terça-feira, 26 de setembro de 2017

A FORÇA DO DESASSOSSEGO


seguiu por ali fora com os pés às costas, porque estavam muito cansados. as mãos seguravam os tornozelos, roçando o pescoço transpirado. os olhos viraram-se para trás, desejosos de calcular o caminho percorrido. para a frente não se conseguia prever a distância, apenas se vislumbrava uma linha perdida num mar de nevoeiro baço. tanto podia ser já ali como nem tanto ou muito mais. os olhos espantaram-se, para trás alcançava-se uma vastidão incalculável. a boca abriu-se num assombro, imitou bem um ronco quando articulou e deixou sair as palavras, tanto tempo, já tanto tempo! e o tempo confundiu-se com o espaço. imagens sucediam-se, ilustrando diferentes geografias, paisagísticas e humanas. um relógio alucinava num tic-tac vertiginoso, como quem desfaz à pressão a soma de incontáveis segundos. o corpo parou, hirto, para não se deixar cair. já não suportava o peso dos pés. deixou-os escorregar pelas costas abaixo, mandou-os ocupar o seu lugar, não digo a sua função. impunha-se conceder-lhes uma folga. as mãos, libertas do dever de os segurar, soltaram-se ao lado do corpo, agitando-se brevemente, para descontrair a dormência. pareciam asas de pombas escuras adejando no meio do nada. mas de nada aquilo não tinha, por assim dizer, nada. tratava-se duma paragem. não a primeira paragem, nem a segunda paragem, nem a terceira, nem a quarta nem por aí fora. já perdera a conta das paragens. de repente, era aquilo. auscultava o tempo e o espaço já desfeitos e desistia de contar o que estava por vir. parecia-lhe uma imensidão, o de trás, e sabia ser um enigma, o da frente. só queria surpreender uma pista, já não digo certificar-se, do que faltava percorrer e do respectivo como. contudo, bem sabia da impossibilidade. deixou-se cair no chão, enterrou a cabeça nas mãos-pombas, gesto de desespero. imaginou aquela linha ali à frente, a que marcava o termo da distância em falta, a alinhar-se com os seus olhos cansados, num ponto de fusão, porque já chegava. tinha a certeza de que já chegava, com toda a força do sentir e do aguentar. por mais que tivesse de esperar, nada mudaria o essencial e o essencial era que tudo não passava de tempo perdido, de imagens sem sentido, sem fio condutor, excepto o da via sacrificial sem objecto, melhor, sem propósito. estações e estações de espinhos, como se rosas ausentes de pétalas, caules intermináveis destituídos do sentido de ser flor. roeu-se de desespero. moeu-se. mais uma vez, só mais uma vez, prometeu. já devia saber que não adianta, não vale a pena. o desespero. nem o resto, sobretudo o resto. fechou os olhos, sem vontade de os voltar a abrir, embora isso não dependesse de si. ou dependia? quer dizer, podia depender, evidentemente! recomeçou o desassossego. levantou-se e prosseguiu.






domingo, 24 de setembro de 2017

O BOTÃO ASSASSINO - II

(continuação e fim)

Saído da Igreja, o Sr. C arrastou-se até casa, com a disposição que se calcula ser a de qualquer animal a caminho do matadouro. Embora roído pela contrariedade, levou um ramo de flores à mulher, tal como o botão preto, aliás, o Padre P, lhe indicara. A Sr.ª C, quer dizer, o botão castanho, recebeu o ramo com o espanto de quem é surpreendido pela aproximação dum OVNI e murmurou entre dentes, enquanto se dirigia à cozinha, mas o que é isto? Ele fechou-se no escritório, ofendido com aquela reacção. É no que dá ser simpático com as mulheres, rosnou para os seus botões (por assim dizer). Pouco depois, anunciou, cheio de maus modos, que não lhe apetecia jantar, desandou para o quarto e enfiou-se na cama. Ela sentiu um enorme alívio e, não fosse o encanto quebrar-se, nem lhe perguntou se se sentia bem ou se não queria, ao menos, um chá e umas bolachas. 

