quarta-feira, 28 de março de 2018

A P*** DA VELHICE


Numa fila de supermercado.

A senhora à minha frente tem de acomodar as compras conforme pode, pois o senhor de alguma idade que acabou de pagar ainda vai lento no discurso que acompanha o ensacamento das suas. Finalmente, parece dar-se conta e afasta-se para um lado, com a mercadoria atrás, comentando que não gosta de ser empata - que faria se gostasses, brado eu... mentalmente!

Enquanto os meus artigos desfilam pela máquina registadora (ou lá como se chama), o homem prossegue na converseta com a menina da caixa - pobre menina da caixa, sujeita a enganar-se nos trocos, só para lhe dar atenção, sabe-se lá quantas vezes por semana ele passa por lá a sarraziná-la!

Com um fôlego inesgotável, lá vai dizendo que não sei quê e não sei quantos e isto e aquilo - ocorre-me o sketch dos # Gato Fedorento, abençoados sejam! -, para chegar ao ponto culminante, o já esperado, mais ou menos isto: sim, porque quando eu comecei a trabalhar não era como agora, tinha de ir de camisa e gravata, todo engravatadinho! Ignoro se quis dizer que assim é que era bom ou o contrário! Na verdade, é o tipo de asserção usável com ambos os sentidos, consoante a circunstância e/ou o estado de espírito do velho (independentemente da idade) que a profere: este tempo é uma m****, o meu é que era bom (orgulhoso, impante); ou, nem sabes a sorte que tens, havias de ter vivido na p**** do meu tempo (vítima ou coitadinho).

Escusado será dizer que, nesta fase do campeonato, eu, que detesto empatas, conversadores de desnecessidades e discursos de velho, já ansiava por recitar o número de contribuinte, efectuar o pagamento e desandar dali para fora a 150 à hora.

Estava precisamente a recitar o número (de contribuinte), quando o senhor de idade com força de dizer coisas decidiu agregar-me à conversa - cá para mim e contra todas as probabilidades, o homem dispunha de poderes especiais  com os quais detectou o meu estado de espírito e decidiu vingar-se. Ou então era só aquela força de falar e de ampliar a plateia.

Vai daí, diz ele - e eu a meio do número do contribuinte -, esta senhora deve saber do que eu falo e não sei quê e não sei que mais, coisa e tal e etc. Quer dizer, com cerca de meia dúzia de palavras, associou-me àquele tempo, isto é, arrebanhou-me para a quinta da terceira idade!

Raio do velho, era só o que me faltava! Mas onde é que eu entro neste filme? Eu, com as minhas jeans desgastadas, com o meu plumas última moda, a odiar empatas, fala-baratos e saudosistas dos tempos idos…

E é isto que eu detesto na terceira idade técnica, isto de lhe pertencer por via dos sinais exteriores - ok, venham-me cá dizer que pareço mais nova que eu acredito e, aliás, isso há de interessar-me muito! Pela minha parte, continuo com esta excruciante pergunta atravessada: como é que uma mioleira fresquinha, toda a curiosidade e desejo à flor da pele (e a ausência de achaques, para usar uma palavra velha) pode lutar contra a cabra da flacidez, os c****** dos códigos de barras e as f***** da p*** das rugas? Para não falar no maldito e desbocado cartão de cidadão? A resposta é ainda mais pungente: poder, pode, mas não vence!

E depois é assim, que, a partir dos sessenta, um jovem nos ache arrumados no caldeirão da terceira idade é uma coisa, é natural e é da vida! Até dá um certo gozo (ou pena, consoante) imaginar o quão rapidamente lá chegarão, a menos que, entretanto se descubra o segredo da eterna juventude. Agora que um velho caquético, agarrado à p**** do passado nos queira identificar consigo, por via da pertença à terceira idade técnica, ai isso é que não! Já basta o espelho e a data de nascimento aposta no cartão de cidadão.

Obviamente, o c***** do velho saiu do supermercado às arrecuas, a desejar boa Páscoa a toda a gente, a menina da caixa, eu e os que, entretanto, se juntaram à fila e talvez nem tivessem reparado em mim...

Eu vim a correr para casa, disposta a fazer rir um bocado os que passam por aqui.

Já agora, boa Páscoa! 







segunda-feira, 5 de março de 2018

IMPOSSÍVEL ANULAR O MOVIMENTO INVERSO


Aquela imagem não o abandonara nem um só dia, semana, mês ou ano, e tinham sido muitos, demasiados, aqueles dias, semanas, meses e anos, que finalmente deixava para trás (se tal era possível!).

