quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

CAPI E SIBELA


E agora interrogam-se, - mas que título é este?

Muito simples, o título dum livro, mais precisamente, "Capi e Sibela (Uma história de asaços)", da autoria de Salvina Ribeiro, com ilustrações de H. Mourato.


Trata-se dum conto sobre dois pássaros, ele, uma catatua de nome Capi, ela, uma papagaio chamado Sibela. Mas quem diz pássaros, pode dizer pessoas... 

Passado o nascimento, a infância e uma adolescência bem integrada no bando lá daqueles ares, Capi veste o papel de salvador de Sibela, que, por azares do destino, se encontra numa situação de risco, quase à mercê das garras dum qualquer predador. Tornam-se amigos, cúmplices, até que ela sente necessidade de procurar a família, da qual fora precocemente separada, por razões que aqui não convem revelar. Separam-se. Ele regressa ao bando. Ela entrega-se ao seu desígnio, passando por aventuras várias. Até que...  

E mais não posso contar, pois creio que estarão interessados em ler o livro e não perdoariam a antecipação do desfecho. Eu, no vosso lugar, não perdoaria!

Posso é acrescentar que se trata duma narrativa aliciante, onde se surpreende uma cadência serena, salpicada de bom humor e duma enorme sensibilidade. Por outro lado, serve de veículo à reflexão sobre um conjunto de valores humanos, quer no plano da realização individual - v.g., a compreensão das raízes, a independência, a coragem e a perseverança, enquanto factores de equilíbrio emocional e capacidade de decisão -, quer no plano relacional - v.g., a amizade, a cumplicidade e a compreensão do outro, a aceitação da diferença e o sentido da entreajuda. 

Merecem, ainda, realce os belos desenhos que ilustram o livro. 


E agora só me falta esclarecer - para quem não saiba, como era o meu caso - que "asaços" são abraços com asas, quer dizer, abraços entre pássaros ou - digo eu - abraços muito carinhosos.


Pronto, já podem ir ler!







domingo, 18 de fevereiro de 2018

PELO #MÉDIO ORIENTE - II - #ABU DHABI




Um sol espantoso amanheceu sobre o porto Zayed, no Abu Dhabi!





A primeira impressão foi a duma amplitude (territorial) bem mais generosa do que a do Dubai - não fosse o Abu Dhabi o maior dos Emirados Árabes Unidos (UAE), de que é a capital. 

Acresce, não sem surpresa, para um território de ADN desértico, a mancha verde desenhada por variadas árvores (e outro tipo de vegetação), a refrescar a paisagem de tom natural bege arenoso.




O passeio começou por algo que o guia - ainda o mesmo egípcio do percurso da véspera, no Dubai (v. post de 17 de Janeiro p.p.) - apresentou como um souk modernizado, onde poderíamos encontrar artigos tradicionais - não que eu estivesse interessada em souks, em artigos tradicionais ou outros...

Tratava-se, na verdade, duma construção contemporânea, herdeira, quanto ao conteúdo, dos souks tradicionais, mas agregando negócios mais actuais,  com destaque para um grande supermercado que, pela aparência, não ficava a dever nada a qualquer congénere ocidental.

Aproveitei para cambiar dinheiro e comprar duas garrafas de água e regressei ao autocarro, aliviada por deixar tão pouco apelativo local. 

O anunciado ponto alto do dia seria a visita à proclamada impressionante e uma das maiores mesquitas do mundo (alegadamente, a terceira maior), Mesquita de Sheikh Zayed (que a mandou construir e nela está sepultado, tendo a obra sido iniciada em 1996 e terminado em 2007). 

Apenas um parêntesis para referir que o supracitado souk, assim como o porto onde o navio esperava (e sei lá quantos spots mais, viva o culto da personalidade!), também se designam Sheikh Zayed. A referência é a Zayed bin Sultan Al Nahyan (1918-2004), governante do Abu Dhabi e principal arquitecto dos UAE, de que foi presidente durante mais de 30 anos. O actual presidente dos UAE e emir do Abu Dhabi é o seu filho, Khalifa bin Zayed bin Sultan al Nahyan, também designado por Sheik Khalifa.

Embora tendo seguido as instruções emanadas da agência de viagens, no tocante a vestuário, a entrada na Mesquita foi-me vedada, num primeiro round, pelo fiscal islâmico - para o denominar de alguma maneira - encarregado do controlo. Explico: apesar de ter as pernas resguardadas por calças escuras (não poderiam ser brancas!) e não justas (também não permitidas!), o cabelo recolhido num boné, sob uma echarpe que me descia pelas costas e os braços (até aos pulsos), a entrada no templo foi-me, por assim dizer, chumbada! - Porquê?, indaguei, já a levantar fervura. Simplesmente porque a t-shirt era de manga curta e a echarpe transparente! Requisito em falta: braços completamente tapados!

