sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

UMA IDADE INDECOROSA: CATARSE


Há dias, fiz (muitíssimos) anos, aquilo a que chamo uma idade indecorosa. Sim, porque, a partir de determinada altura, fazer anos equivale a abanarem-nos à frente dos olhos os pérfidos números que o cartão de cidadão (CC) insiste em alardear aos quatro ventos, com aquela vozinha irritante e provocadora, de quem tem sempre razão e nunca se engana - como um ex-presidente da República  de má memória que por cá tivemos (só que, no caso deste, era mentira e no do CC, infelizmente, é verdade).

Não que me costume chatear por fazer anos. Ao menos, não dói, estou com as pessoas que amo, recebo presentes (isto é o menos, claro!), cantam-me alegremente os "Parabéns a Você" e, passadas umas horas, já esqueci a efeméride. Mas este ano foi diferente. Dei em embirrar com o dia do aniversário, naquilo que não pode deixar de ser considerado uma típica crise de idade (coisa por que já não me lembrava de passar desde aquela vez em que, sem preparação prévia, olhei para o espelho e constatei, atónita e desgostosa, olha, aconteceu, estou a ficar velha!).

Ora, este envelhecimento delatado pelo CC - ok, e corroborado por umas quantas rugas e certos efeitos duma crescente força da gravidade - não pode agradar a ninguém, sobretudo quando se tem a cabeça arejada e o corpo continua vivo e (ainda) não regista anomalias de monta. Bem, a mim não me agrada, embora, agora que parei para descrever o fenómeno, talvez ainda me agradasse menos se a cabeça e o corpo mostrassem inépcia e/ou debilidades indesejadas.

Como se não bastasse, chegado o temido dia, estava sob o efeito duma maldita indisposição gástrica ou figadal, presumivelmente decorrente do facto de, nos dias precedentes - sabe-se lá se para esquecer ou encontrar coragem! -, ter andado a dar nos queijos e nos chocolates. Vai daí, para além dos enjoos, sentia-me completamente destituída de forças, sem saber se teria energia para honrar o jantar e soprar as velas do bolo de aniversário.

Mesmo assim, a meio da tarde, lá me dirigi à Versalhes, a fim de levantar o dito bolo e respectivas velas. Acontece que os números das velas não se prestavam a equívocos, não eram daqueles que dão para duvidar da real idade (ou realidade), por exemplo, o 3 e o 4, que tanto podem significar 34 como 43! Já perceberam, era uma década que completava... ou iniciava, consoante a perspectiva.

Vai daí, o empregado - calhou ser aquele que sempre me tratou como uma rainha, de tal modo que, em crianças, os meus sobrinhos, suspeitando que ele nutria um fraquinho por mim, gozavam comigo, referindo-se-lhe como o tio -, muito simpático, deu-me os parabéns. Ora bolas - pensei - agora é que os malditos números já extravasaram o CC! Agradeci, embora ainda me tenha passado pela cabeça dizer que o bolo não era para mim, mas que entregaria os parabéns ao destinatário. Havia de valer de muito!

Bom, o jantar aconteceu, na companhia dos meus entes queridos (que é o mais importante!), consegui soprar as velas e preparei-me para enfrentar o futuro com a determinação, sentido de adaptação e, mais importante, o sentido de humor, a que costumo recorrer em situações de crise.

No dia seguinte, ainda debilitada, fui ao Corte Inglês, a fim de comer uma canja (é uma das sopas diárias e recomendo) e fazer umas compras. Cruzei-me, então, com um ex-colega de trabalho, uns anos mais novo do que eu,  que já não via há quase nove anos. Espanto dos espantos, mal olhou para mim, disse, com um brilhozinho apreciativo nos olhos, que não o deixou mentir, Está mais magra! Sorri, encantada, trocámos aquela conversa do costume - por onde tem andado, o que tem feito, etc. -, mas ele continuava com aquele brilhozinho e, ao despedirmo-nos, insistiu, Emagreceu e rejuvenesceu! E eu a sorrir e a pensar, Uau, aleluia!

É claro que este meu contentamento é sinal manifesto de que o cabrão do CC tem razão, pois, em jovem, não ligava nenhuma a elogios do tipo (com as devidas adaptações, claro, porque nem precisava de emagrecer nem de rejuvenescer, mas diziam sempre que parecia mais nova). Mas, que importa?! Senti-me mais feliz e com um novo trunfo para enfrentar o tal futuro.

Agora que fiz este percurso catártico, sinto-me em condições de prometer que, ao menos antes de completar mais uma década, não tenciono angustiar-me com o tema idade. Olha, que se lixe, é a vida! Haja os nossos seres queridos, saúde e ex-colegas a precisar de óculos!!!












sexta-feira, 25 de outubro de 2019

WOODY ALLEN: SO SWEET!


Tinha avisado que mal podia esperar!

Assim, ontem, dia da estreia, corri a ver a nova (e 50ª!) longa metragem do Woody Allen, realizador (e actor) que tanto aprecio e que, ora com mais ora com menos brilho – quase sempre com mais! –, sempre me fascinou e inspirou: com as suas histórias criativas e repletas de sentido, o seu humor inigualável (em inteligência e estilo), as selectas bandas sonoras, a primorosa escolha e direcção de actores – com os quais, ao que consta, mantém uma fria e intransponível distância, motivo não impeditivo de sempre conseguir dos mesmos notáveis registos, muito próprios, muito seus –, a excelente realização, etc.

