quarta-feira, 8 de maio de 2019

COM O NOME GRAVADO A X-ATO


Nem todos os livros são dedicados. Este, sim: Para a Margarida, minha flor, amor da minha vida. Dedicatória pirosa, pode dizer-se, mas era assim. Aliás, é assim, pois o livro continua a luzir em tudo quanto é estante de livraria e plataforma virtual, para quem o quiser ler. E são muitos, desde o início, mas especialmente a partir do momento em que um leitor atento, por acaso (ou talvez não) jornalista, pousou olhos perspicazes e inquisitivos na dedicatória e reparou em certa coincidência, aliás bem gritante. Daí a questionar-se foi um pulo, por alguma razão era jornalista.

Dois anos antes, Afonso Coutinho escreveu um romance. Não um romance qualquer, um thriller poderoso, daqueles que deixam os leitores de língua de fora, ofegantes e salivantes na expectativa do próximo parágrafo, da próxima frase, da próxima palavra, numa ânsia de descoberta, que não passa de necessidade visceral (e inconfessada) de sangue e mistério, de pavor e violência, vontade de atulhar aquele buraco sem fundo à vista que a natureza original, a criação ou seja lá o que for cavou e deixou exposto, mas a moral insiste em não permitir encher ou sequer explorar. 

Escreveu-o com a adrenalina ao rés da boca e da ponta dos dedos, quase a babar-se de prazer, como que espicaçado pela ideia de martírio e vingança e excitado com a concretização dum inimaginável martírio e duma vingança quente, embora executada a frio. E era tamanha a violência envolvida na ideia e no acto que só a realidade poderia superá-la. Quer dizer, o livro impunha-se, convencia, conquistava. Mais, era de molde a provocar retracção das entranhas - ou aquilo a que Vladimir Nabokov aludia como arrepio na coluna - e, no limite, a criar dependência. Em suma, atrairia leitores como mel a moscas.

A primeira Editora que abocanhou o manuscrito já não o largou. Aquilo prometia tornar-se numa mina de ouro. E assim sucedeu. O livro vendeu-se que nem pipocas - e não, descansem que não iria dizer como pãezinhos frescos, expressão tão déja vue (ou déja entendu) ou, para usar um cliché, tão clichê/lugar comum - num qualquer cinema UCI ou Lusomundo. 

O livro, de estilo cuidado e linear e ritmo trepidante, contava uma história de amor e morte. Não existem temas mais banais, poderá dizer-se, e é verdade. Mas não o é menos que todos os grandes temas são banais. Na melhor das hipóteses, tornaram-se banais. Acontece que Afonso Coutinho os abordou com enorme mestria, extrema originalidade e particular violência. E, como convém, o horror marcava logo a abertura, o incipitRezava assim:

O vídeo explodiu no YouTube com estrondo e tingido de vermelho, um vermelho sanguíneo a desdobrar-se como fitas de néon alumiando a mais escura das noites. O corpo deixara de o ser, membros seccionados à altura das axilas e das virilhas, dispostos em forma de cruz, perna seguida de braço, braço seguido de perna. Sobre as mãos, abertas, repousavam os globos oculares, muito escancarados. Pareciam de vidro, mas não eram. Ali ao lado, ele, corpo vivo, agitado num espasmo orgástico, segurava o restante, o tronco, encaixado nas suas pernas nuas, abertas e cobertas de sangue. Não se ouvia outro som, excepto o do seu brado animalesco. O corpo desmembrado tinha sido dela, Margarida, sua flor, amor da sua vida. O outro, corpo vivo, de face tapada, ignorava-se a quem pertencia. Só mais isto, os lábios dela, da que tinha sido Margarida, repousavam ao lado, exibindo um esgar que tanto podia indiciar pavor como gozo, talvez ambos… em momentos diferentes.

