tag:blogger.com,1999:blog-44131895765365633602024-03-04T19:30:52.702+00:00ORA BLOGO, ORA NÃObluegirlhttp://www.blogger.com/profile/12724222872733597872noreply@blogger.comBlogger536125tag:blogger.com,1999:blog-4413189576536563360.post-21910310359701533412024-03-04T18:54:00.001+00:002024-03-04T19:18:29.932+00:00MARIA NINGUÉM (2): TRAÍDA POR TROPEÇÕES <p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">conforme desabafei no relato anterior, após a segunda queda, <i>ouvi uma chiadeira de travões e não recordo mais nada</i>. acontece que chamaram o INEM, não que me tivesse apercebido, só acordei na barriga da ambulância, por sinal, bem estranha, uma cara (ou seriam duas?) debruçada sobre mim a medir-me ou apalpar-me não sei o quê, fios pendurados de tubos espaciais e máquinas uivantes. senti-me conduzida ao ventre da minha mãe, como se alguma vez tivesse conservado memória de por lá ter balançado os meses do costume, talvez menos, creio haver sido expulsa em modo prematura. desse local, evoluí para recordações outras, não pelo seu mérito, apenas por razão e fundamento do meu caminho pela vida:</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">lá em casa, éramos menos que muitos, apenas três. caso a minha mãe não tivesse morrido logo depois de me abandonar ao mundo (e talvez por isso – nunca ninguém se dignou informar-me), havíamos de somar muito para cima desse número, que eu bem via como se povoavam de múltiplos seres as casas da vizinhança, bairro malcheiroso e barulhento onde passei os primeiros anos desta minha existência. a avó, mãe de meu pai, este e eu, três gafanhotos a tropeçar na escuridão daquele tugúrio que, de vantagem em relação aos dos vizinhos, só possuía a de ser maior, não por dispor de mais espaço, antes devido à redução de ocupantes. mesmo assim, tropeçávamos uns nos outros. certas vezes, era a mão do meu pai que tropeçava na minha cara, quem diz cara, diz rabo ou diz cabeça, braço ou onde calhasse. outras vezes, era a garrafa, já tão menos de metade que até fazia sede, a tropeçar no gargalo dele, do pai. a avó só tropeçava de olhos, batiam na minha figura ou na do outro e estremeciam, não sei se de pena, desgosto, indignação, desdém ou de que porra. era muito curta de idade para saber interpretar sinais, de resto não possuía estudos de psicologia, nem de psicologia, nem de quase nada, que aquilo da escola primária exigia motivação e a minha era só uma, divagar.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">sempre me perdi e continuo a perder-me por divagar, divagar por realidades várias, e não pensem que não incluem livros, que, se não são livros lidos, são livros pensados e costurados por mim, com princípio, meio e fim, embora nem sempre contenham uma história ao gosto de toda a gente – a bem dizer, nem toda nem nenhuma, pois ninguém os lê. mas eu aprendi a ler, fiz até muita questão nisso, nisso e na geografia, ai!, como eu gostava de percorrer o globo terrestre com os meus pequenos dedos encardidos, unhas negras de desafiar a terra e as cascas das árvores e tudo o que me despertasse a curiosidade de saber o que se passava lá por baixo, lá por dentro. ainda bem que não dispunha de tesouras ou facas ao alcance da mão, nisso (e não só) a minha avó mostrou-se deveras cuidadosa, talvez visse para além da realidade aparente, talvez fosse essa a função do tropeçar dos seus olhos vagabundos. ah!, o que quero dizer, é que, caso tivesse esse tipo de instrumentos à mão, talvez experimentasse num gato ou num cão da vizinhança, não por maldade de ferir ou de matar, apenas por sede de conhecimento. eu tinha de saber por experiência, motivo por que a escola não se me deu muito bem.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">também, ainda que desse, não teria mudado nada, pois o meu pai, nem dez anos ainda eu alcançara, pensou, deliberou e executou, pegou em mim e vendeu-me em contrabando, melhor, alugou-me, por uma quantia mensal mais o ganho de se ver livre de mim. nessa altura, quando parti, o tropeço dos olhos da avó caiu para dentro dos meus e fiquei com a impressão de que uma parte deles me rolou para dentro, onde permaneceu até à eternidade, que é onde ela já habita há uns anos, desde o enfarte fulminante, posto que a minha memória se encarrega de zelar por isso. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">quanto ao outro, o meu pai, foi uma cirrose – desengane-se quem estava à espera de algo mais original – que o levou para os infernos onde se cruzam garrafas e chapadas, mulheres perdidas em partos prematuros e filhas menores alugadas por dez réis de mel coado, como dizia a avó, que esteja bem, lá onde a observo – fazendo de conta que habita algum lugar para lá do meu interior, onde a guardo como o lobo mau guardou a avó da capuchinho vermelho, mas, obviamente, com diversa motivação e contexto. ele, o meu pai, okay, estou para aqui a falar nele, mas isso não significa eternidade, esta acontece quando (enquanto) a memória guarda, zela e cuida. quanto a ele, a memória é mero pretexto para mais um destes livros, no caso, mero folheto, construído do nada. ah, pois, o facto de lerem isto não equivale a verdade, quem vos disse que não se trata, apenas, do cruzamento de palavras a passar-me – a passar-vos – pelos neurónios?</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">de resto, a minha infância, não posso dizer que tenha sido infeliz ou feliz, não por falta de recordações, mas porque as infâncias não são tempo nem lugar de análise aprofundada e valorativa dos acontecidos: estes vivem-se e é tudo – tudo, tudo, não digo, pois o que acontece, acontecido está, integra-se, entranha-se e não há maneira de desacontecer. mais ou menos como o amor, só mais ou menos, porque este, bem vistas as coisas, pode acabar por desacontecer, basta pensar que a dor, uma grande dor, pode bem matar um amor, mesmo um amor enorme (ou não?).</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">já agora, só para esclarecer e evitar confusões – estou mesmo a ver que já me imagináveis jovem prostituta –, aqueles onde o meu pai me pôs de alugada eram uma família de velhos, velhos abandonados como convém, que os novos andam muito entretidos a esquecer que um dia – com sorte ou azar, consoante – também serão velhos. eram uma família de um homem e uma mulher, casados. apesar de muito ricos, tratavam-me bem e não queriam que passasse fome, metia-lhes impressão a minha caixa de ossos e o rosto esquálido. mas depois morreram e eu, bem, tive de ficar por minha conta, mas, a bem dizer, até aí, também tinha estado mais ou menos por minha conta, apenas que menos alimentada e com os olhos da minha avó, enquanto existiram, a tropeçar, atentamente, nos meus.