Decorridos três dias de grande inquietação e mau feitio, o botão cinzento, ou seja, o Sr. C, compareceu, novamente, no confessionário do Padre P, que, pressentindo-lhe a intranquilidade e movido pela curiosidade, o incentivou a prosseguir a confissão suspensa:
- Fico feliz por te ver de volta, qual espécie de filho pródigo! Desabafa, então, o teu pecado!
Sem mais preâmbulos, tal a necessidade de se libertar do peso que o oprimia ao ponto de lhe desnortear a vida, o Sr. C retomou a confissão no exacto ponto em que a deixara:
- Depois da pancada e do roubo a que a Menina P e o seu comparsa, o botão roxo a quem ela chamou Prx, me sujeitaram, vesti-me o mais depressa que pude e saí daquele antro. Quando cheguei à rua, já não vi sinal deles. Pensei em telefonar à Polícia, mas desisti, com vergonha de ter de contar o sucedido, sentia-me ridículo por me ter deixado apanhar em semelhante esquema. Um tanso, é o que vão pensar de mim, não me saía isto da cabeça. Entretanto, a nuca latejava-me, numa dor funda, e sentia-me tonto. Dirigi-me ao hospital mais próximo, onde, após umas horas de espera e vários exames, me mandaram para casa, com recomendação de repouso por 24 horas e uns comprimidos. Já passava da meia noite quando cheguei a casa, a minha mulher estava mais chateada do que preocupada, por eu não ter avisado. Esquecera-me por completo. Só então me lembrei que tinha de tratar do cancelamento dos cartões bancários e do telemóvel. Dispensei o jantar que ela conservara no forno, agarrei-me ao computador e ao telefone de casa e tratei desses assuntos, embora sabendo que já ia tarde. Aleguei que os tinha perdido, só podia, visto não ter participado o roubo à Polícia. 
- Bem, e depois? - incentivou o Padre, já impaciente com tantos pormenores e receoso de não sair dali nenhuma história de jeito, que justificasse tanta angústia confessional.
- No dia seguinte, quando vi o estado das minhas contas bancárias e o preço do novo Iphone que tive de comprar, a decisão apresentou-se-me com uma nitidez e uma urgência que não admitiam contraditório. Traduzia-se em duas palavras: VINGANÇA IMEDIATA! 
Nos dias seguintes, procurei, em vão, o botão vermelho com brilhos dourados, ou seja, a menina P. Naturalmente, mudara-se. Fiz-me de detective pelos cafés das redondezas, sobretudo os mais rascas, distribuí umas notas a uns quantos botões rafeiros, e, passada uma semana, bingo! De longe, escondido atrás das árvores duma rua escura, avistei-a, plantada sob um candeeiro, no preparo em que a vira a primeira vez, com as coxas a escorregarem do vestido brilhante e aquele sorriso de convite, todo escancarado. Fiz marcha atrás, cautelosamente e fui-me preparar para o dia seguinte.

Havia um botão estranho. Tinha dois buracos no meio, mas, se se reparasse com a devida atenção, havia mais dois, embora obstruídos, para não se notarem. Iluminava-o pela frente um amarelo ofuscante, capaz de lhe dissimular o ar pesado, conferido pelo cinzento escuro da parte de trás. Podia bem ser um homem ainda novo, de ombros largos, talvez com algum excesso de peso, enfiado num fato um tanto exótico, com lentes de contacto e farto cabelo loiro. O Senhor A. Verdadeiramente, era o Sr. C, sob disfarce. 

