domingo, 24 de setembro de 2017

O BOTÃO ASSASSINO - II

(continuação e fim)

Saído da Igreja, o Sr. C arrastou-se até casa, com a disposição que se calcula ser a de qualquer animal a caminho do matadouro. Embora roído pela contrariedade, levou um ramo de flores à mulher, tal como o botão preto, aliás, o Padre P, lhe indicara. A Sr.ª C, quer dizer, o botão castanho, recebeu o ramo com o espanto de quem é surpreendido pela aproximação dum OVNI e murmurou entre dentes, enquanto se dirigia à cozinha, mas o que é isto? Ele fechou-se no escritório, ofendido com aquela reacção. É no que dá ser simpático com as mulheres, rosnou para os seus botões (por assim dizer). Pouco depois, anunciou, cheio de maus modos, que não lhe apetecia jantar, desandou para o quarto e enfiou-se na cama. Ela sentiu um enorme alívio e, não fosse o encanto quebrar-se, nem lhe perguntou se se sentia bem ou se não queria, ao menos, um chá e umas bolachas. 

Decorridos três dias de grande inquietação e mau feitio, o botão cinzento, ou seja, o Sr. C, compareceu, novamente, no confessionário do Padre P, que, pressentindo-lhe a intranquilidade e movido pela curiosidade, o incentivou a prosseguir a confissão suspensa:
- Fico feliz por te ver de volta, qual espécie de filho pródigo! Desabafa, então, o teu pecado!
Sem mais preâmbulos, tal a necessidade de se libertar do peso que o oprimia ao ponto de lhe desnortear a vida, o Sr. C retomou a confissão no exacto ponto em que a deixara:
- Depois da pancada e do roubo a que a Menina P e o seu comparsa, o botão roxo a quem ela chamou Prx, me sujeitaram, vesti-me o mais depressa que pude e saí daquele antro. Quando cheguei à rua, já não vi sinal deles. Pensei em telefonar à Polícia, mas desisti, com vergonha de ter de contar o sucedido, sentia-me ridículo por me ter deixado apanhar em semelhante esquema. Um tanso, é o que vão pensar de mim, não me saía isto da cabeça. Entretanto, a nuca latejava-me, numa dor funda, e sentia-me tonto. Dirigi-me ao hospital mais próximo, onde, após umas horas de espera e vários exames, me mandaram para casa, com recomendação de repouso por 24 horas e uns comprimidos. Já passava da meia noite quando cheguei a casa, a minha mulher estava mais chateada do que preocupada, por eu não ter avisado. Esquecera-me por completo. Só então me lembrei que tinha de tratar do cancelamento dos cartões bancários e do telemóvel. Dispensei o jantar que ela conservara no forno, agarrei-me ao computador e ao telefone de casa e tratei desses assuntos, embora sabendo que já ia tarde. Aleguei que os tinha perdido, só podia, visto não ter participado o roubo à Polícia. 
- Bem, e depois? - incentivou o Padre, já impaciente com tantos pormenores e receoso de não sair dali nenhuma história de jeito, que justificasse tanta angústia confessional.
- No dia seguinte, quando vi o estado das minhas contas bancárias e o preço do novo Iphone que tive de comprar, a decisão apresentou-se-me com uma nitidez e uma urgência que não admitiam contraditório. Traduzia-se em duas palavras: VINGANÇA IMEDIATA! 
Nos dias seguintes, procurei, em vão, o botão vermelho com brilhos dourados, ou seja, a menina P. Naturalmente, mudara-se. Fiz-me de detective pelos cafés das redondezas, sobretudo os mais rascas, distribuí umas notas a uns quantos botões rafeiros, e, passada uma semana, bingo! De longe, escondido atrás das árvores duma rua escura, avistei-a, plantada sob um candeeiro, no preparo em que a vira a primeira vez, com as coxas a escorregarem do vestido brilhante e aquele sorriso de convite, todo escancarado. Fiz marcha atrás, cautelosamente e fui-me preparar para o dia seguinte.