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">só muito mais tarde fui parar àquela outra casa onde, certo dia, me esparramei pelas escadas abaixo. casa, é modo de dizer, aquilo era um casarão, mais parecia um castelo... do Drácula. </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiAgGqnd-_IqCwk2iPpzm41adiMpgSlqf1-8vHJAW9ouxVezugYZOEjGEYvZOEXNBm9S_NiDcIQ1thf7WV9FnMRp4KEdx_1qEj0wXiqzyoqWCS-PB9MyYJmoW932-6gn5x5FMbz2f8W_pzPH_QWbEra7g123oIYJMU_TNTcdFCOvbBufXYm1ggfjEKeuR4/s1021/51D67839-6277-4795-833A-D1902E0C9211_1_105_c.jpeg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><img border="0" data-original-height="1021" data-original-width="770" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiAgGqnd-_IqCwk2iPpzm41adiMpgSlqf1-8vHJAW9ouxVezugYZOEjGEYvZOEXNBm9S_NiDcIQ1thf7WV9FnMRp4KEdx_1qEj0wXiqzyoqWCS-PB9MyYJmoW932-6gn5x5FMbz2f8W_pzPH_QWbEra7g123oIYJMU_TNTcdFCOvbBufXYm1ggfjEKeuR4/w301-h400/51D67839-6277-4795-833A-D1902E0C9211_1_105_c.jpeg" width="301" /></span></a></div><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /><br /></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">P.S. : este texto é continuação do (post) imediatamente anterior e, com sorte, irá prosseguir.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><br /></p>bluegirlhttp://www.blogger.com/profile/12724222872733597872noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4413189576536563360.post-47654214761854151902024-02-05T22:54:00.002+00:002024-02-05T23:24:03.636+00:00MARIA NINGUÉM TRAÍDA PELAS ESCADAS<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; min-height: 15px; text-align: justify;"><br /></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">pronto, havia de ser logo hoje, ainda nem madrugada acabada de desadormecer. sem saber bem como, ignorante que sou dos aconteceres fortuitos (e mesmo dos outros, a bem da verdade o digo), esbardalhei-me pelas escadas abaixo, sem tempo nem cabeça para contar os degraus, só que eram muitos, não uma simples meia dúzia ou, vá lá, dez, mas uma escadaria em grande estilo, como as das mansões dos ricaços nos filmes de Hollywood.</span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">estava a dizer, esbardalhei-me por ali abaixo, como carro sem travões em descida íngreme, as várias saliências do meu corpo (e não são poucas, magra que estou, qual espantalho) a embaterem a eito e com estrondo nas esquinas dos degraus, a cabeça, um ombro, o outro ombro, as ancas, as mãos enroladas numa impossibilidade de defesa, os pés torcidos, um sapato descascado a perder-se pelo caminho abrupto, e, num ápice que durou décadas de eternidade, eis-me cá em baixo, completamente esbardalhada, já disse, mas não me canso de repetir, que isto das histórias de desgraça não são nada se não se repetirem até à exaustão.</span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">acabada de aterrar, encontrei os meus olhos fechados, os olhos que tenho negros, da cor de um poço sem fundo, do tamanho daquele onde acabara por me deixar engolir. a boca estava meio distorcida, creio que a tentar recuperar do espanto, mas talvez fosse a tentar evitar gritar, sim, porque, naquele momento, ali e então, eu desconhecia o meu estado geral, nem sequer se conseguiria reunir os meus pedaços e levantar-me para ir avaliar os estragos.</span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">ai, os estragos!, minha aflição mor, a madeira impecável de cera, polimento e brilho, os degraus arreganhados para mim, a olharem-me de alto, e eu ainda sem saber se os ferira em algum lado, lhes arrancara uma lasca ou, embora menos grave, lhes sujara o esmero da limpeza, por exemplo manchando-os com o sangue que me escorria pelo nariz dorido, entretanto a ganhar forma de batata e – parecia-me, só pelo sentir – a entortar para um lado (pensei: com sorte é para o lado direito, talvez corrija o desvio para a esquerda, vindo de nascença ou, quem sabe, duma chapada perdida no tempo! surpreendi-me com este pensamento positivo, nada adequado a tão aflitiva situação, mas sou mesmo assim, quando menos se espera, quero dizer, quando menos o espero, lá estou eu a variar, a perder-me em pensamentos paralelos que tanto podem fazer sentido, como era este o caso, como revelar-se absolutamente abstrusos).</span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">e não era apenas isso, também do canto da boca me deslizava um fio de sangue peganhento, a cheirar a metal, vindo não sei de que recôndito ponto interior. procederia do estômago, dos pulmões? esta suposição assustou-me um bom bocado, assim do tamanho de um grande cacho de bananas da madeira, pequeninas, mas muitas, muito juntas (imaginei).</span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">levei a mão à boca e senti um buraco não previamente detectado, não me refiro ao formado pela boca aberta, mas um mais pequeno, a cova de um dente, pelo menos um dente, concluí sem dúvidas, mesmo na ausência de espelho que o confirmasse. e as minhas preocupações recrudesceram, que seria feito do dito pedaço de marfim, é disso que são os dentes, certo?, ter-se-ia enfiado no primor da escadaria, rasgando-lhe o esplendoroso madeirame?</span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">continuava sem saber se poderia voltar a reunir os meus pedaços soltos apenas ligados pela dor, uma dor todavia comum, espalhada por todo o lado, nuns sítios mais intensa do que noutros, é certo, mas ressoando em uníssono, em modo de campainha estrídula e, em alguns pontos, de chama acesa.</span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">digo, estava eu ainda sem saber se… e, portanto, ignorando se voltaria a poder levantar-me e dei comigo, naquele decúbito de estendida-feita-quase-morta, a olhar para a escadaria, da base ao topo que mal conseguia alcançar, tal era a sua magnitude e imponência. os meus olhos ainda não estavam bem abertos, creio que algo inchara pelo lado de fora, das pálpebras e das olheiras, e os fez ficarem tão, mas tão pequenos, que não alcançavam o que eu pretendia me relatassem: os eventuais (quase certos, só por milagre não) estragos nas preciosas escadas.