quinta-feira, 17 de agosto de 2017

A MORTE DA SR.ª T.


dança-te na cabeça a canção, era uma vez um morto, e lembras-te do teu primeiro morto, que, por sinal, foi uma morta. dás contigo a pensar que a canção deveria antes chamar-se era uma vez a primeira mortamas, obviamente, isso não faz qualquer sentido, visto não existir canção com tão macabro título (seja numa ou na outra versão). 

a tua primeira morta foi a velha sr.ª T., dona da padaria. vivia com duas filhas, ambas solteiras e já mulheres feitas, a C., ao que constava (e aparentava), meio tolinha, e a A., nada tolinha e amantizada com o padeiro, o sr. A., que era ou parecia meio doido, de vez em quando soltava uns berros que atordoavam a vizinhança, e vivia com elas. segundo as más línguas, o sr. A. teria sido amante da própria sr.ª T. ou, numa versão mais ousada ou mais criativa, chegara a acumular tais funções em proveito (espera-se!) de ambas, mãe e filha. 

a casa da morta (enquanto viva, está bom de ver) era bastante grande, albergando a habitação, a padaria, incluindo zona de fabrico e de venda ao público, e uma pequena loja, a cargo da menina J., vendedora, entre outros artigos de mercearia, duns tristes rebuçados de chocolate de confecção caseira, quadradinhos castanhos desbotados, algo ásperos ao toque da língua, embrulhados em papel de seda branco, atado nas pontas. a menina J. de menina só tinha o ser solteira, pois já era entrada de idade, ou assim a vias, e usava uns óculos com lentes tão grossas que mais pareciam fundos de jarra grosseira.

voltando à casa da Sr.ª T., dava para as duas ruas, aquela em que moravas e a outra, inclinada, que com ela se juntava num perfeito ângulo recto. chegaste a fazer vertiginosas descidas de bicicleta, em que o objectivo era contornar esse ângulo sem travões. duma das vezes, espalhaste-te ao comprido, com grande aparato, embora não muitos estragos e nenhum queixume, não fossem os pais lembrar-se de te apreender o veículo. de alguma forma, já intuías que as queixas nunca produzem bom resultado, servindo, quando muito, à infrutífera e nefasta confissão de fraqueza. mas isso são outras águas... 

da sr.ª T. apenas conservas o vulto, muito esfumado, de uma velhota, mesmo velhota, pelo rigoroso critério de comparação com a tua avó, sentada algures, na loja da padaria ou na da menina J., a passar o tempo e a manter a conversa em dia com as freguesas. na vida, já tinha cumprido a sua parte de trabalho, e agora distraía-se por ali, enquanto a filha, a menina A., e o padeiro regiam eficazmente o negócio. a outra filha, a C., assistia ao desenrolar da vida com o seu ar aparvalhado de alegada tolinha, sabe-se lá se beneficiando também, ocasionalmente, das habilidades do cunhado, embora isto não passe de mera e inútil especulação.

chegou um dia em que a velha sr.ª T. trocou a posição habitual de sentada - em que reside, cristalizada, na tua cabeça -, por um decúbito dorsal forçado e definitivo, como, mais cedo ou mais tarde, costuma acontecer a todos, no momento em que lhes finda esta vida de andar por cá.

terias uns seis, sete anos, um pouco mais ou um pouco menos, quando ouviste anunciar lá em casa que a sr.ª T. tinha morrido. foi a primeira vez que recebeste semelhante notícia, quer dizer, a propósito duma pessoa conhecida, real, ali tão perto. até então, só te tinham morrido pessoas (ou animais falantes, é praticamente igual) na magia das histórias, mas isso não era, de todo, a mesma coisa. para não falar nos pássaros que caíam do telhado e aos quais organizavas funerais, mais ou menos cerimoniosos, de conluio com o teu irmão, que se arrogava as funções de padre...

embora a sr.ª T. não pertencesse ao círculo de próximos (familiares, amigos), revestia, sem dúvida, a natureza de dado adquirido, fazia parte da paisagem do dia-a-dia, era vizinha, costumavas vê-la para ali sentada, calhando, falava com a tua mãe ou a tua avó, e, quem sabe, até te dizia olá ou sorria para ti. portanto, apesar de não haver razões para lhe sentires a falta ou entristeceres com a sua partida, percebeste, muito claramente, a diferença entre o estar e o deixar de estar, em suma, o enigma do sumiço dos mortos.

talvez por isso, por se ter consubstanciado numa tal percepção, tão súbita, vertiginosa e palpável, a notícia da morte da sr.ª T., a primeira morte duma pessoa propriamente dita, de carne e osso, real, deixou-te deveras perturbada. consegues perfeitamente (res)sentir o estado que sofreste na altura, mas não descrevê-lo. consegues, apenas, classificá-lo, coisa que, então, não dispunhas de ferramentas para fazer. e o que sentiste foi angústia. radicava num profundo medo face ao desconhecido, a morte, a ideia de morte, precisamente porque não compreendias bem o que isso era, mas criara-se a tal respeito, pelo modo como se falava, a ideia de que não devia ser coisa boa. todavia, recusaste aproximar-te para perceber melhor, ao contrário do teu irmão e doutros miúdos, pouco mais velhos do que tu, que foram, em romaria, espreitar o decúbito dorsal definitivo da Sr.ª T.. depois, o enterro desfilou pela rua e o teu medo e confusão ficaram a vê-lo passar. obviamente, não perguntaste aos outros miúdos o que tinham visto. muito menos endereçaste aos crescidos os porquês que a situação poderia ter requerido. e ainda muito menos partilhaste com eles o teu estado de alma. fizeste como quando te espalhavas nas corridas de bicicleta ou noutras andanças. talvez já soubesses que não vale a pena fazer perguntas difíceis, cujas respostas ninguém conhece ou pode fornecer. fechaste tudo muito bem fechado numa caixinha especial e guardaste num canto. para mais tarde. agora, por exemplo.



(a sr.ª T., estacionada na tua memória)