Havia um botão estranho. Tinha dois buracos no meio, mas, se se reparasse com a devida atenção, havia mais dois, embora obstruídos, para não se notarem. Iluminava-o pela frente um amarelo ofuscante, capaz de lhe dissimular o ar pesado, conferido pelo cinzento escuro da parte de trás. Podia bem ser um homem ainda novo, de ombros largos, talvez com algum excesso de peso, enfiado num fato um tanto exótico, com lentes de contacto e farto cabelo loiro. O Senhor A. Verdadeiramente, era o Sr. C, sob disfarce. 

- No dia seguinte - continuou o Sr. C, perante a impaciente curiosidade do Padre P -, depois do escurecer, dirigi-me ao poiso-sob-o-candeeiro da menina P, esperei que não passasse ninguém por perto, meti conversa com ela, e quando se propôs levar-me até ao apartamento, sugeri um desvio prévio para tomarmos um copo, acenando-lhe com a promessa duma nota extra. Notei-a inquieta ao entrar no meu carro - na verdade, não era meu, trouxera-o, de empréstimo, do Stand, depois de todos terem saído -, mas sosseguei-a com um largo sorriso de pacóvio rendido, e lá fomos. Para longe, cada vez mais longe, até que ela, agitada, no lugar do morto, perguntou, - afinal para onde vamos?, ao que, secamente, respondi - Já vai ver, estamos a chegar. Estacionei, pouco mais à frente, num pinhal sombrio. Vi que tremia, enquanto tentava abrir a porta do carro. Estava trancada. Com alguma dificuldade, enfiei-lhe um gorro pela cabeça abaixo, até ao pescoço, e atei-lhe as mãos. Destranquei as portas, saí e fui ajudá-la a sair. Enquanto a adentrei no pinhal, oscilava entre debater-se furiosamente e choramingar numa falsa humildade. Atei-a, pela cintura, a um pinheiro e retirei-lhe o gorro, que saiu pesado de lágrimas. Mandei-a calar-se, com um ar tão imperioso e calmo, que ela não teve como não. De seguida, como quem ensaia um streaptise, retirei as lentes de contacto e coloquei os óculos, arranquei a cabeleira loura e acomodei-me confortavelmente no meu fato cinzento escuro. Apesar da escuridão, só quebrada pelas luzes do carro, ela percebeu. Soltou um grito tremendo, pediu perdão, fez promessas, e eu ali, a saborear aquele desespero. Virei-lhe as costas, dirigi-me ao carro, peguei na barra de ferro que arranjara num ferro-velho e regressei. Deve ter pensado que me fora embora, pois, quando voltou a ver-me, desatou num berreiro infernal - desculpe a alusão, Padre! Calou-se, mal lhe desferi o violento golpe, em plena testa. Esguichou um bocado de sangue e caiu para o lado. Regressei ao carro. À medida que me distanciava do pinhal, fui jogando fora, para as margens arborizadas da estrada, os instrumentos da vingança, primeiro a cabeleira, depois a barra de ferro, o gorro de lã, as cordas e, finalmente, as lentes de contacto. A menina P já estava! Talvez, mais tarde, decidisse dar o mesmo tratamento ao Sr. Prx, mas, de momento, sentia-me saciado. Este era o pecado que lhe queria confessar.
- Mas isso é muito grave, meu filho, isso não é pecado, é crime, não é coisa que se absolva com arrependimento e penitências! - disse o Padre P, numa enorme aflição.
- Olhe, Padre, se não é pecado, vim bater à porta errada...
- Não é isso, só quis dizer que não é só pecado, é crime. E dizes-me, para mais, que não estás arrependido?
- Não estou, não, mentiria se dissesse que sim.
- Olha, creio que ainda estás em choque, mas deves fazer o que tem de ser feito, ir à Polícia e confessar o teu crime. Se quiseres, acompanho-te. Depois, teremos tempo para tratar a questão do perdão, afinal, Deus não vai embora, estará sempre à tua espera.
- Nesse caso, não tenho mais nada a fazer aqui. Agradeço a sugestão e o apoio, mas não, não me vou entregar à Polícia.