De tanto a ouvir, lamuriada por uns, arremessada por outros, ladrada pelos mais agressivos - e não, nem eram os familiares, mas os advogados -, a acusação grudara-se-lhe à mente e para lá da mente, aos sentidos, para não falar das emoções. E agora ali estava ele, cumprindo a promessa, mais do que promessa, um desejo intenso ou talvez uma necessidade, algo do domínio do imperioso.

Vestia roupa simples e descuidada, no sítio de onde vinha não havia lugar a luxos ou a cuidados especiais. Mesmo assim, na noite anterior, procurou esticá-la o mais possível, ao menos que não ostentasse um ar amarrotado. Exceptuados os sapatos, nada pertencia ao vestuário com que ali entrara, nem podia. Entre esse momento e este tinham decorrido vinte longos anos, em que muita coisa, quase tudo, mudara. Só para falar no exterior, exibia cerca de trinta quilos a menos, a pele lavrara-se-lhe de sulcos, mais fundos na testa, talvez reflexo de uma fixação, daquela fixação. Quanto ao interior, seria melhor nem pensar nas diferenças, tantas e tão medonhas se configuravam. Isto, se acreditarmos que o interior pode mudar assim tanto, tema que não vem ao caso. Nem isso lhe interessava, já passara as várias fases, desde a mágoa ao espanto até à resignação/determinação, passando pela raiva e a revolta, a ansiedade e a angústia.

Mas o dia chegou e lá estava ele, dando cumprimento à promessa, com a esperança secreta de encontrar respostas (ou a resposta), como se uma lápide de mármore enegrecida, em luta permanente contra manchas de musgo e humidade, com um nome, duas datas e um texto vulgar inscritos, pudesse ter o condão de lhe fornecer respostas!

Vinte e quatro anos antes, ei-la, aureolada pelo fulgor ruivo dos cabelos, ponto alto da sua atracção, que foi recíproca (ou talvez não). Cruzaram-se por acaso, ambos voltaram as cabeças, os números de telefone trocaram-se no ar como canções de pássaros estouvados, pouco depois os encontros, em menos de  quase nada, a coabitação.

A princípio, o entusiasmo. Depois, o entusiasmo, da parte dele, o desprendimento, da parte dela. Tornou-se arisca, parecia ter vestido o verde frio dos olhos. Ele, cada vez mais mergulhado no negrume dos seus. Em breve, começou a chegar tarde, invocando trabalho e saídas com as amigas. “Trabalho, amigas, e então eu”?,  ele e a sua queixa. Ela a rir e a deslizar para a provocação, “Ai o menino está carente, pobrezinho! Ou serão ciúmes?”, com o sublinhado de uma gargalhada. “Não me chames isso, nunca mais me chames isso!”, e os ciúmes a instalarem-se, a incharem como uma bola de berlim.

Um dia, a constatação. Observou-a de longe, não, aquilo não era trabalho, não eram amigas, era outro gajo. O reboliço, em casa, não desencadeou respostas, apenas fez baixar o som das gargalhadas dela. Ele não ria, deixara de rir o seu riso original e cristalino. Perguntou-lhe, “Afinal o que queres da vida, da nossa relação?”. Sem se dignar responder, ela bateu com a porta. Ele estilhaçou um copo na parede. Fitas de whisky a deslizar pelo branco pálido e sedoso. Quanto desperdício! Acabou por regressar e pedir desculpa. Ele não aceitou. Bateu com a porta do quarto, mandou um livro pelo ar. Aterrou no candeeiro da mesa de cabeceira. Ela ouviu o estilhaçar da lâmpada. 

Passaram os dias e eles sem se falarem, ele a remoer, ela não se sabe bem. 

Passaram mais dias e ela a chegar ao trabalho com um olho roxo, e a sair do trabalho acompanhada pelo outro, o gajo, o mesmo, no meio de uma gesticulação feroz. As portas do carro a baterem como se o seguro cobrisse todos os riscos. Ele bem viu e assim como viu, pensou, é agora, não posso suportar mais este calvário, esta degradação de corno, tenho de a confrontar. Naquela noite, chegou macia, quase submissa, agarrou-se-lhe numa espécie de choro contido, dava para ver que estava arrependida (ou amedrontada?). Ele afagou-lhe os cabelos, desistiu do contra-interrogatório e do ultimato que congeminara em dias sucessivos, sobretudo em noites sucessivas, admitiu para si próprio que também arcaria a sua quota de culpas. Fizeram amor e dormiram juntos pela primeira vez em muitos meses. Combinaram jantar num bar da praia, no dia seguinte. O tempo começava a florir. Ela continuava com um olho roxo, mas agora era o esquerdo e, na coxa do mesmo lado, esvaíam-se-lhe em roxo já a caminho de amarelo umas nódoas negras do tamanho de nozes. Faço as perguntas amanhã, pensou ele antes de adormecer.

