sábado, 29 de outubro de 2016

BIOGRAFIA DUM FETO FEITO VELHO



Aconchego Inquieto

De repente dei comigo enfiado num saco mole. Vim a saber que se chamava pele. Um par de joelhos dobrados sob o queixo, um par de cotovelos dobrados junto ao tronco, uma cabeça inclinada sobre os ditos joelhos, como se lhes quisesse contar os ossinhos menores, ainda tão feitos cartilagens. Navegava num espaço pouco, que, de vantagem, tinha ser aconchegante e, sobretudo, ser só meu, pelo menos ninguém me acotovelava ou dava pontapés. Passei a ouvir uns sons vindos de fora, mas agora não me lembro o que diziam. Passei a sentir umas pancadinhas, não doíam, eram devagarinho, circulares, calmantes. Achei por bem responder, mandei um pontapé, à experiência. Senti um alvoroço do lado de lá, cá dentro continuava tudo calmo, quente, líquido. Pareceu-me um alvoroço bom e resolvi repetir. Daí em diante, quando me apetecia sentir aquele alvoroço, mandava um pontapé. Dava sempre resultado. Eram esses os momentos em que me sentia mais desperto, menos propenso a mergulhar na ausência. Verdadeiramente, não queria pensar no que me esperava. Tinha ouvido tantos relatos pavorosos sobre vidas futuras que preferia fingir-me de morto, ressalvados os pontapés. Tempo de pontapés era tempo de alvoroço bom, logo, tempo de esperança. Talvez as coisas não viessem a ser tão más como ouvira dizer, já não me lembro a quem, nem onde, nem como, nem quando. Comecei a mentalizar-me, viesse o que viesse, o melhor era sair o quanto antes. Já tinha a noção de que não vale a pena adiar o que tem de acontecer. Bem, acabei de dizer uma idiotice, eu sei! Obviamente, não está nas nossas mãos adiar o que tem de acontecer. 

Aterragem Turbulenta

Passar por aquele túnel desiluminado, estreito, pegajoso de viscosidades estranhamente coloridas e opressor como um corredor de tenazes, foi uma experiência e tanto! Quero dizer, foi doloroso, apavorante e claustrofóbico. Vá lá que, por fim, se fez luz, aliás, uma luz deveras forte, que me forçou a abrir os olhos ramelosos num espanto de desconhecido. Mãos enormes prendiam-me, como para me impedirem de ir a algum lado (algo que, de toda a maneira, não conseguiria). Olhos enormes e sorridentes vasculhavam o meu corpo desvalido e nu, apenas envolto num muco nojento e ligado ao sítio donde acabara de sair por uma estranha corda de cor esquisita. Vozes altas e animadas diziam coisas várias que eu não estava com cabeça para entender, coisas dirigidas em várias direções, mas, sobretudo, na minha - como se eu pudesse responder! - e na do corpo donde eu acabara de sair e que jazia, de barriga inchada, cabelos colados à testa e um ar apalermado, estendendo os braços na minha direção. Estava super assustado, sem perceber bem onde acabara de aportar e o que se seguiria, de modo que resolvi explodir em gritos. Pareceu-me terem ficado todos muito contentes, o que me fez berrar ainda mais alto, pois acabara de me aperceber de como aqueles seres podiam ser perversos (sim, a rirem-se da desgraça alheia!). 


Sobrevivência

Mais tarde, vim a perceber que não se tinham rido por maldade, antes pelo contrário. Infelizmente, também vim a constatar que aquele meu julgamento inicial, enquanto avaliação dos meus pares, não andava nada longe da realidade. Pior para mim.

De repente dei comigo enfiado neste saco mole, enrugado e descaído, que é a minha pele feita serapilheira de amparar restos. Não que o tempo tenha passado de repente. Sinto, aliás, que o tempo demorou muito tempo a passar, tive momentos em que lhe perdi a conta, derreado que andava de lhe sobreviver. Só que chegou um momento, assim um súbito, em que me olhei ao espelho e vi, de atacado, os seus efeitos, a marca do longo tempo que me passara por cima. Intensificou-se-me a vontade de partir, mas o tempo insistiu em me habitar, em me empurrar para diante, em vez de me deixar para trás, de desistir de mim.