Barafustei, sem êxito, até me lembrar que tinha um casaco no autocarro. Vesti-o, recoloquei a echarpe e apresentei-me, mais uma vez, ao controlo do macho islâmico. Mandou-me levantar a echarpe (prova de que ela cumpria a sua função...), para testar bem a questão dos braços. Embirrou de novo, as mangas do casaco ficavam a cerca dum palmo dos pulsos. Desatei a esticar as ditas com tal ímpeto e mau feitio que o homem, embora cheio de má vontade, se deu por vencido, permitindo-me (tolerando-me?!) a entrada no sagrado recinto. Menor sorte tiveram outras mulheres, que, por infracções idênticas, se viram obrigadas a comprar uma abaya (espécie de túnica preta, até aos pés, que as mulheres usam sobre a roupa).

Uff! fiquei (quase literalmente) furiosa! Escusado será dizer que os homens entram de mangas curtas e, no respeitante às mulheres, o argumento para a restrição prende-se com uma ideia tão estúpida e discriminatória quanto caricata, a saber: evitar distracções!!! Posto isto, a hipótese de os meus braços (aliás, aqueles parcos centímetros dos meus braços) poderem suscitar a distração dos adoradores de Alá ao ponto de os desconcentrarem das suas orações causou-me um certo, por assim dizer, frisson... 

Brincadeiras à parte, dei comigo a reflectir sobre um conjunto de questões: qual a fronteira entre o respeito devido a dada cultura (religiosa) e o cerceamento da liberdade/dignidade humana; como é possível que, em pleno século XXI, ainda haja (tantas) mulheres que aguentam, sem se rebelar, um status quo tão discriminatório e violento; como é diferente percepcionar este tipo de situação nos noticiários e senti-lo na pele... Mas isto devo ser eu, que, desde a infância, mantenho intacta a repulsa por práticas segregativas (seja em razão do género ou outra). Nisso não me tornei indulgente, não!

A este propósito, não posso deixar de referir que li há dias, com iguais doses de espanto e de esperança, que, no Irão, as mulheres estão a ousar manifestar-se publicamente contra a obrigatoriedade de uso dos véus (hijabs), motivo por que, lamentavelmente, vinte e nove foram presas... Oxalá (e sublinho esta expressão!) sejam cada vez mais e com maior êxito as #whitewednsdays (como o fenómeno já é conhecido) e consigam vencer a ditadura obscurantista e machista que sobre elas impende, (alegadamente) em nome de invioláveis comandos divinos. 

Ganha a minha pequena batalha, lá me encaminhei para a sumptuosa mesquita. Mais uma entre o rebanho de turistas que, encaminhados por extensos cordões e atentos vigilantes, deixam atrair a vista e as câmaras fotográficas pela profusão decorativa desta construção monumental, de arquitectura neo-muçulmana.

A brancura e a harmonia do mármore que lhe forma as paredes, o esplendor dos lustres que lhe pendem das cúpulas e dos vitrais que estabelecem subtis diálogos com o exterior, a beleza do desenho e o colorido do tapete persa que se lhe deita aos pés,  a geometria perfeita dos mosaicos e todas as demais riquezas e exuberâncias do local talvez ofusquem um pouco menos do que o novo-riquismo associado. Esta foi a minha impressão geral!

Para além dos motivos típicos, não perdi a oportunidade de fotografar o Corão, multiplicado em várias unidades, talvez à espera de que alguém se concentrasse o suficiente para sentir algum resquício de espiritualidade, num lugar aparentemente vendido ao turismo, embora sem concessões a braços semi-revelados em pretensas transparências.






















Terminada a visita, veio-me à ideia a narrativa de Jesus a expulsar os vendilhões do templo. E não deixei de pensar na diferença, por comparação às mesquitas vivas de Istambul, onde, apesar da presença turística, pude sentir o recolhimento dos fiéis e não me deparei com a sobranceria dum qualquer fiscal em relação a uma turista ocidental (isto, em 2009. Hoje em dia, ignoro)! Será culpa do petróleo? E quando o petróleo acabar? 

Curiosamente, apesar de não professar qualquer religião, sinto-me muito atraída pelo ambiente de certos templos, dado o clima espiritual que proporcionam ou induzem. Já mencionei as mesquitas de Istambul, mas acrescento os santuários xintoístas do Japão e algumas igrejas, como a de S. Domingos, em Lisboa (embora esta, ultimamente, esteja a perder o clima, por virtude da invasão turística. Entra o dinheiro, sai a calma, não se pode ter tudo.)