O dia seguinte amanheceu sem ela e por qualquer razão ele estremeceu um arrepio, pensou, nunca mais.

Não atendeu os telefonemas dele. Mesmo assim, chegada a hora, ele decidiu ir até ao bar da praia como quem obedece a uma ordem tão incongruente quanto irrecusável. Entrou no bar com os nervos à flor do estômago. Esperou um tempo superior ao devido a qualquer espera, perguntou ao empregado, "Não, não a vi", foi a resposta. Desistiu. Movido pelo desnorte, adentrou-se nas dunas, afundando os pés na areia, com a força duma raiva e duma revolta que pareciam novas, depois da esperança ressurgida na noite anterior. Não demorou muito até que, por entre o uivo do vento, lhe pareceu ouvir um chamamento. Focou-se na origem do som e foi assim que a descobriu. Já não se tratava apenas de nódoas negras. A vida devia ter-se-lhe escapado no esforço daquele chamamento definitivo. O corpo ainda estava quente, o verde dos olhos muito espantado para o cinzento do céu, um manto rubro a cobrir-lhe o peito nu. Uma confusão de pegadas grandes rodeavam-na. Um vulto perdia-se na lonjura. 
Aproximou-se, segurou-lhe a cabeça com a tremura das mãos húmidas e frias, viu o cabo do punhal a sobressair-lhe das costelas frágeis. Retirou-o com a esperança cega de poder anular o movimento inverso. Só então reparou que segurava o melhor punhal da sua colecção. Deixou-se cair, o corpo fechado num soluço mudo.  

A polícia encontrou-o assim, nem meia hora tinha decorrido. De nada lhe valeu negar! O vento levara as pegadas. O vulto perdera-se para lá das dunas.

Agora, ali estava ele, Artur Alves, frente à campa dela

JOANA ANTUNES
1970 - 1996
ETERNA SAUDADE, PAIS E IRMÃ

à espera de respostas, "quem, porquê?". Já desistira de perguntar, "porquê eu"?

O cemitério era igual a qualquer cemitério, um relvado a perder de vista, ondeando levemente, como se a ondulação fosse necessária para evitar a pasmaceira dos mortos, e, a espaços não simétricos mas não desordenados, lajes de basalto ou mármore, a assinalarem a libertação dos prisioneiros da vida, eterna prisão dos adiados.


(imagem obtida em pesquisa no Google)









quinta-feira, 1 de março de 2018

A GAVETA DA ESCRITORA


Levantou-se e abriu a porta num ímpeto, não tanto para saber quem era, mas para por termo à estridência impertinente com que a campainha lhe perfurava os tímpanos. Diante de si, perfilavam-se dois polícias, o coordenador Victor Fernandes e o inspector Mário Pires, pelo menos assim se apresentaram, anunciando, de seguida e sem mais cerimónias, que vinham fazer uma busca. Perante o seu enorme espanto, mostraram-lhe o mandado judicial e foram entrando, mesmo sem convite.

Mal recuperou a voz, ela perguntou, num rompante de indignação, a que se devia tão inusitada intrusão no seu local de trabalho. Em parcas e frias palavras, o Fernandes remeteu para o papel, o mandado ou lá o que era, sem se deter em pormenores, como se a urgência da tarefa devesse sobrepor-se a tudo, mesmo à natural curiosidade da dona do local.

O Pires - ou Marinho, como era tratado pelos colegas -, arrastava-se atrás do coordenador, olhando para as paredes, que eram quatro, amplas, formando um open space, todo branco e despejado, o que faltava em móveis sobrava em livros. Três das paredes eram revestidas de alto a baixo com estantes brancas, de linhas depuradas, com a única função de dar abrigo a uma imensidão de livros, de todos os formatos, tamanhos e conteúdos - esta última parte ele nem percebeu, não era dado a livros, o que não se poderia dizer do outro, o Fernandes.

Junto da única parede livre, rasgada por duas grandes janelas, filtro duma luminosidade intensa, encontrava-se uma secretária branca, de tamanho XXL e linhas minimalistas. Sobre ela, um computador, em pausa, uma impressora, ladeada duma resma de papel A4 branco e de várias folhas impressas, uma chávena de café, meio cheia ou meio vazia, consoante a perspetiva, e um prato de bolachas, uma delas marcada por uma dentada, um iPhone e um maço de lenços de papel. Do lado direito, sob o tampo, albergava-se uma enorme gaveta, semiaberta.

Para além da cadeira da secretária, em pele preta, de desenho ergonómico, apenas havia, no canto oposto, dois sofás, no mesmo material, mas de cor branca, separados por uma pequena mesa, onde repousavam alguns livros, mais livros. Uma porta dava acesso a uma pequena casa de banho e a um espaço mínimo, destinado a preparar uma refeição ligeira, mas que seria exagerado chamar de cozinha.

