhos não propriamente assexuais. Ou então mais vale intitular tal prática de chochinha... Já ir ao cinema, que é como quem diz, ir a um concerto, fazer running, jantar fora, ir ao Gin Lovers e etc., até me parece bem, sobretudo para quem não goste de ir só.

O que mais me intrigou foi a escolha do símbolo, o bolo. Os bolos são, por definição (e se não estiverem estragados), doces, fofos, saborosos e agradáveis à vista, características que representam, para grande parte das pessoas, requisito de atracção sexual - há até quem trate o parceiro por fofinho ou docinho, quer dizer, penso que há, embora ache bastante piroso. Ora, se os assexuais apreciam estas qualidades, não se percebe por que raio hão de preferir bolo a ..., a ..., àquilo que concretiza a atracção sexual, para dizer de alguma maneira. 

Também é certo supôr-se que os bolos cumprem uma função de preenchimento de carências afectivas, mas, se não há apelo/falta, onde está a carência, quem precisa de bolinho?
  
Quanto ao tipo de bolo eleito para símbolo, ignoro qual seja. Só espero que não se trate dum qualquer donut, bolo-rei, pírâmide (ainda há pirâmides?) ou éclair.  Se for o caso, então não dá mesmo para acreditar que eles (a tal comunidade de supostos assexuais)   estejam a falar a sério. 

Lateralmente, aproveito para alertar o Bloco de Esquerda para não se esquecer de tomar na devida conta esta situação, em sede de  versão final do cartão de cidadão/cidadã/e não só (assexual).

E, já agora, não seria altura de o próprio BE adoptar uma designação feminina ou assexual?  Considerando os sinónimos disponíveis, dentro do género feminino (não encontrei neutros), sugiro Massa Considerável e Pesada de Esquerda ou Batelada de Esquerda. Bloca de Esquerda era bem melhor, mas já circula por aí e não quero ser plagiadora.


A Prova:

(Para quem pense que estive só a inventar)