Este filme, "UM DIA DE CHUVA EM NOVA IORQUE", pareceu-me uma síntese da obra do Autor, em momento (ou modo) de reconciliação

Na verdade (e, por razões óbvias, sem pretender entrar muito em detalhes), assistimos: ao regresso à sua cidade, Nova Iorque; como pano de fundo, uma história de amor (desamores/traições incluídos, of course); paradigmáticas referências a sessões de psicoterapia, no contexto duma relação filial difícil; recurso ao humor como um sublinhado intermitente, todavia contínuo, enquanto modo de reflexão sobre a própria vida; atracção criador/musa. Porém, o que verdadeiramente caracteriza o filme é que tudo isso vem envolvido como que em etéreo manto de candura, tecido de nostalgia e ternura pungentes, enfim, de romantismo – e a chuva, a abençoada chuva e todo o cinzento envolvente, como símbolo, se não protagonista. Ao que acresce, em idêntico registo, a reconciliação filho/mãe – fornecidas que são, por esta, com sinceridade e coragem, as suas razões ou justificações –, que permite, por fim, o amadurecimento daquele, traduzido na descoberta (revelação?) do que quer (para além da consciência do que não quer...). 

Em certo sentido, poderá considerar-se obra quase de adolescente, dada a frescura e abandono do cinismo, dado o romantismo. Todavia, logo se surpreende uma enorme maturidade – sem a qual, aliás, nunca seria possível atingir um tal nível de simplicidade, diria mesmo, de perfeição.

Afigura-se-me que "UM DIA DE CHUVA EM NOVA IORQUE" recolhe a espuma de toda a filmografia do Autor, mas uma espuma leve e elegante, talvez como a que se eleva dum suave cappuccino. Neste sentido, pode, pois, falar-se em filme-síntese – à semelhança, aliás, do último e magnífico "DOR E GLÓRIA", de Pedro Almodovar, pese embora a diferença de abordagens, em que, à angústia patente neste, se opõe, naquele, a suavidade e um certo apaziguamento, diferença que, por certo, radica nas distintas personalidades e experiências dos dois realizadores, mas, sobretudo, nos momentos de vida em que cada um se encontra – pela ordem natural das coisas, mais perto do fim, no caso do Woody Allen (embora isto não passe de mera suposição...).

Num caso como no outro, espero que não se trate de despedidas, aliás, angustia-me podermos estar perante filmes-testamento...

Por último, não pode deixar de se evidenciar a magnífica interpretação dos jovens actores, Elle Fanning e Timothée Chalamet, sobretudo a deste, que, de resto, já evidenciara notório talento, designadamente, em "CHAMA-ME PELO TEU NOME(de Luca Guadagnino), filme tão surpreendente quanto belo. Também a prestação da Selena Gomez, embora num papel menos relevante, é digna de aplauso.

Longa vida a  Woody Allen! Que volte sempre (pelo menos uma vez por ano)!












terça-feira, 27 de agosto de 2019

ELA JÁ NÃO ESTAVA ALI!


      Para o Joãozinho, que sugeriu e participou (comigo) na elaboração do desenho infra, inspirador deste conto.

A família estava reunida na sala da vetusta mansão, entre cânticos, risos e cálices de vinho do Porto. Aproximava-se a meia-noite do dia 24 de Dezembro daquele ano, o último do século. As crianças, impacientes, não paravam de reclamar a abertura dos presentes. Por fim, o avô autorizou. Papéis de seda começaram a estralejar como foguetes em Agosto. Fitas de cetim desenrolaram-se à velocidade da luz, espalhando-se em volta, numa alegria que quase igualava a dos membros da família, sobretudo os mais pequenos.

Pareceu-lhes ouvir o batente da porta e, de repente, como que surgida dum sonho, ela apresentou-se, para espanto e deleite de todos, sobretudo da menina – única entre vários rapazes –, que completara cinco anos na semana anterior. 

Estava ali, simplesmente, tal como antes não estava ali. Era dotada duma beleza inquietante, enormes olhos redondos, negros e profundos, que não permitiam definir-lhe a idade, pele de autêntica porcelana fina, brilhante e rosada nas faces, boca pequena – mas, à época, ainda não estavam de moda as bocas grandes –, desenhada ao pormenor, na perfeição dos lábios carnudos, talhados em formato de coração, entreabertos para deixar espreitar a brancura reluzente dos dentes impecáveis.

A menina, após a paragem ditada pelo espanto inicial, perguntou-lhe: «Como te chamas». Ela fixou-a insistentemente, mas permaneceu calada. Então, a menina dirigiu-se aos pais, numa queixa amuada: «Perguntei-lhe o nome e ela não respondeu!» Eles trocaram sorrisos divertidos e, com a ternura habitual, disseram, meio a brincar : «E se lhe chamasses Ela?» 

E assim passou a ser chamada, Ela. Se era ou não o seu nome, não viria a saber-se, pois nunca o confirmou ou desmentiu. Deixou-se chamar assim e foi tudo.