- No dia seguinte - continuou o Sr. C, perante a impaciente curiosidade do Padre P -, depois do escurecer, dirigi-me ao poiso-sob-o-candeeiro da menina P, esperei que não passasse ninguém por perto, meti conversa com ela, e quando se propôs levar-me até ao apartamento, sugeri um desvio prévio para tomarmos um copo, acenando-lhe com a promessa duma nota extra. Notei-a inquieta ao entrar no meu carro - na verdade, não era meu, trouxera-o, de empréstimo, do Stand, depois de todos terem saído -, mas sosseguei-a com um largo sorriso de pacóvio rendido, e lá fomos. Para longe, cada vez mais longe, até que ela, agitada, no lugar do morto, perguntou, - afinal para onde vamos?, ao que, secamente, respondi - Já vai ver, estamos a chegar. Estacionei, pouco mais à frente, num pinhal sombrio. Vi que tremia, enquanto tentava abrir a porta do carro. Estava trancada. Com alguma dificuldade, enfiei-lhe um gorro pela cabeça abaixo, até ao pescoço, e atei-lhe as mãos. Destranquei as portas, saí e fui ajudá-la a sair. Enquanto a adentrei no pinhal, oscilava entre debater-se furiosamente e choramingar numa falsa humildade. Atei-a, pela cintura, a um pinheiro e retirei-lhe o gorro, que saiu pesado de lágrimas. Mandei-a calar-se, com um ar tão imperioso e calmo, que ela não teve como não. De seguida, como quem ensaia um streaptise, retirei as lentes de contacto e coloquei os óculos, arranquei a cabeleira loura e acomodei-me confortavelmente no meu fato cinzento escuro. Apesar da escuridão, só quebrada pelas luzes do carro, ela percebeu. Soltou um grito tremendo, pediu perdão, fez promessas, e eu ali, a saborear aquele desespero. Virei-lhe as costas, dirigi-me ao carro, peguei na barra de ferro que arranjara num ferro-velho e regressei. Deve ter pensado que me fora embora, pois, quando voltou a ver-me, desatou num berreiro infernal - desculpe a alusão, Padre! Calou-se, mal lhe desferi o violento golpe, em plena testa. Esguichou um bocado de sangue e caiu para o lado. Regressei ao carro. À medida que me distanciava do pinhal, fui jogando fora, para as margens arborizadas da estrada, os instrumentos da vingança, primeiro a cabeleira, depois a barra de ferro, o gorro de lã, as cordas e, finalmente, as lentes de contacto. A menina P já estava! Talvez, mais tarde, decidisse dar o mesmo tratamento ao Sr. Prx, mas, de momento, sentia-me saciado. Este era o pecado que lhe queria confessar.
- Mas isso é muito grave, meu filho, isso não é pecado, é crime, não é coisa que se absolva com arrependimento e penitências! - disse o Padre P, numa enorme aflição.
- Olhe, Padre, se não é pecado, vim bater à porta errada...
- Não é isso, só quis dizer que não é só pecado, é crime. E dizes-me, para mais, que não estás arrependido?
- Não estou, não, mentiria se dissesse que sim.
- Olha, creio que ainda estás em choque, mas deves fazer o que tem de ser feito, ir à Polícia e confessar o teu crime. Se quiseres, acompanho-te. Depois, teremos tempo para tratar a questão do perdão, afinal, Deus não vai embora, estará sempre à tua espera.
- Nesse caso, não tenho mais nada a fazer aqui. Agradeço a sugestão e o apoio, mas não, não me vou entregar à Polícia.

