sexta-feira, 11 de maio de 2018

A SALETA: UMAS MEMÓRIAS


apresento-me: sou a saleta e isto são as minhas memórias!

nunca tive o glamour da sala de visitas, com o seu jogo de maples de estampado grená, que não eram para sentar, excepto se houvesse visitas (óbvio!), o piano Baumgardten & Heinz de tempos antigos, que o sr. já-não-sei-o-nome-mas-que-era-cego vinha afinar para as aulas dos meninos, lecionadas pela temível dona A., de sua alcunha, "o Cadelório", vá-se lá saber porquê (ou até se tão agressiva palavra existe), e a mesa pé-de-galo.

não possuía o recato e a seriedade do escritório do dono da casa, pai dos meninos (menino e menina), com a secretária arte nova, a cadeira de braços e as paredes forradas de estantes recheadas com livros.

também não partilhava o estilo da sala de jantar, que bem poderia chamar-se sala das ocasiões especiais - repastos em dias de mesa alargada e chazinhos de visitas de cerimónia -, com a sua mobília completa, talhada em madeira maciça, aí uma tonelada de peso, segundo os meus cálculos, cabedal e espelhos, as pratas e os pratos de louça antiga espalhados pelas paredes, e, é claro, a Última Ceia a presidir.

não digo isto com sombra de inveja ou outro tipo de ressentimento. tomaram elas, as outras divisões, na sua condição de semivivas ou semimortas, ter presenciado o que eu presenciei, ter vivido o que eu vivi! afinal, por alguma razão sou eu e não elas a vir aqui partilhar memórias.

se senti afinidade foi com a cozinha, à qual me ligava um corredor de mosaico, que chegou a ser muito usado pelos meninos para jogar à bola. nessa altura, parecia enorme, assim tipo alameda, mais tarde, quando se tornaram adultos, revelou-se na sua dimensão real, cinco ou seis metros (ou outra medida qualquer, não sou boa nestas conjecturas, também não é coisa que se exija a uma saleta).

para que me imaginem (meio caminho andado para o entendimento), vou-me descrever, que isto da imagem é o primeiro cartão de visita, segundo dizem os consultores da dita e outros entendidos. 

das minhas quatro paredes, duas rasgavam-se em janelas, duas para trás, para o quintal, com a figueira ao fundo (ai a figueira!), o pombal do lado direito, pelo caminho a horta, várias árvores de fruto, o galinheiro, palácio de galinhas e, consoante os tempos, de mais outras espécies, de que recordo patos e coelhos e até um ou outro perú, por altura do Natal, pobrezinho.

recordo vivamente um coelhinho especial, todo branco, de olhos vermelhos, que a menina segurava ao colo, enquanto lhe espalhava festas na cabeça e ele ali, deliciado, deixando as pálpebras tombar como se aquele momento doce devesse ficar guardado para o sempre ou, ao menos, para tempos menos ditosos. também me lembro que, a certa altura, foi mandado construir um lago de cimento dentro do galinheiro, dedicado a banhos dos patos, tipo patudos SPA. falta de previsão, os pintainhos, ignorantes das artes da natação, deram em afogar-se, o lago acabou transplantado para o jardim, a servir de canteiro a luminosas flores, os patos condenados a andar a pé.

algures por aí, entre o galinheiro e o pombal, ficava o baloiço, onde os meninos subiam às nuvens, alto, cada vez mais alto, perfurando o ar com a vertigem da velocidade, da alegria e da ilusão. 

lá para o canto ficava o tanque, mas isso já pertence às vistas da janela da cozinha e não pretendo imiscuir-me em memórias alheias. mesmo assim, vou partilhar o que talvez não passe dum mito sobre o tanque: certo dia, o menino esteve a pontos de lá se afogar. e, já agora, a menina fazia dele marina e praia dos bonecos. era uma das suas formas de viajar, por aquela altura não era coisa que estivesse ao seu alcance, sempre em casa, sempre confinada àquela terra atrás das serras! por isso a quis deixar o quanto antes, o que acabou por suceder aos dezasseis anos para nunca mais, um nunca mais apenas interrompido por curtas estadias de férias, mas isso pertence, quando muito, às suas memórias, assunto em que também não tenciono meter-me.

das minhas memórias, que disso se trata, posso dizer que amava sobremaneira ver e ouvir a chuva desabar contra as vidraças das janelas e sentir o cheiro a terra molhada que se desprendia do chão. também amava o verde dos ramos das árvores a afagarem-me as mesmas vidraças. contrastava com o vermelho vivo da caixilharia, madeira pura, que mais tarde iria estalar pela sucessão de muitos sóis.