A menina deu em preferir a sua companhia à de qualquer outro ser, inclusive, às suas amigas mais chegadas, bonecas preferidas e, mesmo, mascotes, que tinha em significativa quantidade, um cãozito minorca, um coelhinho branco de olhos vermelhos, um amster, um canário e outros mais.

Daí em diante, andaram sempre juntas.

Os anos decorreram, a menina cresceu, namorou, casou e Ela sempre por perto.

Mais tarde, a menina, já feita mulher, teve filhos, quatro filhos, entre eles uma menina. Também esta se habituou a Ela, pela qual revelou uma preferência idêntica à de sua mãe.

Aparentemente, Ela não envelhecia, talvez por sempre ter sido tão amada e bem tratada, talvez porque o negrume e as profundezas dos seus olhos continuassem indecifráveis – mantendo-se a sua idade o enigma mais bem guardado daquela ilustre família –, talvez porque estivesse reservada para um futuro a perder de vista.

Os anos continuaram a decorrer e a família foi-se remodelando, os mais velhos a sucumbir a mortes certas e inadiáveis e os mais novos dispersando-se e multiplicando-se, ao sabor das suas vidas.

Por fim, só a menina, agora mãe, permanecia naquela grande casa, onde outrora, nos idos duma infância radiosa, Ela fizera o seu aparecimento, como quem surge do nada. 

Também os seus filhos cresceram e partiram. O marido morreu-lhe. Ficou só ela e Ela.

Depois, acabou por apenas restar Ela. Sucedeu isto quando a menina de outros tempos morreu, ía já além do septuagésimo aniversário – o que, para a época, já era verdadeiro sucesso – e os seus filhos, com vidas ancoradas noutros lugares, após o funeral, não mais regressaram.

A casa para lá ficou abandonada, a desgastar-se de humidade, desgosto e nostalgia, e, no processo, também Ela ficou entregue a um destino solitário, tanto mais penoso quanto havia conhecido a atenção e o afecto da primeira menina e da segunda menina, nunca lhe tendo faltado nada, incluindo um guarda roupa de verdadeira princesa, com o qual brilhava perante a admiração de todos os que gozavam do privilégio de lhe pôr a vista em cima, fosse em festas, fosse de passagem pela casa.

O tempo que deslizou foi tanto que as paredes da casa começaram a abrir fissuras gigantescas, por onde escorria a água das chuvas e mesmo outra água vinda não se sabe de onde; o chão deixou-se cobrir por uma espécie de musgo terroso e os móveis acabaram soterrados em espessa lava de pó. 

Ela resistiu, a custo, retirada num canto da mansão, do qual não ousava sair, não fosse cair-lhe alguma trave em cima, despenhar-se-lhe uma cascata de cristal dos outrora belos candelabros sobre os formosos cabelos negros ou acontecer-lhe outra desgraça qualquer. Mas as marcas do infortúnio daquela solidão, a que se vira remetida e da qual não vislumbrava meio de sair, começaram a marcar-lhe corpo e face, principalmente esta. Significativas fendas abriram-se-lhe, sobretudo em redor dos olhos e ao longo da testa, como se ela e a casa fossem uma mesma entidade e o abandono as afectasse por igual. Também nessas rachas que a atravessavam, escorria uma humidade penosa e bolorenta. Eram correntes de lágrimas amargas dum rio de desespero.

A dada altura, talvez pela exaustão de desgosto e nostalgia ou porque já lhe residiam na alma, Ela começou a nutrir intensos sentimentos de revolta e desejos de vingança. Certo é que não encontrava explicação para o abandono a que fora votada: do infindável préstimo passar à imprestabilidade definitiva, como se um sapato velho, cujas solas se romperam até às meias. Mas porquê, perguntava-se, angustiada, sem entender como um amor absoluto tal o que em tempos e durante tanto tempo despertara pode desaparecer e dar lugar ao desprezo mais maléfico, esse que é feito do esquecimento absoluto, embora destituído de ódio ou doutra forma de maldade. Talvez me tenham substituído, admitiu para consigo. 

Vivia nisto, afastada de tudo e de todos. Não raras vezes, o cansaço substituía-se-lhe à revolta e ao desejo de vingança dilacerantes e apetecia-lhe morrer, o seu desejo mais profundo tornava-se o de morrer. Talvez reencontre a menina de há quase um século, divagava.

Passado não se sabe quanto tempo, Ela, cada vez mais desgastada, mas ainda bem viva, ouviu um ruído surdo, de quem empurra porta resistente, que não quer deixar-se abrir. Do seu canto, espreitou, entre a desconfiança e a expectativa, enquanto o barulho aumentava. Ecos de vozes e risos insinuaram-se, então, nos seus ouvidos. Ocultou-se atrás dum cortinado gasto, quase a desfazer-se em pó, quando um tropel de passos se aproximou. Viu um bonito rapaz, aí duns vinte e poucos anos, de mão dada a uma rapariga, de idade aproximada e não menor beleza, que riam por entre beijos apaixonados. Elevou-se uma nuvem de poeira espessa, quando, impetuosa e imprudentemente, se atiraram para cima dum sofá que ali jazia à beira da morte, sob o resguardo dum lençol adormecido pelo tempo e a ausência. O sofá desfez-se numa lamúria de caruncho exausto e eles aterraram no chão, por cima dos escombros da velha peça inutilizada. Riram alto. Depois, fizeram o inventário das obras necessárias à revitalização da casa. Depois disso, fizeram amor. Depois, partiram, menos barulhentos e mais enlaçados, quais pombos a arrulhar. Desconheciam que, sob o olhar negro e profundo de Ela, acabavam de lançar a semente duma nova vida, pronta a florescer.