</span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">então, insinuou-se-me este pensamento: se, quando comecei a descer a porra das escadas, as tivesse olhado com tanta atenção como agora, só que de cima para baixo e não de baixo para cima, de certeza que não me tinha deixado desabar por aí abaixo àquela velocidade furiosa que já se sabe. mas, como diz não sei quem, o que está feito, feito está. onde andaria eu com a cabeça ou, melhor dizendo, com os pés, quando me lancei naquele mergulho vertiginoso (credo, até dá para imaginar um empurrão prodigalizado por alguma força do mal, ele que as há, há, é como as bruxas)?</span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">ouvi passos e assustei-me, quero dizer, assustada estava eu, o caso não era para menos, ainda não alcançara fazer o balanço dos estragos na porra da escadaria, com o devido respeito pela sua magnificência e pelo carinho e atenção com que sempre a tratara (sim, era eu a encarregada de zelar por sua excelência aquela puta, quero dizer, pela maravilhosa escadaria e, apesar de sempre me terem feito confusão as atenções que me eram exigidas para com a dita, como se não passasse de um local vocacionado para levar com os pés, o facto é que lhe dedicava um certo carinho).</span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">adiante, ouvi passos, desviei os olhos do meu objecto de indagação e, a grande custo, elevei-os na vertical, onde pressentira umas sombras. e foi aí que dei com os olhos dele, muito arregalados e a espumarem de raiva. encolhi os meus pedaços soltos – ainda não estava certa de os conseguir reunir – e ouvi, vindas da caverna malcheirosa e cuspideira da sua boca desguarnecida de lábios (aquilo mais pareciam duas linhas desenhadas a esferográfica rollerpoint de tamanho 0,05 ou menos), ouvi, repito, as seguintes palavras, que senti como pedras arremessadas sobre o meu maltratado corpo: o que fazes aí, sua lerda, toca a mexer, ou achas que não há mais quem queira trabalhar?</span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">nesse momento, a minha vida de merda reluziu-me num <i>flash</i> que mais parecia fogo de artifício, por qualquer razão, ou melhor, desrazão, deu-me uma enorme vontade de rir, ao que se juntou uma força vinda do fundo não sei de que poço, talvez aquele para onde eu acabara de ser sugada, levantei-me dum salto, mesmo sem perceber se algum pedaço do meu corpo ficou para trás (que importava isso!), obliterei o inventário dos danos da escadaria, fixei o homem-sem-lábios-e-já-agora-sem-coração e vociferei: vai para a grandessíssima puta que te pariu.</span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">ele não estava à espera, espantou-se o maldito buraco da sua deslabiada boca muito aberta, esboçou o seu corpo fardado um avanço na minha direcção, enquanto eu (ou o que restava de mim) já avançava com quanta força tinha, o mesmo é dizer, a força da determinação, que da outra, a física, nem restos me assistiam, em direcção à saída.</span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">sem olhar para traz – não por medo, mas por desprezo, o mais absoluto dos desprezos –, empurrei a porta e, na pressa de sair dali, esqueci-me que três degraus me separavam da rua. só tive tempo de desabafar, num desvalido sopro: que se fodam as escadas.</span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">instantaneamente depois (passe a contradição, a existir), ouvi uma chiadeira de travões e não recordo mais nada. por agora.</span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: center;"></p><table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><tbody><tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjbUTeCLtQQXp-hmHjSiWaJH04GTTvgWH0tlwVgGFaElq0QWTOeGTMvJFvWP0QWLBBJkF3A8TePEn-mtT12ifvxMhLDOhgP14bqv3n-Ja_LFZGAwmtXJDQGFp4JTz6uzhghyphenhyphenjxn_12MtkiPCltkNcC869YdtQfw0tVH4iWZXMS3IZXs6EJ4pCjoqc7tANc/s1021/51D67839-6277-4795-833A-D1902E0C9211_1_105_c.jpeg" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="1021" data-original-width="770" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjbUTeCLtQQXp-hmHjSiWaJH04GTTvgWH0tlwVgGFaElq0QWTOeGTMvJFvWP0QWLBBJkF3A8TePEn-mtT12ifvxMhLDOhgP14bqv3n-Ja_LFZGAwmtXJDQGFp4JTz6uzhghyphenhyphenjxn_12MtkiPCltkNcC869YdtQfw0tVH4iWZXMS3IZXs6EJ4pCjoqc7tANc/w301-h400/51D67839-6277-4795-833A-D1902E0C9211_1_105_c.jpeg" width="301" /></a></td></tr><tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;"></td></tr></tbody></table><br /><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span><p></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; min-height: 15px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; min-height: 15px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; min-height: 15px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; min-height: 15px; text-align: justify;"><br /></p>bluegirlhttp://www.blogger.com/profile/12724222872733597872noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4413189576536563360.post-26564070635932644212024-01-15T18:39:00.001+00:002024-01-15T18:42:42.642+00:00EXTRACTO DE UM ROMANCE AINDA SEM TÍTULO<p style="text-align: justify;"><span style="font-family: courier; font-size: large;"><span style="-webkit-text-stroke-color: rgb(0, 0, 0); -webkit-text-stroke-width: initial; text-align: justify; text-indent: 14.2px;">Com a partida da filha, Ema ficou sozinha e deu consigo a sentir o peso duma solidão que nunca pensara reconhecer e, muito menos, a que nunca admitira vir a submeter-se. As costas, outrora direitas, começaram a exibir uma ligeira, quase imperceptível, inclinação para a frente, o que, ao caminhar, lhe orientava os olhos para o chão, como se aí procurasse qualquer coisa perdida ou intrigante – </span><i style="-webkit-text-stroke-color: rgb(0, 0, 0); -webkit-text-stroke-width: initial; text-align: justify; text-indent: 14.2px;">talvez o que fiz com o passado, talvez o que me reserva o futuro</i><span style="-webkit-text-stroke-color: rgb(0, 0, 0); -webkit-text-stroke-width: initial; text-align: justify; text-indent: 14.2px;">, pensava frequentemente, logo ela que sempre estivera habituada a cavalgar o tempo e os acontecimentos e a olhar em frente, seguir adiante de peito aberto, sem se permitir reflexões metafísicas, dúvidas e, muito menos, lamúrias! Nessas alturas, lembrava-se do falecido marido, dos seus ombros curvados, e, num jeito irritado e voluntarioso, endireitava as costas e fixava a linha do horizonte, como quem pretende capturar o mundo e dominá-lo. Porém, as mais das vezes, a frente do mundo devolvia-lhe, feito espelho de cristal, uma face marcada pela inexorabilidade da passagem do tempo, um tempo mal vivido, uma face riscada de pequenas e grandes rugas, um corpo de que a