Agora sabia-me bem o aconchego morno em que me balançava antes de ter sido largado por cá - já falei disso, aí acima. Falta-me esse aconchego ou outro qualquer. Prometo que não darei pontapés, já não careço de alvoroço, do alvoroço alheio. Já não sou ingénuo, não levo a sério nenhuma das versões correntes sobre o que me espera, o próximo desaguar. Sei que nenhum dos autores dessas versões sabe do que fala, ninguém lá esteve para poder testemunhar. Não que isso me deixe substancialmente mais tranquilo do que na transição anterior. Mas uma certeza eu tenho, desta vez será um ponto final para este tempo que me dura tanto. Isto é, por si só, uma boa notícia. 


Abandono

Enrolo-me na cama, joelhos dobrados junto ao peito, quase a tocarem a cabeça descaída, braços dobrados junto ao tronco. Alguém me ajeita um edredão com mãos suaves, movimentos calmantes, circulares, sobre a minha cabeça, agora despojada de cabelos. Como outrora, pese embora tratar-se duma mão alheia, uma mão ao acaso, talvez mera ilusão. Penso, divertido, que a pele à volta do crânio foi a única que não esmoreceu, esticada que nem uma pista de aterragem, pronta a receber o voo rasante das moscas. Sorrio. Um sorriso que se apaga. Devagar, nada daquela agitação da chegada. Não voltarei para contar se tive de atravessar mais um túnel.








segunda-feira, 24 de outubro de 2016

OLHAR, SORRIR, PARTIR!



Esta história - de que, aliás, já falei por aqui - podia chamar-se, Olhar, Sorrir, Partir (ou, simplesmente, O Enigma). Começou com uma troca de olhares, acompanhada duma troca de sorrisos.

Mas vou começar pelo princípio.

Aconteceu já lá vão uns vinte e tal anos, não sei exactamente quantos.

O amplo espaço começou a encher-se de pessoas, mal as portas se abriram, como se todas ansiassem por um pouco de conversa, um café, esticar as pernas, tossir à vontade ou qualquer outra coisa igualmente simples e previsível, dada a natureza do espaço e do acontecimento.

Numa mínima fracção de segundo - que estas coisas acontecem sempre nesse espaço de tempo -, o meu olhar, distraído da conversa com os amigos que me acompanhavam, cruzou-se com o de um homem, não muito alto, que também convergia para o átrio. Sorrimos ambos, com a franqueza, a simpatia e a cumplicidade dum conhecimento antigo, protegido da distância, de qualquer espécie de distância (espacial, temporal ou qualquer outra).

Ele prosseguiu, com a senhora que o acompanhava, eu continuei com os meus amigos, e - como viria a descobrir pouco depois - ambos ficámos um pouco abstraídos, na resolução do enigma criado (bem, eu fiquei). As portas voltaram a chamar-nos para dentro, retomámos os nossos lugares, desfrutámos o que tínhamos a desfrutar e, no tempo próprio, voltámos a rumar ao átrio ou salão-átrio.

Quis o acaso, ou outro qualquer fenómeno insondável, que os nossos olhares voltassem a cruzar-se, que os nossos sorrisos se trocassem de novo, espontânea a abertamente. Estávamos, agora, mais perto, e ele avançou para cumprimentar e apresentar a mulher. Não podíamos adiar mais,  tornava-se imperioso adiantar os nomes. Tomei a iniciativa da confissão. Exibindo um à vontade conquistado à custa sabe-se lá de quantas penas, encarei-o, sorridente, e disse, - peço desculpa, mas não estou a lembrar-me donde nos conhecemos! Também mantendo o sorriso, respondeu-me que o mesmo sucedia com ele. Começámos a enumerar as terras de nascimento, os locais de estudo, de morada e de trabalho, e tudo o mais de que nos lembrámos, para mutuamente concluirmos não nos conhecermos de lado nenhum… Não garanto que, por essa altura, não tenhamos experimentado um certo incómodo ou falta de à vontade, mas, se assim foi, disfarçámos airosamente com o sorriso - esse nunca se esbateu - e com uma frase do tipo, - bem, então muito prazer em conhecê-lo(la). Fiquei a imaginar a cena que a mulher lhe deve ter feito, - estás parvo ou a fazer-te de parvo?, deve ter sido o mínimo que o desgraçado há de ter ouvido ao longo do resto da noite, quem sabe se com direito a prolongamento por mais alguns dias!