na outra parede, rasgavam-se mais duas janelas, debruçadas sobre o caminho que ligava o jardim, na parte da frente da casa, ao quintal traseiro, de que já falei. no início, esse caminho era de terra batida e ladeado de piracantas, mais tarde, passou a dispor duma passadeira alcatroada e as piracantas foram substituídas por hortênsias, mas disso não vou falar até porque a menina já o fez e se há coisa que detesto são repetições. entre as piracantas e a casa, dum dos lados, e a sebe de separação da casa vizinha, do outro, habitavam árvores de fruto a que, mais tarde, se juntaram cactos gigantes. ervas e flores cresciam por onde as deixassem. e no meio delas azafamavam-se as formigas, que a menina passava eternidades a observar. 

sempre gostei das minhas janelas, todas quadriculadas, debruadas a vermelho, como referi acima. no interior, eram protegidas por portadas de madeira maciça, castanhas escuras na face interna e beges na externa. quando a noite caía, o senhor, quero dizer, o pai dos meninos, antes de subir para dormir, fazia a ronda, certificando-se de que janelas e portas ficavam criteriosamente fechadas. empregava nisso o cuidado dos gestos essenciais,  assegurando que tudo estava certo e que se podia dormir tranquilamente, sem a sombra de intrusões indesejadas, não que, por essa altura, houvesse grandes razões para temer. era um dos rituais que nunca conseguirei esquecer, uma espécie de símbolo da ordem perfeita, misturado com a representação dum anjo da guarda terrestre.

outra das minhas paredes dava passagem para o já falado corredor (comunicante com a cozinha), através da porta emparelhada com as portadas das janelas, na sua harmoniosa junção bege/castanho escuro. estava sempre aberta e isso era a prova clara de que eu permanecia sempre viva, ao contrário das outras já referidas salas, adormecidas num despovoamento quase sistemático. só muito mais tarde, já os meninos tinham deixado de o ser (se é que tal pode afirmar-se!) e só apareciam em visita, me lembro de a ver encostada, para protecção dos rigores invernais. talvez isso já sucedesse antes, mas, por essa altura, eu era tão nova e tão usada que não me ocorre pensar no frio e também não no calor. todavia, agora que falo nisso, assaltam-me algumas memórias presas nas variações atmosféricas: a caneca de lata das limonadas frescas e o zumbido das moscas e outros insectos voadores. era o ditoso verão, o verão das férias grandes, enormes. por vezes, uma mosca aterrava na sopa da menina, esta rejubilava, a avó dizia, - és uma enojada, a mosca tem de cair sempre no teu prato!, zangada por a menina arranjar um pretexto para não comer a sopa. se ela odiava sopa, todas as sopas, mas especialmente a de cebola! aliás, as fitas para (não) comer eram tantas que me lembro de ver a senhora, a mãe dos meninos, retirar-se da mesa à beira das lágrimas, enquanto a avó não parava de chatear a pequena criatura. felizmente, o pai mantinha-se alheio a tais cenas. e não se pense que era birra, ali não havia lugar a birras, tratava-e só de afirmação de impossibilidade da menina perante uma coisa que não conseguia engolir.

a quarta parede não tinha interrupções, nem janelas, nem porta.

as minhas mobílias eram do mais banal, absolutamente isentas de estilo. uma mesa redonda com cadeiras à volta, onde eles, os cinco (mais tarde, seis, com a junção do avô paterno, recém-viúvo) se sentavam para todas as refeições, onde os meninos estudavam e o pai preparava as lições e corrigia os exercícios - toma lá escritório, que raramente eras usado, era eu a preferida! -, uma estante de esquina, dita cantoneira, mais tarde substituída por uma pequena estante rectangular, sede de arrumos vários, uma gaveta para os guardanapos, que eram de pano e guardados em bolsinhas individuais monogramadas, delicadamente esculpidas em croché, pela mãe, um móvel com a máquina de tricotar lãs, onde esta fazia camisolas, luvas, bandoletes, cachecóis e outras coisas maravilhosas para os da casa - não por não estar disposta a fazê-las para venda, mas abstendo-se disso, pois ficava mal... -, um divã, encostado a um canto, com duas ou três almofadas. mais uma ou duas cadeiras, numa das quais, encostada a uma das janelas que dava para a lateral da casa e daí para a rua, se sentava a avó, desenhando rendas. quando não andavam de candeias às avessas - por causa da história da sopa ou doutras igualmente parvas, por exemplo as reclamações da menina por a mandarem por a mesa ou fazer a cama, enquanto o menino, apenas por ser menino, era disso dispensado -, acocorava-se no chão e, sem dar nas vistas, prendia o fio das rendas, impedindo a avó de avançar com as agulhas. acabavam as duas a sorrir e a brincadeira passava sem efeitos colaterais, em ambiente de cumplicidade.