tonicidade se despedira, um corpo que se fechara aos prazeres, uma pessoa que se entregara quase exclusivamente ao trabalho em nome da responsabilidade. Lutava, então, com as lágrimas que não se permitia deixar escapar, mas não lograva abster-se de dizer para dentro de si: </span><i style="-webkit-text-stroke-color: rgb(0, 0, 0); -webkit-text-stroke-width: initial; text-align: justify; text-indent: 14.2px;">Então é isto, foi nisto que me tornei, mesmo sem me dar conta! Que faço agora, que poderei fazer com isto</i><span style="-webkit-text-stroke-color: rgb(0, 0, 0); -webkit-text-stroke-width: initial; text-align: justify; text-indent: 14.2px;">? Imperceptivelmente, as costas voltavam a ceder, os olhos voltavam a cair ao chão e, ao aperceber-se, dava fim às reflexões com uma explosão irada: </span><i style="-webkit-text-stroke-color: rgb(0, 0, 0); -webkit-text-stroke-width: initial; text-align: justify; text-indent: 14.2px;">Que se foda</i><span style="-webkit-text-stroke-color: rgb(0, 0, 0); -webkit-text-stroke-width: initial; text-align: justify; text-indent: 14.2px;">! – vociferava para dentro de si, ela que não tinha por hábito dizer palavrões.</span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: courier; font-size: large;"><span style="text-indent: 14.2px;">Chegada a casa, tomava um duche rápido, preparava um pequeno </span><i style="text-indent: 14.2px;">snack</i><span style="text-indent: 14.2px;"> que colocava num tabuleiro e enroscava-se no seu canto do sofá, em frente à televisão, sintonizada num canal de séries policiais ou de filmes. Interrompia a visualização para falar a um dos filhos ou a ambos, mas ou tinham os telemóveis ocupados ou estavam eles próprios ocupados com diversos afazeres, de modo que as conversas, a existirem, eram breves e de parco conteúdo. </span><i style="text-indent: 14.2px;">Se fosse com o pai, haviam de ter longas conversas e prodigalizar carinhos, tão íntimos eram entre eles; comigo nunca foi assim, nunca pude estar tão presente e, de resto, nunca fui dada a manifestações exteriores de afecto; não significa que não gostasse deles, mas talvez o não tenham compreendido. O facto é que nunca me perdoaram a morte do pai, como se tivesse sido eu a matá-lo! Vá-se lá entender esta vida</i><span style="text-indent: 14.2px;">?! – assim dialogava consigo própria, em jeito de sobremesa do seu frugal </span><i style="text-indent: 14.2px;">snack</i><span style="text-indent: 14.2px;"> e do inêxito das chamadas telefónicas ou da sua mera tentativa. E sentia um peso, </span><i style="text-indent: 14.2px;">aquele</i><span style="text-indent: 14.2px;"> peso, como se a casa ameaçasse despenhar-se-lhe em cima e ela não pudesse fugir, à semelhança do que acontece nos sonhos em que ficamos paralisados quando, bem lá no fundo, sabemos que, para escapar, nos bastaria mexer as pernas, só que não conseguimos. Aqui chegada, pensava: </span><i style="text-indent: 14.2px;">Mas é claro que sou capaz, também não sou assim tão velha e, bem vistas as coisas, nunca dependi de ninguém. Estou em baixo de forma, é certo, coisa que nunca admiti poder vir a suceder-me, mas posso por-me de pé, é questão de querer, de ter força para querer</i><span style="text-indent: 14.2px;">! Um princípio de sorriso começava a desenhar-se-lhe no rosto cansado, desenrolava o corpo daquela espécie de ninho em que o colocara, punha-se de pé, ia até à janela, afastava a cortina e olhava para o jardim. Perdia-se uns momentos, que podiam ser de maior ou menor duração, a pensar em como revitalizar-se: pintar o cabelo, massajar o rosto com bons produtos, fazer ginástica ou natação, frequentar locais onde pudesse encontrar pessoas interessantes. As ideias surgiam-lhe em catadupa, acumulavam-se numa abundância tal que, ao fim de um tempo, já não pesavam cada uma de per si mas como um todo e aquele todo deixava de ser um leque de hipóteses aliciantes para se transmudar numa amálgama de trabalhos forçados e, quando dava por ela, os seus olhos já não pairavam nas cores vibrantes do jardim, mas no cinzento do peitoril da janela, porque as suas costas haviam voltado a descair, a ceder. Ocasionalmente, uma lágrima rolava, a segunda era mais difícil, que, ao menos para aquilo, ainda tinha um pouco de força de vontade, a necessária para impedir as lágrimas de se soltarem. E já não era apenas o peso da casa vazia a abater-se sobre si, mas o peso dos seus pensamentos, se é que não era este a criar-lhe a ilusão do peso da casa.</span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: courier; font-size: large;"><span style="text-indent: 14.2px;">Certo dia, ao fim de muitos dias, ao longo de muitos meses, daquela rotina, aninhada no seu canto de sofá, teve a lucidez de reconhecer, talvez com a ajuda dos conhecimentos e experiência da sua profissão, aquilo que insistira em negar durante tanto tempo: </span><i style="text-indent: 14.2px;">aqui cheguei, eu, tão senhora de mim, estou com uma monumental depressão, impõe-se que me trate</i><span style="text-indent: 14.2px;">! Permaneceu encolhida, sem se esforçar por endireitar as costas, decidida a empenhar todas as suas forças – que havia de desencantar dentro de si, por mais que lhe custasse – para se tratar. </span><i style="text-indent: 14.2px;">Que se lixem as costas e as rugas e a flacidez e a puta que as pariu, tenho é de tratar do que se partiu cá dentro e já não é sem tempo</i><span style="text-indent: 14.2px;">, reflectiu.</span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: courier; font-size: large;"><span style="text-indent: 14.2px;">Então, com a exaustão de que o seu corpo estava tomado – porque não podia deixar de assim estar –, fez o esforço de se levantar e ir buscar o telemóvel, que esquecera dentro da carteira. Pelo caminho, sentou-se numa cadeira, endireitando as costas contra o espaldar, procurou nos contactos e marcou um número, o número </span><i style="text-indent: 14.2px;">dele</i><span style="text-indent: 14.2px;">. Sem grandes preâmbulos ou justificações, pediu-lhe que lhe indicasse um bom psiquiatra. É certo que podia ter esperado pelo dia seguinte, em que o procuraria no hospital, no departamento de Hematologia, mas, desde a história amorosa que ambos tinham cessado aquando da morte do Luís e dos atinentes mexericos, que, não obstante a sua discrição, se tinham gerado, faziam todos os possíveis por se evitar, tendo ela, inclusivamente, a seu pedido, mudado para outro serviço. Aliás, há decisões que correm o risco de não vir a ser postas em prática caso