domingo, 30 de julho de 2017

QUATRO ESTAÇÕES, UMA INFÂNCIA


e havia o alarido das cigarras
porque era verão
e a cor grená do calor
espalhada como manto de veludo
mas sem peso
e o sabor metálico da limonada fresca
e a letargia das tardes intermináveis
desdobradas para cá das serras
sem um vislumbre de mar
e as noites mágicas, povoadas de estrelas vivas
contadoras de histórias
algumas deslizavam, cruzando-se com um desejo
às vezes, estoirava a trovoada
brava como raiva em puro desnorte
entravam os cobertores de lã
oferta de isolamento, protecção
calor exponenciado, mal dava para aguentar
e as rezas da avó, s. jerónimo e santa bárbara...
era o verão

e havia novelos de nuvens cinzentas a comandar o céu
porque era outono
e o cheiro dos lápis e das borrachas, dos cadernos e dos livros novos
o começo das aulas
e havia uns sapatos de carneira com atacadores
cor indefinida entre o bege, o cinzento e o branco sujo
e uma saia de flanela de lã, em várias cores
rodopiava em pregas ou em volumes redondos, já nem sabes
envaidecia-te e pensavas em não sei que enigma
talvez só percebido muito mais tarde
e uma colecção de bandoletes de lã que a mãe tricotou
uma de cada cor, aí umas seis, todas diferentes, todas iguais
bastava escolher e conjugar com as camisolas
era o outono

e havia frio (mas não se sentia)
porque era inverno
e caía chuva grossa
furava a terra do jardim com a certeza de balas
mas sem a maldade das balas
libertando um cheiro e um som inigualáveis
e também calhava nevar
o céu plúmbeo, cristalizado
anúncio de qualquer coisa a acontecer
e acontecia
alvos flocos a atirarem-se lá de cima, devagar
como quem se suicida docemente
sem desespero, mera oferta de paz
e os jogos e os bonecos de neve
e as recomendações ansiosas
cuidado não escorregues
cuidado não molhes os pés, que te constipas
cuidado não vivas
viver é um perigo
a vida está povoada de monstros
nem sabes quais, nem quantos, nem te digo
por isso é que são monstros, não?
havias de pensar, mais tarde
era o inverno 

e havia as flores amarelas, oferecidas em botão
porque era primavera
e um brilho inocente e poderoso
espalhado pelo sol
e diversos tons de verde espirravam promessas doutras cores
múltiplas e vibrantes cores
e uns sapatos novos de verniz, cor creme
fivela no peito do pé
para estrear no domingo de páscoa
e um vestido branco de bordado inglês
ajustado à cintura com fita de cetim
e a blusa amarela, leve como asas de borboleta
era a primavera 

e era assim
quatro estações bem definidas
os monstros ainda por vir
escondidos na barriga das advertências surdas
era a infância desprevenida
rolando em sucessão apetecida
sabia-se da sua ordem e cadência
diferença/repetição
conforto/segurança
o exacto contrário dos monstros anunciados
e tu amavas
amavas, sobretudo, as margens de transição
verão/outono/inverno/primavera
plenitude/sonho/aconchego/renovação
e era assim, como se eternamente








quinta-feira, 27 de julho de 2017

CORAÇÃO COM ESCRITOS



estava para ali um coração com escritos, arrenda-se! papelinhos brancos esvoaçavam-lhe sobre o fundo vermelho, dum vermelho seco como areias marcianas. os papelinhos levantavam e baixavam, empurrados pela aragem desprendida das incessantes pulsações. ali - onde se encontrava - era um lugar-não-se-sabe-qual, digamos, um lugar qualquer ou qualquer um lugar, no sentido de não importar onde.
desfilaram vários rostos, alheados, como cães por vinha vindimada (no pressuposto de que os cães adoram uvas, está claro!). talvez só lhes interessasse comprar. talvez já estivessem (bem) servidos de corações alheios. talvez se bastassem por si próprios, habitassem os seus próprios corações. cheios de si ou vazios de si. 
o coração com escritos (arrenda-se!) não procurava morada, limitava-se a propor morada. mediante o pagamento duma renda, está bom de ver, basta pensar na ideia de arrendamento. os escritos não concretizavam, mas teria sido suficiente perguntar-lhe e ele responderia, - quinhentos beijos por mês, mil abraços por semestre, etc. meros exemplos, afinal não se apresentou ninguém a indagar.
nenhum interessado em tomar o coração de arrendamento. em comprar, sim, em usar sem pagar, também, nem numa coisa nem noutra, igualmente. houve mesmo quem só quisesse entrar e desarrumar. 
o coração desprendeu os escritos. papelinhos brancos, manchados de vermelho seco, desataram a voar por aí, pelas alturas, completamente à toa. pareciam farripas de flores ao vento, prestes a desaparecer numa vastidão de silêncio. 
o coração, saído do mercado de arrendamento, fechou as portas. não usou estrondo. compreende-se, também não chegara a colocar anúncio, apenas os escritos.   
alguém bateu, truz-truz, coração, truz-truz, coração, truz-truz, coração. três vezes, quem sabe se um clone do sheldon cooper, aquele da série the big bang theory. perguntou, numa vozinha esganiçada (devia ser mesmo o shelly), - arrenda-se
o coração não abriu a porta, espreitou pela janela sem se deixar ver, resguardado na espessura da cortina. observou, pensou, voltou para dentro, disse para com os seus botões (há corações assim, com botões), - não, agora não, definitivamente, não.
e aquele som, elevado ao desespero, truz-truz, coração, truz-truz, coração, truz-truz, coração, três vezes, exactamente três vezes, sempre três vezes, até ao infinito...
e os escritos a voar, prestes a desaparecer na voragem do incomensurável nada.
e o coração a esquecer, a recolher-se, a ficar cada vez mais pequeno, mais mínimo, até atingir o ponto zero dos corações.