Durante cerca de três anos, a casa foi reconstruída de alto a baixo. Enquanto isso, Ela teve o cuidado de se fazer desaparecer num canto estratégico do sótão, do qual apenas saiu para se ocultar noutro lugar, quando por lá andaram os homens das obras.

Passado esse tempo, o jovem casal regressou, agora acompanhado da sua pequena filha. Instalaram-se, alegre e entusiasticamente, na casa, como se tivessem por missão restituir-lhe a pujança que um dia conhecera. 

Ela encheu-se duma esperança que julgara de todo perdida.  

Certa noite, encheu-se de coragem e atravessou o sótão a que se remetera, com a intenção de se fazer descobrir. Ao passar por um espelho, reparou, com um misto de repulsa e desgosto, nos profundos estragos que a vida lhe infligira. Sorrateiramente, entrou na casa de banho do casal e, recorrendo à maquilhagem da jovem, tapou as frestas que lhe vergastavam o rosto. De seguida, desceu vagarosamente as escadas que conduziam ao grande hall de entrada e sentou-se num belo cadeirão que lá havia sido colocado. Sem pregar olho, esperou pela manhã, a fim de se apresentar.

Enquanto Ela seguia aqueles passos, a dona da casa acordou com a sensação de escutar um barulho surdo, proveniente do sótão e, depois, aproximando-se pelas escadas. Encolheu-se na cama, inquieta e temerosa. Acabou por acordar o marido, que, a seu pedido, foi dar volta à casa, em busca de ladrões ou algo que justificasse os ruídos.

Ao regressar, sossegou-a, que não encontrara nada de anormal. Todavia, após certa hesitação, adiantou: «A que está no cadeirão da entrada é para a menina?», mas a mulher, ensonada, limitou-se a dizer, «Anda, vamos dormir.»

Na manhã seguinte, Ela – desagradada por, na noite anterior, ele mal lhe ter prestado atenção – aguardou, impacientemente, que descessem.

Pouco passava das nove horas, apareceram juntos, com a filha pela mão. Ele deteve-se diante de Ela e lembrou: «Olha, foi sobre esta que te perguntei ontem à noite, mas tu estavas com tanto sono que não respondeste. Afinal, onde a foste desencantar e para quê?» A mulher, reparando em Ela, exclamou, «Mas o que é isto? Não faço ideia do que se trata, mas duma coisa estou certa, não veio cá parar por minha mão. Que estranho! Eu bem te disse que ontem à noite ouvi uns ruídos estranhos».

Enquanto se entreolhavam, atónitos e assustados, a criança tinha-se-lhes libertado das mãos e, dirigindo-se a Ela, segurou-a com as mãozinhas dançarinas e enfiou-lhe um dedo num olho, depois um dedo no outro olho, fazendo estalar a camada de maquilhagem que Ela tinha espalhado para disfarçar as mazelas. Depois, na sua língua de trapos, acrescentou: «Feia, não quélo» e saiu dali a correr.

Os pais afastaram-se em conjecturas, seguindo a menina, inquietos. Tomaram o pequeno almoço, com uma seriedade e preocupação que não lhes eram habituais. Depois, ela bateu com uma mão na testa e explodiu: «Já sei, creio que esta é a célebre boneca Ela, de que a bisavó falava tanto, sobretudo quando recordava aquele Natal em que lhe apareceu, por entre os demais brinquedos, e a deixou tão fascinada que nunca mais a largou. Mas como veio aqui parar? Terão sido os homens das obras?» Após breve pausa, continuou, «É espantoso como a moda evoluiu, a nossa filha detestou a boneca. Não admira, afinal, por muito fascínio que tivesse despertado na bisavó não tem graça nenhuma.» Riu-se, esquecida, por momentos, do misterioso aparecimento da suposta Ela, e, como que a falar consigo própria, agora com ar sério e inquieto, indagou: «Reparaste naqueles olhos dela, tão negros e profundos… e duros? Fazem lembrar os duma pessoa sem idade, parecem olhos de atrair corvos. Quase vejo corvos a voarem para dentro daqueles olhos sinistros!» «Ou para fora deles…», concluiu ele, por entre uma gargalhada demoníaca, a imitar o som dum qualquer filme de terror.

Num sobressalto repentino e síncrono, olharam em volta e não viram a filha. Simultaneamente, ouviram um grito de estarrecer. Era um grito de criança. Era um grito dela, da sua amada filha. Correram, correram desnorteados sem atinarem com a origem do som. Subiram as escadas, num atropelo, enquanto o grito se repetia e tornava mais próximo. Vinha de cima, do sótão. Entraram de supetão e os gritos tornaram-se insuportáveis, de tão próximos e funestos. Mais insuportável e funesta foi a visão da criança, mãozinhas levantadas para a cara, para os buracos onde antes brilhavam os seus olhos azuis de princesa da Disney. O sangue encharcava-lhe o vestido branco e pingava sobre os ténis, pequenos e graciosos. A toda a volta, suspensas lá em cima, sussurravam asas negras. Asas de corvos. 