Cada um seguiu o seu caminho, e, talvez porque não houve mais nenhum intervalo - no espectáculo, já nem me lembro qual, a que assistíamos, na Fundação Calouste Gulbenkian - não nos voltámos a cruzar, o que é dizer, não voltámos a sorrir um para o outro. 

Nunca mais o vi. Por mais que me tivesse obcecado na exploração de todas as circunstâncias em que o pudesse ter conhecido, nunca cheguei a desvendar tal enigma. Curiosamente, apesar do tempo decorrido, mantenho uma memória - breve e difusa, é certo - do seu rosto e, sobretudo, do seu sorriso. Se fosse dada a creditar em fenómenos dessa natureza, iria concluir que nos tínhamos conhecido e sido próximos - amigos, familiares... - numa vida anterior. 






sábado, 22 de outubro de 2016

UMA TARDE, UMA PRAIA


Eis-me aqui sentada, costas levemente inclinadas para trás, pernas estendidas adiante, descontraídas, como quem acabou de se espreguiçar. Gosto sempre de chegar aqui. Há anos que chego aqui, fico e depois parto. Assim será até ao dia que for o último, aquele em que já não irei ou já não regressarei, mas isso é da vida,  como se sabe.

Foco-me na distância, na linha de separação ou de junção, consoante o ponto de vista - curiosamente, também é da vida, isto da distância coincidir sempre com um ou outro dos extremos -, diviso movimentos leves, lentos, esbatidos, talvez assim pareçam, apenas porque longínquos. Retraio o olhar, mais perto, de longe para perto, e surpreendo-me, surpreendo-me sempre. A cadência nunca se repete, a cor nunca se repete, o som nunca se repete e todavia... Também a vida nunca se repete, embora, por vezes, manifeste uma irritante tendência de repetição.

Através dos vidros entreabertos, não tolhidos pelo empecilho de cortinas impensáveis, apercebo-me, quase sem os ver, da passagem de um ou outro carro. Dispensável, penso. Volto a focar-me na distância, não quero deixar distrair-me pela ocorrência de banalidades. Todavia, as banalidades acontecem, mais um facto da vida. Movimentos de pessoas, vozes de pessoas, risos de pessoas. Não quero saber para onde vão, o que dizem e, muito menos, do que riem. Pelo vidro despido de cortinas desnecessárias, vejo-as, sou forçada a vê-las, estão quase à minha frente, bem, um pouco ao lado.

Volto a mergulhar na distância. Elevo o olhar, como se quisesse planar acima das banalidades. Camadas de cinzento, de vários graus de cinzento, deslizam lentamente, sem pressa nem destino, debruçadas sobre vários graus de verde, azul, cinzento, todas as cores em matizes foscos e cambiantes. Cores que se desdobram, encimadas por cristas brancas, como se manejadas pela hábil e caprichosa mão dum pintor de repetições, todavia, inovadoras - se é que existe tal coisa, repetições...inovadoras!

Esqueci o movimento dos carros, mas não o ruído dos palradores. Procuro concentrar-me no murmúrio de fundo, em cujos braços, outrora, me deixava adormecer. Agora não. Ignoro porquê. Bem, faço uma ideia, mas não é para aqui.

Levo os olhos para a meia distância e avisto um homem em luta, serena mas determinada, com a falta de vento. Curioso, isto de lutar com uma ausência, mas também é da vida, há ausências assim, mais poderosas e determinantes do que mil presenças! Os seus movimentos, a sua insistência na repetição esforçada, têm algo de desafiador. Talvez não queira render-se ao destino ou sei lá a que outra imposição. Por isso insiste no seu ballet falhado.

Uma ave atravessa, por instantes, o meu campo de visão.

O tecto cinzento ameaça romper-se, descarrilar em miríades de gotas, primeiro lentas, talvez, depois, vertiginosas.

Antes de partir - sei lá se pela última vez, não que isso interesse alguma coisa - ocorrem-me dois pensamentos, aparentemente, não conexionados: - este lugar devia ser só meu (talvez assim pudesse voltar a adormecer)!; - tomara que chova!