terça-feira, 4 de julho de 2017

O DR. QUINTINO AIRES, O DESENTUPIDOR DE CANOS E OUTRAS PARVOÍCES


I

Longas asas agitavam-se compassadamente
Dos extremos desprenderam-se penas breves
Vieram por aí a flutuar como macacos

II

macacos a flutuar? não, não pode ser, os macacos trepam, saltam, correm e guincham, mas não flutuam. que parvoíce! por vezes, acontece caírem, mas isso é outro departamento. sucedeu com o macaco andré - ignoro quem o baptizou -, habitante da aldeia dos macacos, ali ao jardim zoológico. galgou pela rede acima, lançou-se para os galhos da árvore mais alta e, vai daí, precipitou-se, em voo picado, até se esborrachar no chão, de cabeça. não foi lindo de ver e os outros macacos desataram numa berraria sem limites. o pasquim da manhã noticiou, com estrondo, DESGOSTO AMOROSO LEVA MACACO ANDRÉ AO SUICÍDIO.

o chefe da oposição, cansado de não ser ninguém e invejoso por não ter tirado o país do procedimento por défice excessivo - o máximo que conseguiu foi mergulhá-lo em austeridade excessiva -  apresentou-se aos noticiários nacionais, lamentou, com jeito condoído, o suicídio do macaco, e avançou, determinado, para a responsabilização do governo, designadamente por não ter disponibilizado apoio psicológico ao macaco, que, segundo desenvolvia o pasquim da manhã, acabara de sofrer um violento desgosto amoroso.

no dia seguinte, lá teve de regressar à hora nobre dos noticiários para pedir desculpa, porque, entretanto, veio a saber-se, agora com provas e tudo, que o macaco andré não se suicidara. tratara-se de mero acidente - escorregadela numa casca de banana largada pela macaca flausina, ignoro quem a baptizou -, ao qual, aliás, sobreviveu. a única ponta de verdade era o alegado desgosto amoroso (de primeiro grau).

o chefe do governo limitou-se a não comentar, de resto, nem sequer foi encontrado para perguntas. uns dias depois, veio a saber-se que tinha ido a banhos, para uma manta rota qualquer. cá para mim, o que ele quis foi deixar passar a carruagem até o som dos cães se extinguir - metaforicamente falando, claro. tudo muito pianinho, não fosse ter de dar explicações mais amplas sobre o estado subterrâneo - também metaforicamente - da aldeia dos macacos. para mais, a banhos ou não, já o chefe do governo se via confrontado com um novo escândalo, devido ao furto (?) dum dos submarinos - ou algo assim - do Portas, sem que ninguém se tivesse apercebido. assim tipo, elefante assalta Starbucks a meio da tarde e ninguém dá por nada. abençoada manta rota, ele há banhos bem oportunos. 

por essa altura, indiferente aos factos políticos, o dr. Quintino Aires, sob o esclarecido patrocínio da TVI, ofereceu-se para dar apoio psicológico ao macaco andré, no sentido de o instruir a ultrapassar a desilusão amorosa, por via da aquisição duma performance imbatível. quer dizer, prontificou-se a dar-lhe dicas sobre como fazer amor de tal forma que nunca mais macaca alguma ousaria abandoná-lo. e seguiu para o jardim zoológico, com uma câmara atrás, repleto de boa vontade (e de alguma vontade de protagonismo). 

a chegada do dr. QA foi saudada com enorme gritaria, que ele pensou ser de júbilo e reconhecimento. enganou-se, não passava dum disfarce para o riso que assolou a macacada, especialmente duas macacas que se contorciam de gozo, enquanto diziam:

- ó prima, já viste como o homem é feio?, mais feio só um autoclismo dos antigos, aqueles de maçaneta, ou uma esfregona Vileda consumida pelo uso! 