Segundos depois, atravessavam o hall de entrada, em direcção à rua, numa urgência desesperada, em busca de socorro para a criança, que, agora exangue e sem dar acordo de si, jazia no colo atormentado do pai. Contudo, antes de franquearem a porta, não puderam abster-se de olhar para o cadeirão onde haviam surpreendido Ela.

Ela já não estava ali!


Ao entrarem atabalhoadamente no carro, entreolharam-se, incrédulos, com a sensação perturbadora de não poderem jurar que Ela estivera ali sentada, no cadeirão, à sua espera... à espera da sua querida menina…









segunda-feira, 19 de agosto de 2019

MORTE NO FACEBOOK!


Sim, a morte também anda por lá, a menos que sejam apenas mortos e não a entidade abstracta habitualmente representada com cabeça de caveira e braço armado de foice.

O Facebook (FB) é, aliás, habitado por tudo quanto imaginar se possa, das mais nobres publicações, nomeadamente, sobre Literatura e Arte (sim, com maiúsculas), até aos mais desgraçados e pérfidos desabafos, passando pelas surpresas mais deliciosas, ora pelo inédito ora pelo ridículo ora pelo inesperado ora por..., pelo que quiserem.

Em suma, o FB funciona como uma espécie de esgoto a céu aberto onde desaguam as (ou algumas das) almas mais ou menos penadas que vagueiam pelo mundo internético. A sensação de poder que transmite aos utilizadores é tão estrondosa que não poderia haver melhor espelho para o que a natureza humana é capaz de produzir, especialmente no seu pior ou, no mínimo, no seu mais caricato – não será no exercício do poder que o Homem melhor se revela? 

Na verdade, tudo leva a crer que o FB comunica às pessoas a (irreal) sensação de que podem, finalmente, expor-se duma maneira que, na vida real, por uma data de razões, não ousam; ao que acresce a importância (também irreal) de disporem de uma audiência alargada (vejam-se as centenas e milhares de amigos que muitos acumulam), perante a qual, ainda que sem retorno, podem, finalmente, brilhar. Tudo meras ilusões ou, se preferirmos, provocações, meticulosamente orquestradas pelos Zuckerbergs deste mundo (e todos os que lhes estão por trás... ou acima), para delas retirarem o mais que possam (v. publicidade dirigida, fake news, consultas para efeitos de concessão/recusa de vistos de entrada em certos países, etc.).

Perante tamanhas ilusões, na sua pequenez e pobreza de espírito, as pessoas despem-se do bom senso e da lucidez e revelam o mais primário que lhes vai nos neurónios (quando os têm) ou noutro sítio qualquer. Claro que há excepções a esta regra – que não passa da mais pura evidência da natureza humana – e aparecem os raros casos de pessoas que aproveitam a dita plataforma para revelar o seu melhor (que, por vezes, é mesmo bom ou muito bom). Não significa isto que estas últimas também não possuam o seu lado primitivo, mas são dotadas do condão de o ter domesticado e lhe haverem sobreposto aquele quid que o transcende e que muitos – felizes deles! – acreditam poder vir a conformar o futuro da Humanidade.

Eu, infelizmente, não acredito. Tenho para mim que a natureza (pelo menos, a humana) é perversa, radica num fundamento mau e, por isso, não obstante os esforços de superação de muitos (vá lá, de alguns), sempre será a matriz rudimentar, instintiva, a prevalecer. Assim o demonstra a evolução da Humanidade, não?

Todavia, talvez por questão de auto-defesa, esta convicção não me deixa acabrunhada (melhor seria dizer, já não...). Antes sou levada a tirar partido da idiotice que encontro espalhada por aí (a minha incluída), concretamente no FB, que é disso que estou a falar.

Afigura-se-me legítimo explicar como: ajuda-me sentir verdadeiro fascínio (de ordem intelectual, entenda-se, sobretudo do domínio da metafísica e do humor) pela bizarria e mesquinhez de certas manifestações da natureza humana (sendo certo, por outro lado, que, no FB – et voilà! um efeito deste... – me sinto totalmente blindada contra essas realidades, v.g., tomando sempre com distanciamento e humor as raras ocasiões em que alguém se me dirige em termos menos correctos). Por isso – quando não posso assistir a um espectáculo de stand-up comedy, ouvir o #RicardoAraújoPereira ou o #BrunoNogueira, ver a página do #HugoVanderDing, ou, por último mas não menos importante, rir-me de mim própria –, uma das minhas fontes de divertimento consiste em ler comentários a notícias publicadas no FB (quem nunca se divertiu com os abismos de ignorância, maldade e estupidez que por lá pairam, meditando, ao mesmo tempo, sobre as profundezas da mente humana, que atire a primeira pedra!). Por vezes, a necessidade de aprofundar, por assim dizer, leva-me a consultar o perfil do comentador idiota...

Aqui chegada, considero ter-me já excedido a propósito de um tema que muito me atrai e sobre o qual gostaria de ter preparação, tempo, persistência e disciplina, para produzir um ensaio: O Estranho Mundo do FB ou Nem Tanto, assim poderia intitular-se. 