Sem dar tempo de reacção ao Padre P, o Sr. C saiu apressadamente da Igreja. Após várias voltas, seriamente desnorteado, pelas ruas da cidade, dirigiu-se a casa. Agitavam-se-lhe na cabeça pensamentos lúgrubes como pássaros negros em céu tempestuoso. Abriu a porta, avançou até à sala e encontrou a mulher a falar com dois agentes da Polícia, devidamente fardados e servidos dum café acabado de fazer. Cheirava bem. O coração caiu-lhe aos pés, atirou-se para uma poltrona de veludo, enquanto os outros se levantavam, e a mulher lhe anunciava:
- Olha, estes senhores agentes vieram entregar os teus cartões de crédito e o teu Iphone. Não me disseste nada, afinal o que aconteceu? Perdeste-os ou roubaram-tos? É por isso que tens andado tão esquisito? Nunca me dizes nada!
À medida que ela falava, a cor dele foi sofrendo inúmeras mutações, do escarlate ao amarelo desmaiado, e, antes que pudesse responder, um dos Polícias, adiantou:
- Na verdade, encontrámos estes seus pertences em circunstâncias estranhas e gostaríamos que nos dissesse a razão disso. Que saibamos, de acordo com os nossos registos, não participou nenhum roubo... 
- Circunstâncias estranhas, que circunstâncias estranhas? - interrompeu a Sr.ª C, toda agitada.
O Sr. C, por uma vez na vida, sentiu-se grato pela intervenção da mulher. Sempre lhe evitou o vexame e, pior, a suspeita dos polícias, por não ter sido ele a formular aquela interrogação óbvia (óbvia se quisesse passar por inocente...). Só então reuniu forças e domínio para reagir:
- Sim, a minha mulher pergunta bem, que circunstâncias estranhas? Só sei que os perdi, há dias. Mal me apercebi, fui logo tratar dos cancelamentos,... quero dizer, dos cartões, incluído o do Iphone.
Os agentes, em vez de lhe responderem, exibiram-lhe um saco de plástico transparente, devidamente selado, e perguntaram:
- O senhor reconhece este objecto?
- Que objecto? - fez-se ele de parvo, pensando ganhar tempo.
- Ora, esta cabeleira loura, aqui dentro do saco!
- Ah! não estava a perceber... sim, parece uma cabeleira,... mas nunca a vi,... quer dizer,... nunca a tinha visto - balbuciou, trémulo.
Já bastante enervada e quase fora de si, a Sr.ª C, dirigindo-se aos agentes, perguntou:
- Mas, afinal, vão-me dizer ou não que raio se passou?
- Minha Sr.ª, ainda não sabemos exactamente o que se passou, mas pode crer que lá chegaremos. Entretanto, precisamos que o seu marido nos acompanhe para prestar depoimento. Vamos, Sr. C? - disse o agente, num interrogação que era, indubitavelmente, uma ordem.

E lá foi o Sr. C, o botão cinzento.

Ia escoltado por dois botões azuis escuros, muito luzidios, com quatro furos no meio, perfilados em paralelo, dois mais dois, muito certinhos. Bem podiam ser dois jovens e atléticos agentes da Polícia, desfilando nas suas fardas impecáveis. E eram. Os Agente A1 e A2.

O botão que me contou esta história refugiou-se na sua casa e nunca mais apareceu. Fica, pois, em aberto, o que se passou a seguir. Terá o crime do Sr. C sido descoberto? 
     

(Imagem obtida em pesquisa Google)


    

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