Sem dar tempo de reacção ao Padre P, o Sr. C saiu apressadamente da Igreja. Após várias voltas, seriamente desnorteado, pelas ruas da cidade, dirigiu-se a casa. Agitavam-se-lhe na cabeça pensamentos lúgrubes como pássaros negros em céu tempestuoso. Abriu a porta, avançou até à sala e encontrou a mulher a falar com dois agentes da Polícia, devidamente fardados e servidos dum café acabado de fazer. Cheirava bem. O coração caiu-lhe aos pés, atirou-se para uma poltrona de veludo, enquanto os outros se levantavam, e a mulher lhe anunciava:
- Olha, estes senhores agentes vieram entregar os teus cartões de crédito e o teu Iphone. Não me disseste nada, afinal o que aconteceu? Perdeste-os ou roubaram-tos? É por isso que tens andado tão esquisito? Nunca me dizes nada!
À medida que ela falava, a cor dele foi sofrendo inúmeras mutações, do escarlate ao amarelo desmaiado, e, antes que pudesse responder, um dos Polícias, adiantou:
- Na verdade, encontrámos estes seus pertences em circunstâncias estranhas e gostaríamos que nos dissesse a razão disso. Que saibamos, de acordo com os nossos registos, não participou nenhum roubo... 
- Circunstâncias estranhas, que circunstâncias estranhas? - interrompeu a Sr.ª C, toda agitada.
O Sr. C, por uma vez na vida, sentiu-se grato pela intervenção da mulher. Sempre lhe evitou o vexame e, pior, a suspeita dos polícias, por não ter sido ele a formular aquela interrogação óbvia (óbvia se quisesse passar por inocente...). Só então reuniu forças e domínio para reagir:
- Sim, a minha mulher pergunta bem, que circunstâncias estranhas? Só sei que os perdi, há dias. Mal me apercebi, fui logo tratar dos cancelamentos,... quero dizer, dos cartões, incluído o do Iphone.
Os agentes, em vez de lhe responderem, exibiram-lhe um saco de plástico transparente, devidamente selado, e perguntaram:
- O senhor reconhece este objecto?
- Que objecto? - fez-se ele de parvo, pensando ganhar tempo.
- Ora, esta cabeleira loura, aqui dentro do saco!
- Ah! não estava a perceber... sim, parece uma cabeleira,... mas nunca a vi,... quer dizer,... nunca a tinha visto - balbuciou, trémulo.
Já bastante enervada e quase fora de si, a Sr.ª C, dirigindo-se aos agentes, perguntou:
- Mas, afinal, vão-me dizer ou não que raio se passou?
- Minha Sr.ª, ainda não sabemos exactamente o que se passou, mas pode crer que lá chegaremos. Entretanto, precisamos que o seu marido nos acompanhe para prestar depoimento. Vamos, Sr. C? - disse o agente, num interrogação que era, indubitavelmente, uma ordem.

E lá foi o Sr. C, o botão cinzento.

Ia escoltado por dois botões azuis escuros, muito luzidios, com quatro furos no meio, perfilados em paralelo, dois mais dois, muito certinhos. Bem podiam ser dois jovens e atléticos agentes da Polícia, desfilando nas suas fardas impecáveis. E eram. Os Agente A1 e A2.

O botão que me contou esta história refugiou-se na sua casa e nunca mais apareceu. Fica, pois, em aberto, o que se passou a seguir. Terá o crime do Sr. C sido descoberto? 
     

(Imagem obtida em pesquisa Google)


    

sábado, 16 de setembro de 2017

O BOTÃO ASSASSINO - I


Era um botão cinzento escuro, de aspecto pesado, com quatro buracos no meio. Podia bem passar por um homem maduro, largo de ombros, com algum excesso de peso, enfiado num fato de bom corte e com óculos redondos, sobreponde-se a um par de olhos um tanto arregalados. O Senhor C.

Era um botão preto, baço no centro, onde espreitavam dois buracos, e brilhante no rebordo. Pela cor e pelo aparato - aquele contraste brilho/baço -, passava bem por um padre. Não era difícil idealizar a batida esvoaçante, acompanhando o andar acelerado de quem tem de acudir aos necessitados da paróquia e, ao mesmo tempo, angariar, insistentemente, fundos junto dos poderosos. O Padre P.

O Padre P entrou na igreja, vindo não se sabe donde, e, após um esboço de genuflexão frente ao altar-mor, dirigiu-se ao casinhoto lateral, sentou-se, ajeitou aquela confusão de roupas, saia sobre calças, recostou-se o mais comodamente que conseguiu, afastou a cortina de tecido adamascado vermelho escuro, tipo sangue seco, e espreitou pelos buraquinhos da divisória de madeira fina. Não viu ninguém. Suspirou, matutando no alheamento dos paroquianos. 

Interrompeu-o o chiar das dobradiças da porta da igreja, seguido do ecoar duns passos firmes e pesados, que conduziram um botão entroncado e arquejante até ao seu casinhoto.