Trata-se, contudo, de mero intróito contextualizador do que aqui me traz e enunciei em título: MORTE NO FACEBOOK!

É Isto: há dias, precisamente consultando – para os assinalados efeitos, meramente intelectuais, de gozo e reflexão – o perfil dum comentador idiota ou muito idiota, acabei por ir parar à página duma senhora, a senhora X, digamos, que continha o seguinte post:

(Naturalmente, ocultei fotografia e nome)


... post este, que, consoante se vê, rendeu 267 reacções, (algumas de likes, coisa que não deixou de me surpreender...) 98 comentários (muitos RIP ou DEP, claro) e (apenas) 14 partilhas.

Qual é o mal, perguntarão? Não há mal nenhum, só que a autora do post, salva seja (digo eu), era a própria falecida!!!

Portando, das duas uma: ou a senhora se suicidou ou fez eutanasiar, a hora certa, e tinha o funeral pré-contratado, pelo que pôde, com antecedência precisa, anunciar o evento; ou, já post mortem, acedeu, por forma que desconheço, ao FB (duvido! Até ver ou me aparecer algum, só acredito em mortos-vivos no cinema); ou – sim, há uma terceira hipótese – deixou o encargo do anúncio a um ente vivo que escreveu em seu nome, mas como se fosse ela.

Em qualquer das hipóteses, o que importa realçar é que a falecida revelou ser extremamente organizada e dotada para o marketing e publicidade, pois, convenhamos, não é qualquer um que consegue imaginar semelhante convocatória para uma despedida deste tipo, numa Igreja e, mais importante, sem anúncio de cocktail de boas-vindas (ou idas, já agora!) ou qualquer outro atractivo ou conforto. 

Mas a senhora revelou, ainda (e para além de muito mais), certa tendência para o drama e especial necessidade de atenção para um momento em que, quanto a mim, a atenção é muito (para não dizer completamente) dispensável – sim, que interessa a comparência da família e amigos, quando estamos para ali esticados, todos ataviados de rigor mortis, com os queixos colados para não descaírem e as mãos pousadas sobre o estômago como quem aconchega a última (in)digestão? Ignoro! Não consigo imaginar!

Tenho para mim que o meu funeral – se chegar a haver! – vai ser o menos concorrido de que há memória, facto que, em vez de me entristecer, me diverte sumamente. Todavia, para efeitos de FB, talvez pense em deixar uma despedida – sem carácter de convocatória, a modos de simples epitáfio –, só para que os meus meia dúzia de amigos do FB parem de se perguntar por que  razão deixaram de ver as minhas maravilhosas publicações, como esta (ahahahahah).

Será qualquer coisa deveras simples, do género:

Olhem, fui ali e já não volto!

Olhem, passei há dias pelo crematório, o que me deixou muito feliz, porque, finalmente, venci a luta contra as calorias!

Olhem lá, seus lamechas, porque é que agora desataram todos a pôr likes, carinhas desconsoladas e corações e a escrever RIPs ou DEPs no meu perfil? Era bonito era se tivesse sido antes, mesmo os RIPs/DEPs, sim! – afinal que pode haver de melhor do que uma pessoa descansar em paz, estando viva?! Só se for comer chocolate!

Bem, podia ir por aqui fora, mas, quem chegou até aqui (Parabéns, gente cheia de valentia, bom gosto e, sobretudo, paciência!), talvez já esteja um bocado farto e em modo desistência.

Fiquem bem! – ou será RIP ou DEP?! Vá lá, estava só a brincar, não se deixem impressionar.

P.S.: Meticulosa como sou, ainda voltei à página da falecida, para ver se ela tinha voltado para agradecer aos que compareceram ao funeral ou protestar contra eventuais faltosos. Não encontrei.









quinta-feira, 1 de agosto de 2019

CREPÚSCULO


franjas da noite escorregam devagar
anjos doces dão as mãos, esvoaçam para longe
cânticos de pássaros bicam-me o coração

franjas da noite agigantam-se sobre as copas das árvores
sombras desenham-se, escuras
anjos etéreos de mãos dadas perderam-se no longe

espalha-se um sossego milenar

paz tornada possível
como se a guerra não fosse deste mundo
e os homens não padecessem da natureza humana

crianças aquietam-se em seus berços curvos
ondulam em sonhos inéditos
a lua ainda não é plenamente
o sol esvaiu-se

nem uivo de lobos
nem praguejar de sapos

tudo é silêncio
remoto silêncio 

os mortos sossegam seus restos de nada 
e os vivos talvez tenham morrido


essa é a hora









sábado, 20 de julho de 2019

CONTRASTES SILENCIOSOS


no princípio era fim de tarde
devagar fez-se noite
escureceram os brancos
afundaram-se os negros
contrastes silenciosos
barcos adormecidos












terça-feira, 16 de julho de 2019

AO CUIDADO DO DR. CENTENO


Entretanto, numa qualquer Repartição de Finanças, em Lisboa...

Chego às 13,50H, dirijo-me ao distribuidor de senhas. Esgotadas!

Explico a uma funcionária que venho em cumprimento duma notificação motivada por divergências na declaração de IRS e que, não obstante a inexistência de senhas, tenho mesmo de ser atendida, pois estou doente e vim da cama para aqui, de propósito (argumento que se me afigurou mais cauteloso e eficaz do que o verdadeiro, ou seja, que me parece inadmissível o cancelamento de senhas a mais de duas  horas do encerramento dum serviço...)

