domingo, 1 de janeiro de 2017

UM PEIXE CHAMADO KAFKA


o mar desdobrava-se, lento, como lençol abandonado sobre corpo nu, solitário, exposto. a espuma das breves ondas quebradas ao de leve roçava-lhe os lábios e o nariz. fazia-lhe cócegas. renda macia, provocadora, de lençol de cetim branco. azul e branco. azul com renda branca.

ren-da-bran-ca. ren-da-bran-ca. ren-da-bran-ca...

acordou com aquele murmúrio, vindo não sabia donde.

não-sa-bi-a-don-de. não-sa-bi-a-don-de...

resistiu a readormecer (re-a-dor-me-cer...). levantou-se dum salto. pulo de gato, pensou. antes de mais nada, mesmo de poder espreguiçar-se, viu-os à sua volta. eufóricos, pequenos olhos malandros, acesos num gozo disparatado, bocas enormes, pelo menos em proporção, abertas num riso desgovernado, deixando espreitar dentinhos afiados como pontas de lápis. rodeavam-o numa dança estranha, dando voltas e mais voltas sobre si próprios, exibindo caudas buliçosas. caudas! só então reparou que tinham cornichos, pelos vermelhos semeados aleatoriamente nos corpos magros e nervosos, pés idênticos a patas de cabra. seguravam tridentes metalizados. são diabretes, é isso, concluiu. 

não paravam de se aproximar, estendiam os tridentes para a sua pele, mordiam-lhe a superfície do corpo nu. agitou-se, enfurecido. desatou a distribuir estaladas em todas as direcções. a cada uma caíam dois ou três, soltando gritinhos estridentes, enquanto rebolavam para longe, no chão, não fosse ele desaustinar aos pontapés. adivinhou-lhes o pensamento. desaustinou aos pontapés. chapadas e pontapés. ora tomem lá, desamparem-me a loja, vociferava com cara de meter medo ao mais empedernido belzebu. acabaram por fugir. assustados. ele ficou. exausto.

procurou sentar-se, mas não encontrou o rabo, quer dizer, um rabo de sentar. olhou para os pés, mas não estavam lá. equilibrava-se sobre um rabo de peixe, não um rabo que desse para se sentar. como é sabido, os peixes nunca se sentam. não foram feitos para se sentar. descansam doutras formas. calcula-se. levou as mãos ao rosto, melhor, pensou que levava as mãos ao rosto, mas não eram mãos, eram barbatanas. mesmo assim, levou-as ao rosto, para esfregar os olhos, não fosse dar-se o caso de ainda estar a dormir, vítima dalgum pesadelo. esfregar os olhos com força era remédio santo para acordar. não encontrou os olhos. ao fim de infindáveis segundos de desnorte - in-fin-dá-veis-se-gun-dos-de-des-nor-te... - verificou que os tinha dos lados da cara e não à frente. aliás, aquilo também não se parecia nada com uma cara. demasiado estreita, espetada para a frente como a quilha dum barco. os diabretes espreitavam à distância, mas ele não os via. estava demasiado ocupado consigo. consigo? comigo?, interrogou-se. sentiu-se completamente desidentificado. caiu no pânico.

as mãos transpiravam-lhe como se uma vaga de desidratação fosse a ordem do dia. os olhos espantavam-se numa tela de absurdo. o coração batia-lhe com tamanha força, velocidade e desordem que nem conseguia ouvir o despertador. o simples acto de respirar tornou-se-lhe tão asfixiante que não teve outro remédio. acordou.

a-cor-dou. a-cor-dou. a-cor-dou...

estendeu o braço para a mesa de cabeceira. parou bruscamente o despertador. no acto, derrubou o livro que, horas atrás, antes de embarcar no sono, deixara aberto. caiu de capa para cima. 

ca-iu-de-ca-pa-par-ci-ma. ca-iu-de-ca-pa-pa-ra-ci-ma. ca-iu-de-ca-pa-pa-ra-ci-ma...

Um Peixe Chamado Kafka, era o seu título.

 (imagem obtida em pesquisa no Google)





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