- eheheh tens razão, quando olho para ele só me vem à ideia um desentupidor de canos, acho que é a boca, faz-me lembrar a parte de borracha dos desentupidores...

- bem visto, para não falar na expressão bovina dos olhos e nas mãozinhas sapudas...

- e na voz, na maneira adamascada ou almiscarada, quer dizer, enjoativa, de falar, sempre acompanhada do sorriso aparvalhado, como se a vida fosse um arco-íris permanente de cambalhotas...

- é mesmo, de o ouvir fica-se logo sem vontade de fazer amor! os televisivos deviam escolher melhor as pessoas que põem a falar do amor!

- parece que estás parva, não se diz do amor, é de amor...

- olha, vai dar uma curva com o Quintino, parva estás tu!

e riram, riram, escondidas num canto, para ele não perceber. 

III

Bem, se conseguiram chegar até aqui, já devem ter reparado que isto começou por tentar ser um poema. Depois, sem que eu saiba explicar porquê - inclino-me para o calor, cada vez me dou pior com o calor - descambou. Assim sendo, descambado por descambado, deixo mais duas pequenas notas: 

1) Espero que o Dr. Qintino Aires nunca passe por aqui, até porque, se passar, é capaz de pensar que me estou a atirar a ele; 

2) Porque, ao falar dele, me veio à mente outro homem igualmente interessante, o Dr. Pedro Arroja, sugiro à TVI que faça mais um reality show, com a seguinte designação e formato: Dá-te Aires e Arroja-te!, onde ambos se baterão por explicar as técnicas do amor e disputarão as mais modernas teorias sobre a proveniência das criancinhas. Ganha o que menos contribuir para o incremento da natalidade em Portugal.







(imagens obtidas em pesquisa no google)




sábado, 1 de julho de 2017

TALVEZ ÍCARO, PELAS RUAS DA AMARGURA


foi largada nas ruas da amargura. não percebeu porquê. quer dizer, mais tarde, quando se interrogou, não obteve resposta.
desenhou um objectivo, o objectivo - isto, antes de se interrogar. voar até ao cu do mundo.
ganhou asas. elevou-se. chocou com um raio de sol. queimou a ponta das asas, desequilibrou-se, veio por aí abaixo. desvoou aos tram-
-bo
-lhões. 
aterrou no beco dos caídos. esparramou-se. completamente ao comprido. não sobrou osso inteiro, pele lisa ou mente cristalina.

desdesparramou-se. Quanta dificuldade! endireitou os ossos, restaurou a pele à custa de muito betadine (mais tarde, veio a saber que betadine já não estava a dar. o mercurocromo tinha sido a vítima precedente. hoje em dia apregoa-se o bepanthene. nessa altura, ignorava tudo isto). clareou a mente. muita teimosia, foi o que foi.

restaurou a ponta das asas. com penas, muitas penas. nada ficou igual, nem os ossos nem a pele nem a mente nem as asas. numas coisas tornaram-se mais fracos, noutras mais fortes. o objectivo permaneceu, alcançar o cu do mundo, em modo de voo.

meteu-se a caminho, elevou-se. desta vez à tardinha, na hora em que o sol começa a abrandar. foi por aí acima, à força de mexer os braços, aliás, as asas. a ponta das asas, agora remendada com penas, começou a voar por si. desprendeu-se do resto. veio por aí abaixo. desvoou aos tram-
-bo
-lhões. 
não aterrou no beco dos caídos. soube amparar-se nas nuvens reboludas. circuitou até uma superfície aquática. mergulhou fundo e voltou. espavorida, a respirar a custo. mas nada de ossos partidos, nem pele arranhada ou mente menos cristalina. bem, talvez um pouco de cada coisa, mas pouco. só uma grande zanga. já tinha passado a fase de perguntar porquê.

o objectivo permaneceu, na essência. alcançar o cu do mundo, não importava o modo. talvez em nome da zanga, talvez por teimosia. talvez pela razão inicial.

não restaurou a ponta das asas. as penas que se f*******. deixá-las voar, dispersar-se. abandonou as ruas da amargura, que se f*******, elas e os becos sem saída e os tram-
-bo
-lhões
trambolhões traumáticos. aliteração? sorriu.

o cu do mundo ainda lá estava, não ia mudar de sítio.
não havia pressa.

meteu-se a caminho, desta vez, a pé. com calma.

ainda vai a caminho, desfrutando a paisagem.
que se f*** o resto, incluídos os porquês, sobretudo os porquês.

obviamente, houve muitos outros voos. outros haverá, talvez. não cabem todos aqui.