Indiferente, a funcionária encaminha-me para os colegas do IRS. 

Repito a cena, com o ar mais sofredor de que sou capaz (sempre ajudado pela minha proverbial brancura láctea), na esperança de induzir alguma compaixão — que, em certas circunstâncias, funciona melhor do que o apelo à justiça e aos direitos.

A funcionária, gelada como um bloco de granito e mais mal encarada do que uma bosta de vaca, responde-me que não há senhas e que, se quiser, vá falar com a chefe, que está ali ao lado.

Assim faço, aliás com o ar mais cândido e desamparado que consigo simular!

Visto estar a atender, espero que fique livre. Terminado o atendimento e apesar de bem me ter visto, mergulha as trombas não sei em quê, até que, delicadamente, a interpelo. Dirige-me um olhar que transcende o gelo da colega. Mais parece um cão raivoso, no caso, uma cadela. A surpresa (genuína) transparece no meu olhar: não vislumbro motivo para merecer um tal atendidmento, por parte de uma criatura que está ali para me prestar um serviço, cujo custo, incluído o vencimento dela, é suportado por mim e pelos demais contribuintes — meaning, quando sou simultaneamente sua cliente e patroa.

O meu olhar deve ter sido tão transparente que, mesmo sem dizer nada, entende por bem justificar-se: "É que eu não chamei ninguém”. Pudera, mesmo que tivesse chamado, não seria a mim, que não tenho senha... 

Debito a minha história pela terceira vez.

Retoma o ar agressivo para me dizer que podia ter tratado o caso no portal das finanças e que não posso pretender passar à frente dos outros. Explico-lhe que não quero passar à frente de ninguém, quero apenas ser atendida, manifestando, aliás, estranheza por já não haver senhas. Diz-me, altiva e arrogante, que as senhas já esgotaram há muito tempo!

Embora cheia de vontade de a mandar à merda ou para pior, limito-me a pedir o livro de reclamações. Diz-me, então, que, se quiser, posso esperar para ser atendida no fim de todos... sem senha... se houver tempo! Insisto no pedido do livro de reclamações!

Nesta altura, um homem aproxima-se e disponibiliza-me uma senha. Agradeço. Meio aparvalhada, ainda lhe pergunto se não lhe faz falta (como se este mundo estivesse povoado de bons samaritanos!). Responde-me que não e mostra-me outra senha... para o mesmo serviço. 

Acho estranho, mas não ouso fazer perguntas. Todavia, ocorrem-em: porque haverá uma pessoa de ter mais do que uma senha para o mesmo serviço, quando há pessoas sem senhas? Será que há um serviço de tráfico de senhas?  

A funcionária diz-me que posso usar a senha oferecida pelo homem (pudera não!!!), mas não lhe coloca a questão, óbvia, que me ocorreu.

Ao contrário do que é meu hábito, não insisto no pedido do livro de reclamações. Ponho-me, furiosamente, a escrever estas linhas, no iPhone (o que não dá jeito nenhum, mas serve para desabafar). 

Quando, finalmente, sou atendida, a funcionária demonstra uma santa ignorância, deixando-me plantada por duas vezes, enquanto vai não sei onde tirar dúvidas. Até que chega e me devolve os documentos que levei, com a simples frase, "já não preciso disso", com o que pretendia significar que a questão estava resolvida...

Vim dali a interrogar-me, em modo de lamento: porque será que alguns serviços públicos continuam a funcionar tão mal?!

Apenas um parêntesis para referir, em abono da verdade, que o serviço de apoio telefónico das Finanças (associado ao respectivo Portal) funciona bem melhor, quer em termos de educação quer em termos de competência dos funcionários, pelo menos os que me têm calhado!







sexta-feira, 12 de julho de 2019

ALGUÉM DISSE F***- SE?



Chego quase às 16H. Uma aragem fresca corta agradavelmente a elevada temperatura. Nem parece que acabei de sair de um forno, Lisboa, ontem. Pago a cadeira e o guarda-sol, dispo o vestido, estico a toalha e estico-me sobre ela, disposta a gozar do que resta (e ainda é muito) duma bela tarde de praia. O mar espraia-se lá longe, em cintilações distantes, como quem quer partir. Sei que não é o caso e isso conforta-me. Amo o mar. E o céu azul, lá em cima, onde se espraiam os meus olhos, em cintilações admirativas e gratas. Que boa aragem, diz o meu corpo, a preparar-se para descontrair, entregar-se, dormir. Adoro dormir na praia. Por vezes, acordo com um leve estremeção, olho em redor. Tudo calmo.

Não é o caso, agora. Os meus ouvidos distraem-se do murmúrio longínquo do mar — como é bom o murmúrio do mar e, já agora, o do vento, sobretudo se filtrado pela folhagem das árvores! A realidade exige-me, impõe-se-me. Um pouco a sul, passam as vozes de dois rapazes, a expulsar pela boca c******* e f**** - se. Um pouco mais tarde, sou forçada a reparar que não foram longe. Dirigiam-se ao grupo estacionado ali mesmo adiante, logo a seguir à corda que separa a zona de guarda-sóis da areia restante. São muitos, adolescentes, corpos morenos, já de muita praia, as raparigas de cabelos compridos, eles de calções pelo joelho ou quase. Como é próprio da idade, falam e riem alto, pelo meio cospem palavrões. Bebem cerveja, que tiram de garrafas grandes, da lancheira-frigorífico. Assaltam o homem das bolas-de-berlim. Um deles é o rapaz do dinheiro, não se apercebe que lhe vem daí a popularidade.