não me perguntem porquê, apenas tenho de dizer que não, a menina não aprendeu nada naqueles departamentos em que a mãe e a avó eram tão prendadas, nem rendas, nem bordados, nem malhas tricotadas, nem simplesmente coser à máquina. consta que, nas aulas de Lavores Femininos - sim, havia uma disciplina com essa designação -, a menina levou a professora ao desespero e à desistência, porque andou um santo ano para bordar um simples e diminuto pano a ponto de cruz sem se dar ao trabalho de o terminar. como coisa tão inusitada pode ter acontecido nem perguntem, afinal sou apenas a saleta e, de resto, estou aqui para falar das minhas memórias. também escusam de perguntar se a menina veio a arrepender-se de ter desaproveitado a aprendizagem de tantos talentos. limito-me a testemunhar que, certa vez, como não desse andamento à renda com que a avó pretendia conquistá-la para o domínio das fadas do lar, esta lha arrancou das mãos, num ímpeto, e desfez o pouco produzido. noutra ocasião, desesperou quando tentava ensinar a menina a coser à máquina, desistindo por falta de êxito na primeira incursão. tenho para mim que a menina não ia lá com esses modos, mas talvez, acima de tudo, não lhe interessassem tais artes, visto as associar ao conceito de mulher-dona-de-casa, carreira que sabia muito bem não querer prosseguir.  tinha muito claro na cabeça que não queria tal forma de dependência, havia de ser independente como a dr.ª C., a notária, única mulher com carreira feita que conhecia (curiosamente, não associava a tal conceito as professoras do Liceu, que as havia, embora fossem tratadas por senhora dona, como se não passassem duma espécie de donas de casa com autorização para amestrar, contrariamente aos professores, os senhores doutores, esses sim, titulares duma verdadeira carreira).

o que eu mais gostava era das brincadeiras dos meninos. lembro-me das tardes frias em que se serviam do estrado da braseira como pista de carrinhos de lata. Sim, esquecera-me de mencionar, mas sob a mesa havia o dito estrado e braseira, escondidos pela camilha.

outra coisa de que me recordo eram as aulas de acordeão, porque, a seguir ao piano, os meninos tiveram aulas de acordeão, mas estas, dada a mobilidade do instrumento, decorriam no meu domínio e não na sala de visitas e não se comparavam nada com o rigor e a seriedade das aulas de piano a cargo da dona A.. o sr. C., que as ministrava, era pessoa sorridente e amigável e não estava para solfejos, era só descontração e alegria.

outra das coisas boas eram as histórias que o pai e a mãe contavam às refeições, histórias de família, a mãe, histórias de vida, sobretudo como estudante em Coimbra, o pai. os miúdos ouviam atentamente, enquanto aprendiam, porque, duma forma ou doutra, eram histórias para aprender, memórias e coisas da vida. 

e só para terminar, que estou com a sensação de falar de mais, deixo mais um apontamento, os almoços de aniversário. A mãe preparava refeição melhorada, sempre a culminar no bolo russo ou enrolado, uma torta de chocolate coberta com açúcar, riscado de desenhos geométricos. em jeito decorativo, multiplicavam-se sobre a toalha bombons de chocolate, recheados com creme e envolvidos em pratas multi-coloridas. as prendas não eram nada de especial, que nem o dinheiro abundava nem a parte material se valorizava. talvez por isso, certa vez, a menina  ficou encantada com o presente dum convidado surpresa - habitualmente não os havia -, um primito, que lhe levou um cachecol macio, em frescos tons claros, muito bonito. mais tarde, procurou-o insistentemente, sem o encontrar, nas arcas do esquecimento que habitavam a cave.

também eu já não encontro aquela família, de que, aliás, só restam os meninos, que agora o não são (ao menos por fora)! aliás, bem contra minha vontade, mudei de mãos e, como tal, embora permaneça na essência, nunca mais serei a mesma. e a essência é o que vivi nesses tempos. daí estas memórias.


(Imagem obtida em pesquisa Google)






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