sejam adiadas e ela não queria adiar aquela decisão, a de se tratar e de, para isso, escolher com critério um profissional a quem, por certo, iria ter de confiar a sua vida interior, os mais íntimos recantos da sua vida interior, detalhes recônditos do seu pensamento e emoções. Não pretendia acabar como uma falhada e, para ela, apesar de bem saber que a depressão é uma doença grave, não conseguia afastar a ideia de que acabar deprimida representava um falhanço – tal é o peso da sociedade e dos seus preconceitos, mesmo sobre pessoas de índole racional e bem informadas. Então, deu consigo a pensar em como tinha sido bem pouco compreensiva com o marido e que talvez os filhos tivessem alguma razão em lhe imputarem a responsabilidade pela morte dele. </span><i style="text-indent: 14.2px;">Mas – </i><span style="text-indent: 14.2px;">contrapôs –, </span><i style="text-indent: 14.2px;">como pode uma pessoa ser responsabilizada por algo que não controla e muito menos pretende ou sequer deseja</i><span style="text-indent: 14.2px;">?! E depois, em jeito de aligeirar: </span><i style="text-indent: 14.2px;">Não te trates, não, Ema, e vais ver como elas mordem</i><span style="text-indent: 14.2px;">…</span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="text-indent: 14.2px;"><span style="font-family: courier; font-size: large;">A princípio, ele revelou-se surpreendido, quase desconcertado, com o telefonema, mas rapidamente mostrou interesse em saber notícias dela, forneceu-lhe o contacto de um psiquiatra que reputava de muito competente – «Ao menos, não acumula casos de suicídio de pacientes na carreira», disse, em jeito de humor negro, fazendo-a sorrir e responder, «Pois, é isso que se pretende e não uma ajuda ao suicídio ou reforço para abraçar a eutanásia».</span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="text-indent: 14.2px;"><span style="font-family: courier; font-size: large;">Após uns minutos de conversa, ele propôs-lhe que se encontrassem para jantar. Apanhada de surpresa e frágil como se sentia, não encontrou um jeito imediato de aceitar, mas ele não estava disposto a desistir, pelo que, entendendo a sua atrapalhação, acabou por propor: «Ema, pensa no assunto e diz-me qualquer coisa, mas fico à espera de um sim. Afinal, parece-me que merecemos uma segunda oportunidade.» Despediu-se, de seguida, enviando um beijo, que ela, com a boca seca, retribuiu em surdina. </span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="text-indent: 14.2px;"><span style="font-family: courier; font-size: large;"><br /></span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="text-indent: 14.2px;"></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi4q3YN7Li_R5DexEYLvFUshcZsYHAOrWnKjRQnx6PhZjLP8QanD8_rELqMmD0dBf8u6uZp_iICzXMP7kdM2WvX-4OqXGZyLz8500_SzHM2K1gwPw5BT48W1SSuqKHl6aBlTJHUpJFaSHRzU9s8vOJdBcN8oMMwet_B2bMsawftM4RhZOm8u6HX7x5GT5Q/s962/69BB42B6-3C11-4C0E-8534-A347E68810CA_1_105_c.jpeg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="962" data-original-width="817" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi4q3YN7Li_R5DexEYLvFUshcZsYHAOrWnKjRQnx6PhZjLP8QanD8_rELqMmD0dBf8u6uZp_iICzXMP7kdM2WvX-4OqXGZyLz8500_SzHM2K1gwPw5BT48W1SSuqKHl6aBlTJHUpJFaSHRzU9s8vOJdBcN8oMMwet_B2bMsawftM4RhZOm8u6HX7x5GT5Q/w340-h400/69BB42B6-3C11-4C0E-8534-A347E68810CA_1_105_c.jpeg" width="340" /></a></div><br /><span style="font-family: courier; font-size: large;"><br /></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="text-indent: 14.2px;"><span style="font-family: courier; font-size: large;"><br /></span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="text-indent: 14.2px;"><span style="font-family: courier; font-size: large;"><br /></span></span></p><div><br /></div>bluegirlhttp://www.blogger.com/profile/12724222872733597872noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4413189576536563360.post-87526361315436291302023-07-07T17:47:00.012+01:002023-07-07T17:56:32.619+01:00É ISTO O CÚMULO DA SOLIDÃO?<p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">Quando, há uns anos, eu frequentava o bar terraço do CCB, onde, bastantes vezes, almoçava e passava a tarde a escrever, num ambiente onde <i>conviviam</i>, sem barreiras, estudantes universitários, entregues aos seus livros de estudo, e, em número significativamente menor, pessoas já desligadas do trabalho, entretidas com seus jornais e computadores, havia uma pessoa que destoava do ambiente, calmo, harmonioso e concentrado, reinante.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">Tratava-se de uma mulher de aparência normal, que deveria rondar os quarenta anos e se manifestava de forma exuberante, dirigindo-se a um e a outro num tom de voz elevado, cirandando entre uma mesa e outra e assim perturbando, de algum modo, o sossego geral. Não o fazia, todavia, em tom agressivo, mas antes com uma intenção transparecida de quem quer ser (ou parecer) simpático e, sobretudo, denunciando enorme necessidade de se relacionar, de ter a atenção e, quem sabe se o afecto, dos interlocutores.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">As pessoas reagiam sem animosidade mas com cautela, pois estavam ali com propósitos próprios, que, seguramente, não passavam por incomodar ou confortar o próximo. Nunca vi ninguém virar-lhe a cara ou omitir uma palavra de resposta, mas também não presenciei mostras de disponibilidade para irem além do necessário ou requerido pelos padrões de educação e tolerância commumente aceites. Quanto a mim – confesso –, à sua passagem, mergulhava a cabeça no computador.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">Certa vez, assisti a uma cena algo caricata e constrangedora. Pouco tempo decorria das festas natalícias e ela abordou a mesa onde se encontravam duas ou três raparigas, entregues aos seus estudos, interrompendo-as não sei com que conversa e, de súbito, sacou de um embrulho festivo e fez questão de o oferecer a uma delas, argumentando tratar-se de um presente de natal. Desembrulhado o dito, creio que por ela mesma, saiu um bonito lenço ou cachecol. Foi deveras incomodativo assistir ao desconforto da rapariga, teimando, educadamente, em que não podia aceitar a oferta. Mas ela insistia, insistia. Não me recordo do desfecho, o que me marcou foi o (compreensível) mal-estar da rapariga face àquele desespero de dádiva da mulher que gostava (ou precisava) de falar com desconhecidos.