sábado, 18 de maio de 2019

SEDUÇÃO


Praia em Maio, calor fora de tempo, a passar dos 30 graus.

Alonga-se sobre o pano largo e fresco, imenso como toalha de mesa de gigantes. Estão na moda, esses panos. A barriga, quase inexistente, afunda-se entre o triângulo formado pelo osso púbico e aqueles dois outros laterais, não me lembro agora como se chamam nem estou para ir googlar sobre o assunto, toda a gente sabe do que falo. As pernas e os braços estendem-se num comprimento e estreiteza de top model. O cabelo, longo e castanho claro, esvoaça ao sabor da brisa breve que atenua os rigores da temperatura. A pele brilha, sedosa, embrulhada em protector solar. O peito sobressai num tamanho superior ao indicado pelas demais medidas, mas é mesmo assim, de natureza, não por efeito de silicone ou outra treta qualquer. Nada que a perturbe ou prejudique, antes pelo contrário. Sente-se confortável nas suas medidas. Por acréscimo, não é a única a gostar.

Espreguiça-se sobre uma clássica toalha de praia azul escura, com um desenho qualquer em cinzento, nada de exuberante. Também ele se prolonga por uma altura para lá da norma. O corpo desenha-se-lhe músculo a músculo, exibindo uns abdominais tipo tablete de chocolate.

Para além do mar, em frente, da areia, por toda a parte, do céu lá em cima e das gaivotas que por lá passeiam, pouco há para ver. A praia está quase vazia, não admira, ainda não chegou o Verão e é dia de semana.

Em mais uma volta na toalha, para distribuir a quentura e a cor do sol, ele vê-a, ali ao lado, nem muito perto nem muito longe. Não consegue desviar os olhos, os mesmos que não deram pela sua chegada, ou porque estavam virados para o outro lado ou porque se tinham deixado adormecer. Ajeita os óculos de sol, de lentes verdes escuras e passa uma mão descontraída pelo cabelo, castanho escuro, enrolado em caracóis ligeiros e descuidados.

Também ela dá uma volta, é lei da praia bem distribuir a quentura e a cor do sol. Parece distraída. Ou faz-se distraída, vai dar ao mesmo. Soergue o corpo longo e esguio e coloca uma mão em pala sobre os olhos, lânguidos, fixados no longe, questão de medir distâncias. Acaba por se levantar. Em movimento lento e elegante, o peito a sobressair, orgulhoso, talvez mesmo atrevido, do fato de banho preto, caminha em direcção ao mar. Experimenta a água com um pé, questão de medir temperaturas.

Também ele se levantou. A uma distância prudente, nem demasiado grande nem demasiado pequena, acompanhou-a. Agora está ali, muito perto, a adentrar-se na água, quase a seu lado. 

Ao contacto da água, ela estremece, dá um pequeno salto para trás, furtivo, quase pirueta de ballet. Ele diz, «Está fria.» e, mal lhe vê o sorriso despontar nos olhos caramelo, acrescenta, um pouco estouvado, «A água, quer dizer, a água está fria, também não admira, ainda só estamos em Maio». Ela continua a sorrir, o que o faz sentir-se feliz e entusiasmado. Agora não tem dúvidas de que, finalmente, ela deu por ele. Nem imagina há quanto tempo isso já sucedera, ela a reparar nele, pelo canto do olho, defendida pela cumplicidade das lentes anti-reflexo.

Acabam por vencer a resistência ao frio - ou talvez se tornem imunes ao frio - e adentram-se no mar. Quando saem, cobertos de sal e sol, vêm a falar, ele mais do que ela, juntando às palavras gestos. Enquanto ela se senta no seu grande pano de praia ou lá como é que aquilo se chama, ele vai buscar a toalha. Ficam a uma proximidade de estender uma mão ou um pé e tocarem-se na pele. Não digo que se toquem na pele. Ao menos nesse dia. Mas que sei eu!

Maio continua com sol aberto e temperaturas elevadas, extemporâneas. A praia não saiu do sítio. A temperatura da água do mar é irrelevante. A toalha dele desapareceu. Usam apenas o grande pano tipo toalha de mesa de gigante. Dá bem para os dois e até sobra. Agora vivem pele com pele. 

Chega Junho e Julho e Agosto e por aí fora até um novo Maio. Regressam sempre em Maio, coisa de quem festeja, de quem gosta de anotar datas e festejar. Ele transporta o saco com o pano grande e os protectores e as demais tralhas. Ainda fica com uma mão livre para lhe passar pelo ombro nú, para lhe acariciar o ombro nú. Ambas as mãos dela ficam livres. Gosta de lhe despentear os caracóis, de lhe passear os dedos pelos lábios carnudos. E sorriem, sorriem sempre, como naquele primeiro Maio de mais de 30 graus e brisa fresca de despentear cabelos.

Não partilham apenas o pano de praia. Também a casa e, sobretudo, partilham-se. Estão felizes. É claro que falo em geral, dos pormenores do dia-a-dia sabem eles.

De repente, um dia, uma dor ou outro sintoma qualquer. Médicos chamados a pronunciar-se. Mau prognóstico, cumprido em menos de seis meses. Ela.

Agora posso dizer que ele está infeliz, muito infeliz mesmo, inclusive nos pormenores do dia-a-dia. Tudo lhe parece ter perdido o sentido. Abre o armário da roupa e fica especado a olhar, fixamente, como se ela pudesse saltar de dentro dum vestido um dum par de jeans. Encontra o pano de praia grande numa gaveta. Segura-o com força, quase o rasgando de dor e desespero. Leva-o para a cama, cheira-o e cobre-se com ele.

Chega um novo Maio. Vai à praia, aquela praia. Estende o pano grande na areia, mas não se deita nele. Dirige-se decididamente para o mar. Já com a água gelada pela cintura, olha para trás, para o pano, talvez com a esperança de a ver a acenar-lhe um adeus ou, quiçá, a levantar-se e vir ter com ele. O pano desapareceu, talvez levado pelo vento agreste, que este Maio não está como os outros. Prossegue. 

Não há vivalma na praia, excepto um passeante solitário. Observa. Aflige-se. Acena. Chama. Não se atira ao mar, que o mar está bravo e, além disso, não sabe nadar. Liga para o 112. Passada meia hora ouve-se uma sirene. O som aproxima-se. Extingue-se.

O corpo deu à costa dois dias depois.

Deixo passar um tempo, para aqui às voltas, e digo para comigo, irritada, «Agora é que a arranjaste bonita! Mataste as personagens, primeiro ela, depois ele! E agora, como vais fazer para prosseguir? Sem personagens não há história, segreda-te a voz da razão. Querias continuar, não os tivesses matado! É no que dá armares-te em deusa, criar e matar gente. Ainda por cima, cedeste a uma love story, para acabares mais depressa. Nesta escolha estiveste bem, toda a gente sabe que, a existirem, as love stories nunca duram muito.»

É Maio, meio de Maio, calor excessivo, extemporâneo, aí uns trinta graus, mais coisa menos coisa. Praia, estou na praia. Estico-me sobre a toalha. Acabei de passar protector solar pelo corpo. A preguiça inunda-me. Viro-me dum lado para o outro, a espaços, para repartir o calor e a cor do sol por cada centímetro de pele. Numa das voltas olho para o lado. Depois, levanto-me devagar e encaminho-me para a água, questão de medir temperaturas... 





Sem comentários:

Enviar um comentário