O jornalista leu-o sob uma náusea permanente, mas não foi imune à curiosidade, um crescendo de curiosidade. Em sua opinião, o livro estava muito bem escrito, a história era viciante, mas havia mais qualquer coisa, uma inquietação despertada pela suspeita de que por trás da ficção se escondia a realidade. Afinal, não estava tão na moda a mania das autobiografias ficcionadas ou das pseudoficções encapotando autobiografias? E havia ali uma paixão tal que se afigurava impossível tamanho grau de violência emanar apenas da imaginação.

Pôs-se a espiolhar todos os bocadinhos do livro à procura de mais, mais informação: quem era aquele autor, de onde surgira, que história carregava? Bem vistas as coisas, nunca antes se tinha ouvido falar dele. A digressão pela capa, contra-capa, badanas e páginas inicias do livro conduziu-o a uma descoberta inusual: inexistia nota biográfica relativa ao autor. Todavia, mal reparou na dedicatória, precipitou-se para o incipit. Lá estava, em ambos os lados: Margarida, minha flor, amor da minha vida; Margarida, sua flor, amor da sua vida. Um baque espantou-lhe o coração, uma nuvem negra atravessou-lhe a mente, Será que ninguém reparou nisto!, interrogou-se, perplexo e inquieto.

Contactou a Editora, pesquisou na Internet, indagou aqui e ali, por tudo quanto era susceptível de facultar respostas. Em vão: Afonso Coutinho não passava de pseudónimo, inexistindo a mais mínima pista sobre a identidade real do escritor.

A inquietação do jornalista aumentou. A curiosidade tornou-se-lhe indomável, não parava de se repetir: Ignoro como, mas hei de descobri-lo, nem que faça disso a missão da minha vida.

Passados uns dias de agitação, descortinou uma maneira: pôs-se a pesquisar os registos policiais e jornalísticos, à cata de mulheres assassinadas com um modus operandi idêntico ao descrito no livro. 

Ao fim de aturado trabalho e muita frustração, descobriu que havia um considerável número de mulheres de nome Margarida desaparecidas ou encontradas mortas, vítimas de homicídio, mas só lá para o décimo quinto ano anterior ao da publicação do livro deparou com o caso de certa mulher cujo corpo havia sido encontrado em circunstâncias coreográficas idênticas às descritas naquele macabro incipit. As únicas diferenças consistiam na ausência do assassino - ainda por identificar, como, aliás, já calculava - e no facto de ela ter o nome, Margarida, gravado a x-ato sobre o peito. De resto, permanecia por descobrir a sua identidade, tarefa dificultada por apresentar as pontas dos dedos queimadas e os dentes arrancados, horrores a acrescer aos descritos no livro.
O jornalista suspirou de alívio. E de inquietação…

Daí para a frente, dedicou a vida, exclusivamente, à tarefa de descobrir aquele autor fantasma.
Começou por lançar um desafio, amplamente divulgado em tudo quanto eram redes sociais. Rezava, apenas, isto: 

Afonso Coutinho, não te escondas mais, conta-nos tudo: onde jaz Margarida, tua flor, amor da tua vida?

Não tardou a ser contactado.

Entusiasmava-o a ideia de que o seu livro haveria de causar um estrondo maior do que aquele Com os Olhos nas Mãos, o thriller de Afonso Coutinho. O seu iria chamar-se, Nunca Escrevas uma Dedicatória.

Caso viesse a ver a luz do dia…



Notas: A ideia para este conto surgiu-me de um thriller fantástico, que li há pouco tempo. Trata-se de «O DIA EM QUE PERDEMOS A CABEÇA», romance de lançamento de Javier Castillo. Concretamente, reparei que o livro é dedicado «À minha tudo, pela qual daria a minha vida inteira, pela qual faria qualquer coisa» e que, logo no início, ao referir-se àquela que, por essa altura, se julga ser sua vítima, o protagonista usa uma expressão semelhante, minha mais que tudo, in pp. 12.

A citação de Vladimir Nabokov foi retirada do seu livro «OPINIÕES FORTES».






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