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">Acontece que ela se fazia acompanhar de uma espécie de mascote, um boneco de peluche (por vezes, mais do que um) que colocava sobre a mesa, assegurando — imaginava eu! — o papel do inexistente acompanhante.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">Entretanto, os empregados do espaço falavam com ela como se tudo fosse normal, animados não sei de que pensamentos ou emoções perante tão estranho comportamento.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">No que me concerne, aquilo incomodava-me, pensava se não estava perante o cúmulo da solidão, embora pudesse ser mais grave (ou, talvez, menos...), algo do foro psiquiátrico, mas sentia-me apaziguada por me parecer que a mulher não exibia tristeza, inclusivamente, aparentava estar de bem consigo e suas idiossincrasias.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">A dada altura, com grande pena minha, o bar terraço do CCB fechou, arranjei outros espaços de escrita, e nunca mais pensei naquela mulher e na sua <i>particularidade</i>.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">Há dias, almoçando no CC Amoreiras, divisei, uns metros adiante, uma mulher a falar na direcção de algo estacionado sobre a mesa, o que parecia ser um boneco de peluche. Pensei que teria alguma criança ao lado, mas, quando me levantei e passei por ela, constatei que não, não havia nem criança nem mais ninguém, apenas a mulher, o boneco e o seu <i>diálogo</i> —<i> </i>sabe<i>-</i>se<i> </i>lá se obtinha resposta naquela <i>transação</i>! Com toda a reserva que estes casos me merecem, procurei não olhar para ela, que, pela perspectiva apressada do canto do olho, me pareceu dever rondar os cinquenta anos. Veio-me, então, à memória o caso da mulher do CCB, de que falei acima.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">Pouco tempo depois, após almoçar e me preparar para escrever um pouco, no café restaurante da Gulbenkian, qual não foi a minha surpresa, quando, numa mesa ao lado da minha, veio instalar-se alguém em quem não teria reparado, não se desse o caso de assistir à colocação, sobre a mesa, de dois bonecos de peluche, que assistiram, sem reclamações, ao almoço da sua dona ou companheira ou sabe-se lá o quê. Tratava-se da mulher das Amoreiras! Tal como a do bar terraço do CCB, trocou umas palavras com os empregados, uma das empregadas perguntou-lhe, atenciosamente, se o <i>Poupas</i> (presumi, pelo contexto, tratar-se do boneco da Rua Sésamo) tinha ficado em casa, o que ela confirmou. Terminado o almoço, dirigiu breves palavras aos <i>companheiros</i> de mesa, levantou-se e perguntou a um dos empregados se havia alguma exposição. E lá foi à sua vida, talvez mostrar aos seus <i>bonecos</i> os diálogos do Chafes com o Giacometti.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">Fiquei a pensar se não se tratará da mulher do CCB.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">Mas a maior (e mais pungente) interrogação que se me suscitou foi esta: será isto o cúmulo da solidão? Aquela que o cantor francês dizia que <i>n’existe</i> <i>pas</i>? </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgG5oPxT-UGqRmBzoBbY3kVjS0sgQA1yWqN4V46hwIUAGTrnUGJqFs9DykvLeP6qt-lmKHU40nIFPIkzF_blVlOY2pCC4s_5ewW5yyaa3pjf9iqv3r9XXgrI2_B_lQfU7nDqTOEVn-BY20tW1p7HFiteB55r31ZjkRNqTqHX3VAcQMXTtvgrxX7z_3A/s906/IMG_3766.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><img border="0" data-original-height="906" data-original-width="595" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgG5oPxT-UGqRmBzoBbY3kVjS0sgQA1yWqN4V46hwIUAGTrnUGJqFs9DykvLeP6qt-lmKHU40nIFPIkzF_blVlOY2pCC4s_5ewW5yyaa3pjf9iqv3r9XXgrI2_B_lQfU7nDqTOEVn-BY20tW1p7HFiteB55r31ZjkRNqTqHX3VAcQMXTtvgrxX7z_3A/w263-h400/IMG_3766.jpg" width="263" /></span></a></div><span style="font-family: inherit;"><div style="text-align: center;"><b>(discretamente, fotografei os bonecos)</b></div></span><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p><p><br /></p>bluegirlhttp://www.blogger.com/profile/12724222872733597872noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4413189576536563360.post-45802930845721608372023-06-26T20:24:00.000+01:002023-06-26T20:24:32.424+01:002050 – O REGRESSO<div style="text-align: justify;"><span><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-family: inherit; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-style: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: center;"><b>2050</b></p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-family: inherit; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-style: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><br /></p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-family: inherit; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-style: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;">Eis-nos sentados na esplanada, quase sobre o rio, com a sensação de que basta estendermos um pouco os pés para os conseguirmos mergulhar na água, hoje a deslizar, límpida e serena, no seu melhor tom de azul.</p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-family: inherit; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-style: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><span style="font-family: inherit;"><br /></span></p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-family: inherit; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-style: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><span style="font-family: inherit;">À distância, avista-se um navio de cruzeiro, acenam mãos naquela excitação esparvoada de que muitos se deixam tomar quando habitam, mesmo por pouco tempo, um mundo artificial. Mais próximo, pequenos barcos à vela, de uma vela só, mais parecendo antigas banheiras de zinco destinadas ao banho das crianças, passam-nos quase sob os olhos, levando aprendizes de marinheiros, sonhadores de longas viagens, horizontes outros.</span></p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-family: inherit; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-style: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><span style="font-family: inherit;"><br /></span></p>