(Mesquita em Istambul, 2009)
(Templo xintoísta, algures no Japão, 2012)
(Igreja de S. Domingos, Lisboa, 2017)

Como este post já vai longo, retomarei num próximo o tour pelo Abu Dhabi.






domingo, 4 de fevereiro de 2018

ELEVADOR CIRCULAR: O MISTÉRIO


libertou-se do abraço da porta giratória com o ímpeto de quem não aguenta prisões. atravessou toda a largura do átrio num passo apressado, o excesso de espaço causava-lhe vertigens. premiu o botão, exibindo no rosto uma inquietação de horas de espera, apesar de o elevador nem quinze segundos ter demorado a aterrar.

a porta abriu-se, metade para cada lado, desenhando duas curvas perfeitas, e ele precipitou-se para o interior. a porta fechou-se com a mesma eficácia indiferente com que se abrira, enquanto ele estampava uma curiosidade desconfiada no círculo perfeito que o rodeava. nunca vira um elevador circular. as luzes, apesar de não muito intensas, multiplicavam-se por efeito dos espelhos que forravam o interior, todo o interior do veículo - sim, naquele momento, pensou no elevador como um veículo, mais exactamente, uma nave, não espacial, é certo, antes pelo contrário, intra-mural, mas, ainda assim, uma nave.

olhou para cima, para o tecto, como quem quer despistar um observador secreto e insistente. deparou com um par de olhos esbugalhados, um nariz perfurante e uma boca semi-aberta, de lábios finos, por onde se evadiam duas fileiras de dentes alvos e salientes. desviou o olhar daquele excerto de rosto sem o reconhecer. agitou-se numa apreensão que não passava de prolongamento da que o impelira até ali.

prosseguiu a busca, desta vez nos lados, melhor, naquela curva única do círculo perfeito desenhado pelas paredes do elevador. deparou-se com uma nuca lisa, revestida duma sombra de cabelo rapado à máquina zero. devia ter sido louro escuro, a avaliar pelo tom da mancha reflectida no espelho. descia-lhe um palmo de pescoço, logo escondido numa gola preta, assente nas costas direitas dum casaco que deslizava até deixar ver duas pernas de calças, também pretas, pousadas sobre os calcanhares duns sapatos de tipo inglês, pretos. os cotovelos espetavam-se para trás, deixando adivinhar um par de mãos resguardadas nos bolsos do casaco, melhor dizendo, do sobretudo. 

ao contrário do seu, aquele corpo não emitia sinais de tensão. estava ali, limitava-se a estar ali, como se uma paisagem colocada de propósito à sua frente para o desinquietar. um enigma, era o que era.

baixou a cabeça e a surpresa bateu-lhe nos olhos, o chão também era espelhado. e lá estava o outro corpo, reflectido ao contrário, os sapatos tipo inglês a descerem pelas pernas das calças, estas pelo longo sobretudo, este pelo palmo de pescoço à mostra e, finalmente, uma sobra de nuca manchada da falta do cabelo talvez louro escuro.

agitou-se num estremeção violento. disparou um olhar a toda a volta, uns perfeitos 360º. estendeu as mãos como um cego à procura de contacto, de orientação. foi-lhe devolvido o frio da superfície espelhada. apenas isso.   

mesmo assim, resolveu-se. começou por pigarrear, depois disse:

- bom dia! o senhor, por acaso, sabe dizer-me em que piso fica a sala do congresso de psiquiatria?

após breve hesitação, repetiu a pergunta. continuou sem resposta. todavia, o outro permanecia lá, no seu longo casaco preto, de boa fazenda, reparou.

a perturbação aguda duma dúvida insana atingiu-o com a força duma bofetada inesperada. estendeu um braço, como quem quer agarrar certezas. em vez da fazenda suave do sobretudo preto, sentiu a superfície fria do espelho. rodou sobre os calcanhares, um círculo perfeito, 360º. os braços estendidos a toda a volta. nenhum contacto, excepto com a parede de espelho. o corpo vestido de preto continuava lá, de costas para si, mas não conseguia tocar-lhe. só podia estar no interior do espelho, concluiu, espantado com a irracionalidade da conclusão. e ele, onde estava ele, que não se via reflectido? e porque não reparara nisso antes?

o tempo das indagações foi interrompido na exacta fracção de segundo em que o elevador parou e a porta se abriu de par em par, com um ruído metálico de rebentar qualquer par de tímpanos, por mais resistentes que fossem. com o coração a galope, deu um salto em frente, só porque tinha de sair dali.

estendeu uma mão desajeitada e furiosa para a mesa de cabeceira e pressionou o botão do despertador como quem esmaga uma mosca. soltou um palavrão, dois palavrões. levantou-se com um cansaço como se não dormisse há muitas eternidades. apressou-se no duche e no resto. 

ao cruzar a rua, sentiu frio na cabeça, era assim, desde que tinha rapado o cabelo à máquina zero. talvez devesse comprar um gorro. levantou a gola do sobretudo de fazenda preta. caminhou apressado, sobre os seus belos sapatos pretos de tipo inglês. franqueou a porta giratória do luxuoso hotel em que decorria o congresso de psiquiatria. dirigiu-se ao elevador.

surpreendeu-se com a agitação à volta, polícias, jornalistas... perguntou a uma mulher de ar tão espantado quanto o dele, sabe dizer-me o que se está a passar? não obteve resposta, ela nem sequer o olhou, aliás, comportou-se como se não o tivesse visto. mas, perguntada por uma outra pessoa, respondeu, ouvi dizer que desapareceu uma pessoa no interior do elevador!

afastou-se, confuso. inquietava-o uma interrogação: será que me tornei o homem invisível?



(Imagem obtida em pesquisa Google)