Esperou que o botão se acomodasse, no seu fato cinzento escuro de fazenda cara. Sentiu-lhe o bafo, quente, mas de hálito indefinido, quando ele, o Sr. C, dobrado sobre os joelhos, encostou a cabeça à divisória onde pequenos orifícios desenhavam uma filigrana indefinível. Ao fim dum tempo considerado razoável, vendo que o outro não tomava a iniciativa, disse, num tom suave e convidativo, - Então, meu filho, o que te traz por cá?
O Sr. C agitou-se, num desassossego comprometido, sem conseguir expulsar da boca seca uma palavra sequer. O botão preto exortou, com um timbre de impaciência na voz, 
- Vamos lá, meu filho, diz lá o que te trouxe aqui, que o tempo urge, em menos de nada há missa, e tenho de me despachar.
A resposta surgiu, de rajada, - Padre, eu pequei!
- Ora, isso não é novidade, por que outra razão estarias aqui? E, afinal, não pecamos todos? Preciso é que me digas qual foi o teu pecado e se estás arrependido.
- Ó, foi grave, tão grave que tenho receio de o confessar, e, para ser sincero, não estou arrependido, se é que isso serviria para alguma coisa...
- É claro que serve, é, mesmo, requisito essencial para seres perdoado, o arrependimento e, claro, a penitência. Mas, antes de mais, precisas de me dizer o que fizeste de tão mau. Sabes, por certo, que o que aqui disseres aqui permanecerá, ao abrigo da mais estrita das confidencialidades.
Talvez reassegurado pelas palavras do padre, sobretudo as alusivas à confidencialidade, o Sr. C respirou fundo, como quem se prepara para alijar uma carga pesada, e disse, - No princípio...

Havia um botão castanho, dum castanho esmaecido, que não chegava a ser cor de café com leite, com uns arrebiques no rebordo e umas estrias, aqui e ali, devidas ao excesso de uso. Podia bem passar por uma senhora de meia idade, sem profissão, encarregada da canseira da casa e da família, vivendo na sombra dum marido cinzentão, com uma profissão bem remunerada mas pouco entusiasmante, que voltava a casa macambúzio,  exigindo as refeições a horas e a mulher à disposição para lhe satisfazer os apetites sexuais, não que fossem muitos ou muito frequentes e não que se empenhasse minimamente em os tornar agradáveis. A Sr.ª C. Por coincidência casada com o Sr. C.

O casal C, está bom de ver, vivia emaranhado numa rotina entediante, mas nem parava para pensar que a vida podia ser outra coisa. Até que.

Havia um botão vermelho, dum vermelho vibrante, com reflexos dourados e, talvez por isso, um ar provocador. Bem podia encarnar uma mulher da vida, bamboleante na sua roupa justa, com as pernas à mostra mais do que a decência impunha, e uns lábios grossos e suculentos, entreabertos sobre dentes ligeiramente desviados. Só podia ser a rapariga da esquina, a Menina P.

- No princípio - continuou o Sr. C - limitei-me a olhar, mas fiquei logo perturbado. Ali estava ela, enrolada num vestido vermelho vivo, cheio de brilhos dourados, que mal lhe tapava as coxas, e com um sorriso descarado a explodir dos lábios rechonchudos, por entre os quais deixava espreitar uma ponta de língua muito cor de rosa e húmida. Parecia que me convidava e desconvidava ao mesmo tempo. Já tinha escurecido, eu dirigia-me a casa após mais um dia de trabalho árduo - sou gerente duma loja de automóveis, ganho bem, mas sai-me do pêlo - e, admito, aquela visão perturbou-me. Senti-me desafiado, veio-me à ideia a figura doméstica da minha mulher, a esperar-me à porta como uma imposição, ali especada, sem outra ambição que não a de satisfazer necessidades alheias, minhas e dos filhos. Deu-me raiva a sua passividade e, sobretudo, a sua falta de brilho...

Estúpida que fui, trocar uma carreira de gestora, que, por acaso, se anunciava de êxito, por esta pasmaceira que é a casa, esperar pelo mastronço do meu marido, cada vez mais previsível e igual a si próprio, sem sombra de imaginação ou interesse em mim! Os filhos, esses, nem se fala, muito queridos em pequeninos, a fazerem-me dar por bem empregue o abandono da profissão, depois, cheios de embirrações adolescentes, e, finalmente, em fuga ou em vias disso, que querem casas próprias, carros próprios, vidas próprias, e eu, eu para aqui, neste abandono de doméstica, ao serviço desta cambada. Que estúpida fui! E agora é tarde, definitivamente tarde!

Que grande palerma, mais um que já apanhei e nem deu por isso. Coitado!