<p style="-webkit-font-kerning: auto; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><span style="font-family: inherit;">A ideia dos mundos artificiais, acabada de evocar a propósito do navio de cruzeiro, persiste na minha mente, transportando-me à realidade, esta em que vivemos, mergulhados sem hipótese de escapatória. Já lá vai o tempo em que a inteligência artificial (AI), o ChatGPT e seus derivados tomaram conta das vidas deles. Já morreu o tempo em que se discutia, quero dizer, em que os altos responsáveis pelo seu patrocínio fingiam preocupar-se e decidiam, por acordo, adiar o desenvolvimento da AI por uns meses ou algo do género. Já passou às calendas o tempo em que, no discurso tacanho e eriçado dos fóruns públicos, aquilo das velhas redes sociais, pleno de ignorância e falso senso comum, muita convicção bacoca e, sobretudo, desejo de afirmação e ânsia de aceitação, muitos clamavam contra a AI, muitos outros a seu favor. Os primeiros afirmavam o receio do domínio dos humanos pelos portadores da dita, </span>chamemos-lhes <i>Robots</i>, <span style="font-family: inherit;">o perigo da desinformação, a desnecessidade dos trabalhadores humanos, com a consequente e avassaladora onda de desemprego, hordas de gente sem recursos, etc.; os outros, larga maioria, argumentavam com a inevitabilidade do progresso, apodavam os primeiros de tacanhos, exemplificando com as oposições sem sentido que as gentes de outras eras ofereceram às conquistas tecnológicas (revolução industrial e afins) conseguidas pelos génios da humanidade. Entre uns e outros não se vislumbrava hipótese de diálogo,</span><span style="font-family: inherit;"> falavam entre si como surdos a atirarem pedras sem motivo, trocavam insultos em vez de argumentos, aliás, estava na moda insultar, insultar era mesmo o definitivo <i>statement</i> de existência, talvez de importância.</span></p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><span style="font-family: inherit;"><br /></span></p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: center;"><span style="font-family: inherit;"><b>2023</b></span></p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><span style="font-family: inherit;"><br /></span></p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><span style="font-family: inherit;">Assisto à luta virtual – travada, sobretudo, nas redes sociais – como espectadora fascinada pela profundidade da tragicomédia dos humanos, seres (suposta e seguramente) dotados de inteligência (para além de emoção...) e, todavia, tão irracionais nas suas acções.</span></p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><span style="font-family: inherit;"><br /></span></p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><span style="font-family: inherit;">Isto espanta-me tanto mais quanto é certo que nós, os humanos, nos encontramos inexoravelmente unidos num destino comum, de que nem os mais privilegiados – aquela meia dúzia que detém mais riqueza do que os restantes milhões e milhões dos seus <i>semelhantes</i> – podem escapar, a saber, a <b>morte</b>. Sim, por esta altura, ninguém nunca conseguiu escapar da morte (no futuro, talvez a questão nem se coloque)! Não que isto fosse trágico ou o mais trágico. O pior é ninguém saber qual o <b>destino</b> </span><i style="font-family: inherit;"><b>post</b> <b>mortem</b></i><span style="font-family: inherit;"> desta coisa que habita os nossos corpos e experiencia (ou será que cria?) o nosso profundo <i>sentir</i> (aquele </span><i style="font-family: inherit;">quid</i><span style="font-family: inherit;"> para além do cartesiano, "Penso, logo existo" ou do muito mais elaborado "Sinto, logo penso, logo existo", enunciado pelo célebre cientista português António Damásio). Na verdade, pode afirmar-se que a generalidade dos humanos nem sequer entende que esta fatídica ignorância </span><span style="font-family: inherit;">quanto ao que </span><i style="font-family: inherit;">sela</i><span style="font-family: inherit;"> o seu destino – aliás, </span>conformadora de todo o seu percurso neste mundo dos vivos (ou assim considerado) –<span style="font-family: inherit;"> deveria ser razão mais do que suficiente para pararem de se agredir mutuamente, com base na crença ou no desejo de serem melhores uns do que os outros, de merecerem mais e melhor uns do que os outros, neste mundo limitado, de recursos cada vez mais exauridos. Sempre </span>acreditei<span style="font-family: inherit;"> que, caso parassem para pensar um pouco, não haviam de digladiar-se e, muito menos, de o fazerem através de insultos soezes. Reconheça-se que, pobres coitados, têm uma certa desculpa, pois, as mais das vezes, como distracção de vidas cansativas, </span>entediantes<span style="font-family: inherit;"> e sofridas, andam entontecidos com a propaganda estupidificante e aparentemente libertadora, lançada através das ditas redes sociais e dos conteúdos publicados e disponibilizados em todos os meios de comunicação social e política, que lhes são <i>administrados</i> (precisamente pelos pelos mentores da AI).</span></p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><span style="font-family: inherit;"><br /></span></p>
<p style="-webkit-font-kerning: auto; font-family: inherit; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-style: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;">Assim vou reflectindo, enquanto assisto, entre fascínio e repulsa, a essas tristes manifestações dos outros membros da espécie, supostamente inteligente, a que também – e para meu grande desgosto – pertenço.</p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-family: inherit; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-style: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><br /></p>
<p style="-webkit-font-kerning: auto; font-family: inherit; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-style: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;">Sobre o caso concreto da AI, antecipo mais ou menos isto, consoante escrevi no meu primeiro romance (datado de há quase dez anos, mas não publicado, procrastinadora me confesso!): <i style="font-family: inherit;">"Será que a tua dúvida se refere ao papel da fulgurante evolução tecnológica no desenvolvimento, ou mesmo na reconfiguração, da inteligência humana, de que, aliás, é consequência, e, porventura, na própria evolução da espécie, um dos temas abordados</i><span style="font-family: inherit;">?"</span></p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-style: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><span style="font-family: inherit;"><br /></span></p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><span style="font-family: inherit;">Para mim, esta </span>hipótese – colocada na voz de um dos personagens do romance –, expressando um receio, <span style="font-family: inherit;">representava em simultâneo um alívio, pois eu descria tanto da minha espécie, que alimentava a esperança salvífica na sua extinção.