F***- se, penso, perante a ameaça de destruição da tarde de descanso. 

Talvez a noroeste — nem me viro para comprovar —, também alto e bom som, uma voz jovem de mulher profere aí uns três palavrões, numa frase de umas cinco palavras: m****, f***- se (sempre o f***- se a marcar presença, como se vivêssemos dentro dum filme americano) e outro qualquer, já nem sei qual e não vale a pena inventar.

Vejo a minha vida, quer dizer, a tarde ou as expectativas criadas a respeito, a andar para trás. Lá se vai o descanso e, sobretudo, o sono. Faço um esforço por abstrair, mas é impossível.

F***- se, F***- se, F***- se, exaspero-me.

Olho para o lado de lá e vislumbro uma cadeira a vagar. Levanto-me, arrasto a tralha — toalha, saco leve e chinelas, não é grande coisa, ando na tentativa de reduzir a vida ao mínimo de tralhas e ao máximo de conforto — e instalo-me longe da multidão. Por assim dizer, que a praia está cheia de gente, mas, aparentemente, aqui não há grupos barulhentos ao alcance das pontas dos dedos dos pés. Bem, uma mãe segura um filho ao colo, o miúdo dá uns guinchos estranhos, começo a sentir-me incomodada. Tudo muda quando solta umas gargalhadas límpidas e coloridas. É tão belo e reconfortante o riso das crianças! Lembro-me do riso da Inês, quando criança. Penso: é o som mais belo que alguma vez ouvi! Agora tem dezasseis anos. Hei-de reparar em como são as suas gargalhadas, agora, embora não sejam iguais às desse tempo!

O sossego (relativo) começa a instalar-se.

Eis que chega a potente voz de uma mulher de meia idade. Dirige-se à amiga, deitada numa cadeira perto da minha, e interjecciona: «Eia, isso é que é descanso, aí a dormir!!!» Se fosse comigo, perdia a amizade nesse momento! Então vê que a amiga está a descansar e acorda-a daquela maneira?! A acordada é de bom feitio e recebe-a bem. Para mal dos meus pecados. Começam a falar alegremente, alto e bom som, a recém chegada. Atenção, só os meus ouvidos deram por tão tristes cenas. Os olhos e o resto procuram abstrair-se.

Descobri esta praia há cerca de dez anos. Era maravilhosamente quase deserta. De há uns anos para cá tem vindo a encher, a encher, e agora é isto. Não que tenha algo contra pessoas (embora, em geral, também não tenha grande coisa a favor). Também nada tenho contra palavrões, eu própria os uso, talvez com frequência superior à devida, mas, dentro do meu universo privado, sobretudo por razões estéticas. Valerá a pena dizer que, a dada altura em que a minha vida andava completamente f*****, não havia plano que se aproveitasse, fosse pessoal, profissional, familiar, social ou outro, ganhei o hábito de desabafar com recurso a palavrões. Uma espécie de rap da desgraça. Era assim: chegada a casa, fechada a porta, a cabeça completamente à mercê dos acontecimentos, expressava as frustrações e desatinos nuns valentes e desatinados, f***- segrandessíssimo f*****- da- p*** e outras pérolas do vernáculo, sobretudo a primeira. A coisa estava a assumir um tal carácter de habituação que resolvi parar, com receio de me deparar com algum f****- da - p*** — e deparei-me com muitos, podem crer —, numa reunião e, por força do hábito, deixar escapar um hipotético, vá à m****, f***- se, vá pró c****** ou vá levar… bem, creio que já deixei o meu ponto de vista bem explicado!

Dito isto, o que me incomoda não são os palavrões, em si, mas levar com eles fora de contexto, sem ter nada a ver com a conversa. E o que me incomoda ainda mais, mesmo, é ter de suportar conversas alheias. Não me interessam e o zum-zum impede-me de descontrair, descansar e dormir. E é (também) para isso que vou à praia e pago para ficar bem instalada!

Só para dizer, às duas amigas barulhentas (afinal, vim a constatar serem três) ainda vieram juntar-se dois maridos e dois filhos, estes, rapazinhos adolescentes bem comportados. Passaram o resto da tarde a contar histórias ou tangas. Já tendo desistido do almejado descanso, dignei-me ouvir esta: dado tipo, obviamente cognominado de palerma ou otário, levou de férias (assumindo a correspondente despesa) a mulher, a ex-mulher, o marido desta e os filhos que teve com ambas. E o amante da mulher. Não, esta última parte inventei.

Compreendem, agora, o meu desejo de vir a possuir uma praia privativa, ou, em alternativa, que os outros (mas todos, por favor!) possuam praias privativas, deixando a pública só para mim?

Isto para concluir que a praia de S. João (Costa da Caparica, Lisboa, Portugal) já não é o que era! 

F***- SE!