- Estou a ouvir-te, meu filho, podes continuar - disse o padre, já inquieto por adivinhar longa a confissão.
- No dia seguinte, lá estava ela, na mesma esquina, ainda mais provocante. Hesitei, não sabia como abordá-la, não estava habituado a transgredir, quero dizer, a sair da rotina. Como se tivesse adivinhado, ela dirigiu-se a mim, perguntou-me se tinha lume, estendendo um cigarro, como quem diz, vem cá. Tartamudeei, respondi-lhe que não, - não fumo, menina, - P, disse ela, e eu, - não fumo, menina P. Devia estar um bocado apalermado, porque ela riu, exibindo toda a sensualidade dos lábios grossos e suculentos, como se tivesse acabado de se lambuzar em mel. Palavra puxa palavra, acabei num apartamento manhoso, não longe dali, com ela colada a mim, a enfiar-me a língua pelas goelas, a desapertar tudo quanto era botão e a correr o único fecho éclair das minhas peças de roupa. Aplicava-se com um vagar langoroso e sistemático que me deixava em ebulição, como já não sentia há muito e, de resto, nunca senti com a minha mulher. No entusiasmo crescente (e digo crescente em todos os sentidos) em que me encontrava, nem reparei na aproximação dele...

Havia um botão roxo, feio na cor e na grosseria do seu plástico barato, talvez proviesse da loja do chinês, parecia um proxeneta enfiado num fato garrido, piroso, com a ponta da unha do mindinho quase do tamanho do dedo. Podia bem ser o Sr. Prx.

- E depois? - impacientou-se o padre, já a olhar para o relógio e a clamar secretamente por mais originalidade.
- Senti um impacto na nuca, desabei sobre o sofá ali ao lado, virei-me como pude e vi-o, um sujeitinho nojento, cheio de gel no cabelo, enfiado num fato roxo de tecido e corte grosseiros, e com um bigode que lhe escorria, num riso diabólico - desculpe a alusão - pelos cantos da boca. Atordoado como estava, não consegui perceber o que ele dizia ao botão vermelho, quero dizer, à Menina P, mas bem vi que trocavam risos alarves, enquanto esvaziavam os bolsos do meu casaco e calças, que jaziam, espalhados pelo chão forrado de uma alcatifa velha e suja, manchada sabe-se lá de que fluidos. Em menos de nada, tinham-me limpado a carteira, com tudo o que tinha dentro, e o telemóvel. Exigiram-me os códigos, sob ameaça duma navalha de ponta e mola e da promessa de morte, caso os números fornecidos não fossem os correctos. Depois, saíram por entre gargalhadas cínicas, enquanto ela, desenhando um gesto obsceno com o dedo do meio da mão direita, não sei porque fui reparar neste pormenor, me dizia, - bye-bye, babe...
- Bem, parece-me que já tiveste parte da tua penitência, só não percebo como não estás arrependido! Espero que agora, que verbalizaste o teu pecado, já tenhas reconsiderado. Vai para casa, leva um bonito ramo de flores ou um perfume à tua mulher, reza um terço antes de dormires, e fica em paz. Agora vai, que o teu pecado está perdoado, obviamente na pressuposição do arrependimento e do cumprimento destas duas pequenas penitências.
- Mas, padre, ainda não cheguei à parte que queria confessar, isto é só o contexto, os factos que levaram ao verdadeiro pecado...

- Nesse caso, e desculpa-me interromper-te, mas tenho missa dentro de 5 minutos, considera a confissão suspensa, volta amanhã pelas 16H, e, entretanto, aproveita para reflectires no arrependimento, sem o qual não te valerá a pena voltares, que isto é um confessionário católico e não uma qualquer agência de desabafo ou espécie de reality show privado. Até amanhã.

Sem mais, levantaram-se ambos ao mesmo tempo. O botão cinzento, quer dizer, o Sr. C, dirigiu-se para a rua, cabisbaixo, enquanto o botão preto, quer dizer, o Padre P, se orientou para a sacristia, tropeçando na batina e quase caindo, na pressa de se preparar para a  missa. Na igreja, por entre o sussurro de rezas murmuradas, espalhava-se meia dúzia de botões velhos e escuros, que bem podiam ser o grupo habitual das beatas resistentes.

(continua)



(Imagem obtida em pesquisa Google)