Talvez assustados pela profusão de livros - e, seguramente, não eram livros o que procuravam -, os polícias começaram por explorar a mini casa de banho e a mini espécie de cozinha que não chegava a sê-lo. Como, à semelhança do resto, se tratava de espaços tão desimpedidos quanto a brancura e o despojamento geral já faziam supor, a busca foi rápida, aliás, tão rápida quanto infrutífera. Fosse o que fosse que procuravam, estava longe de se encontrar por ali.

Atiraram-se, então, às estantes, deslocando aleatoriamente os livros, como se de trás deles fossem saltar sabe-se lá que segredos!

Ela, que até ali tinha conseguido dominar a indignação - afinal, ignorava o real motivo de tão estranha visita -, agitou-se freneticamente, perante a ameaça em perspetiva de ver os livros, tão trabalhosamente ordenados, espalhados sem critério. Elevou a voz, o Marinho encolheu os ombros, a significar, não é nada comigo, o Fernandes empertigou-se e proferiu, "Senhora D. Joana Moreira, estamos só a cumprir a nossa obrigação". "Mas não precisam de desarrumar tudo, pois não?", respondeu ela, e acrescentou "Se ao menos explicassem o que vieram fazer, talvez eu pudesse ajudar, não?" E ele, mula, a mastigar as palavras, como quem come a resposta, e o outro a encolher os ombros como quem se isenta de responsabilidades, e a esboçar um sorriso meio cúmplice, meio canalha.

Por fim, desistiram dos livros e encaminharam-se para a secretária. Escancararam despudoradamente a gaveta meio aberta, e começaram a retirar o conteúdo, objecto a objecto. Talvez num acesso de organização, o coordenador ordenou ao Marinho, "toma nota, escreve aí: umas tesouras virtuais e um tubo de cola virtual". Interrompeu-se, dirigindo-se a ela, numa ignorância genuína: "Mas isto serve para quê, minha senhora?"

"Para cortar palavras e para colar palavras, respectivamente", respondeu, seca.

Ele prosseguiu:

"Um arquivo de coisas ruins, a saber: desgostos gerais, amores não correspondidos, amores traídos, amores excessivos, abusivos e obsessivos, lutos vários, amizades estragadas, auto-estimas pelas ruas da amargura, frustrações diversas, desesperos, faltas de chuva e de sol, consoante, neuras daquelas de nem se saber como nem porquê, melancolia, zangas, cansaços e etc.;

Um ramalhete de sonhos sonhados (nada a ver com sonhos acordados), arrumado em três modalidades, sonhos belos, pesadelos e sonhos lúcidos; 

Um pacote de mistérios, uns reais outros inventados;

Um molho de parvoíces, por exemplo, notícias de TV e de revistas do cabeleireiro;

Uma colecção de frases estranhas, algumas engraçadas, trazidas pelo ar, sendo uma delas: és mesmo um coca bichinhos, entras numa loja e pões tudo doido;

Uma embalagem de Toblerone, contendo, em vez do chocolate, um triângulo feito de passado (re)inventado, futuro aprisionado e presente mais que passado;

Uma faca de fragmentar ideias, uma lima de polir palavras e um aparador de adjectivos e outros;

Um triturador de realidades capaz de produzir diferenças;

Uma caixa sem lados nem tampa, só a base". O Fernandes interrompeu-se, de novo, para a interpelar, "A senhora desculpe, há-de ter de esclarecer de que se trata tudo isto, mas, para já, diga-me, que caixa é esta?"

"Olhe, o senhor é mesmo ignorante, então não percebe que é uma caixa para se pensar fora dela?! Haja paciência!" Foi a resposta.

Só então despertou para a incómoda realidade, seria possível ter-se enganado na identificação ou na morada? Afinal, nada fazia sentido, nada do que encontrava correspondia ao que procurava. Pouco à vontade, acantonou-se num cochicho com o Marinho, que, entretanto, parara de escrevinhar e recolhera as mãos aos bolsos, como quem se demite de responsabilidades: "Ouve lá, tu conferiste bem os dados, o nome e a morada?", "Eu acho que sim, o chefe não confirmou?" - ouviu-os ela.

Dirigiu-se-lhe, a medo, pedindo o cartão de cidadão. Apelido, Souto Moreira, e não Soeiro Moreira. "A senhora não é psicóloga?",  "Não, sou escritora!".

O Marinho já tinha um pé fora da porta. O Fernandes não demorou a fazer-lhe companhia, empurrado pela Joana, sem oportunidade para apresentar sequer um pedido de desculpas. A porta fechou-se com estrondo.