quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

AS PIRACANTAS


duas fileiras de piracantas, desenhadas em forma de muro rectangular, ladeavam o caminho conducente do portão grande à parte de trás da casa. o portão - à semelhança do outro, o pequeno, que levava às escadas pelas quais se acedia à porta principal - era de ferro verde escuro, trabalhado em arabescos graciosos. o pai não nos deixava trepar pelos portões, para não esfolarmos a tinta, tão orgulhosa, no seu tom aristocrático. portanto, não escalávamos os portões. mas isto é apenas um aparte. hoje, só estou aqui por causa das piracantas. 



se, por acaso, não sabem, as piracantas eram, aliás, são uns arbustos pintados de verde intenso (como quase todos os arbustos) e ornamentados com umas bolinhas oscilando entre cor de laranja e vermelho, após a rebentação duma floração alva. não me recordo se as bolinhas se apagavam com o correr das estações (sim, por essa altura, o tempo dum ano dividia-se em quatro estações bem marcadas). sei que estavam lá, para deleite da vista e provocação das infâncias curiosas, pois constituíam um apelo à experimentação. refiro-me a que não resistíamos a mordê-las, como se fossem frutos de mesa e não meros seres decorativos, desafiando a crença de serem venenosas. demonstrámos que não o eram. sobrevivemos à degustação sem sombra de envenenamento ou simples dor de barriga.

os seus galhos eram, aliás é bem provável que continuem a ser, bastante espinhosos. posso afirmá-lo com a pele das pernas. um dia, andando de bicicleta em seu redor, arranjei maneira de cair. derramei-me literalmente sobre as benditas piracantas. talvez irritadas com a intrusão, quem sabe se exercendo vingança por lhes andar a roubar os coloridos adereços, receberam-me com os espinhos em riste. vi-me forçada a recolher a casa e pedir ajuda (coisa que já então detestava fazer), tal o desgraçado estado em que as pernas me ficaram. mas não, não resultou daí qualquer espécie de desamor.

para mim, as piracantas eram um dado adquirido, tão natural e permanente como as paredes da casa ou a paisagem da serra imperiosa ao fundo. quer isto dizer que, para mim, as piracantas eram eternas.

depois cresci, mudei de cidade, estive vários anos sem as ver e sem pensar nelas, até porque sabia que estavam lá, como a casa estava lá e a serra e a sucessão das estações do ano e tudo o mais... estava lá

e quando regressei - já não para ficar, mas só para passar férias - lá as encontrei! no seu exacto lugar, nas suas preciosas cores, no posto que lhes assinalara no calendário da eternidade. e assim, a cada novo regresso de férias. até que...

...até que certa vez já não estavam lá!


os pais, vá-se lá saber porquê - creio que devido ao cansaço inerente aos cuidados requeridos pela manutenção e alinhamento das piracantas -, tinham mandado cortá-las (substituindo-as por duas longas fileiras de radiantes hortênsias).


(Imagem obtida em pesquisa no Google)

barafustei, chocada por aquela desistência. posso mesmo dizer que a vivi como se uma traição. não sem razão. afinal, com o abate das piracantas caiu-me por terra a crença numa certa forma de eternidade, a do aconchego da infância.







2 comentários:

  1. Isabel, como sempre, a forma clara da narrativa leva a que estejamos contigo a reviver os lugares da tua infância e ao mesmo tempo a sermos confrontados com a mensagem que está contida, neste caso,algo que nos marca a todos, a não eternidade! Parabéns e continua em frente.

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  2. Ana, obrigada pelo teu comentário! É muito bom receber feedback (ainda para mais tão simpático) de quem passa por aqui. Bjinhos.

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