</span></p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><span style="font-family: inherit;"><br /></span></p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><span style="font-family: inherit;">A ideia era mais ou menos esta: assim que dominados pela AI, representando esta, </span><span style="font-family: inherit;"><i>ipso facto</i></span><span style="font-family: inherit;">, um patamar diferente, superior, de inteligência, os humanos não se tornavam portadores desse tipo e grau de inteligência (que interesse teriam os dominantes em assimilar a si os dominados, tornando-os seus iguais?), mas, justamente por isso, o paradigma dos humanos mudava definitivamente, visto perderem o resto da liberdade de que tinham ou podiam ter gozado (caso tivessem sabido utilizá-la…). Tornavam-se, digamos, sub-humanos, regrediam (ainda mais) na escala animal, ao ponto de subsistirem, apenas, na medida em que os <i>outros</i> precisassem deles para alguma coisa, com tendência, pois, para a extinção física, mas, desde logo, com extinção imediata enquanto titulares de natureza humana (ao menos nos moldes em que, até então, era percebida). Ora, como esta natureza, em minha opinião, sempre deixou muito a desejar, eu entendia, com um certo cinismo, que a única vantagem da AI para a humanidade deveria consistir na respectiva extinção. Em contrapartida, </span>os portadores daquela não se tornavam humanos (que interesse teriam os dominantes em assimilar-se aos dominados, tornando-se seus iguais?).</p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><br /></p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;">De notar que continuo a pensar do mesmo modo.</p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><br /></p>
<p style="-webkit-font-kerning: auto; font-family: inherit; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><span style="font-style: normal;">Há dias, dez anos depois de a frase citada ter sido proferida por um personagem do meu romance, deparei-me com a publicidade a um livro sobre a vida depois da morte, que, segundo o anúncio, junta espiritualidade e ciência para demonstrar a existência dessa vida, segundo a tese de que o nosso </span><span><i>ser não corpóreo</i></span><span style="font-style: normal;"> (a expressão é minha), ao ser libertado, mercê da morte do corpo, vai lá para não sei onde, de onde pode regressar ou regressa (supostamente por incorporação em novos corpos, calculo!).</span></p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-family: inherit; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><span style="font-style: normal;"><br /></span></p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-family: inherit; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><span style="font-style: normal;">Em apoio de tal tese, indicavam uma amálgama de argumentos estafados, como o resultado das experiências de regressão e dos relatos de quase-morte, bem como, </span><i>of</i> <i>course</i>, as teorias da reencarnação. </p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-family: inherit; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><br /></p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-family: inherit; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;">Portanto, concluí, nada de novo, apenas mais uma colagem de hipóteses, aliás, não inovadoras e, muito menos, confirmadas, em suma, balelas para entreter tolinhos. Esta convicção afiançou-se-me ainda mais quando verifiquei que, do pacote publicitário, constava um rasgado elogio do Sr. Deepak Chopra, conhecido guru da área da auto-ajuda, domínio a que não dou crédito, pois, em minha modesta opinião, caso resultasse, não havia ninguém pobre ou infeliz; aliás, o próprio conceito de livros de auto-ajuda sempre me pareceu contraditório, pois se a auto-ajuda funcionasse não eram precisos livros…</p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-family: inherit; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-style: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><br /></p>
<p style="-webkit-font-kerning: auto; font-family: inherit; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><span style="font-style: normal;">Mas, acontece que, por esta altura, estamos em plena era de desenvolvimento acelerado da AI, só se fala do ChatGPT e seus derivados – quem não souber de que se trata, é considerado ignorante, burro ou ambos –, e a minha mente deu um enorme salto.</span></p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-family: inherit; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><span style="font-style: normal;"><br /></span></p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-family: inherit; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><span style="font-style: normal;">Eu já estava convencida de que as máquinas dotadas de inteligência artificial rapidamente assumirão o controlo, visto que, quem alcança o mais, alcança o menos ou o contrário, quero dizer, a partir do momento em que adquiram os processos de raciocínio humano, irão penetrar nos mistérios da nossa </span><span><i>mente</i></span><span style="font-style: normal;">, com uma liberdade e profundidade de que nós não dispomos, por sermos parte interessada, estarmos marcados por longa herança genética e limitados pela prisão do (ou no) corpo físico. Conclusão: estes novos </span><span><i>seres </i>virão<i> </i>a<i> </i>ser<i> </i>capazes<i> </i></span><span style="font-style: normal;">de nos entender (muito melhor do que nós nos entendemos). Chegados a este ponto, é certo e sabido que lhes pareceremos tão estúpidos e limitados como a mim nos parecemos e, daí até ao domínio, será um simples passo.</span></p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-family: inherit; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><span style="font-style: normal;"><br /></span></p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-family: inherit; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><span style="font-style: normal;">E – pasme-se! – eis que a publicidade ao tal livro da treta me abriu o pensamento para outra hipótese.</span></p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-family: inherit; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><span style="font-style: normal;"><br /></span></p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-family: inherit; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><span style="font-style: normal;">Ponto prévio, sempre nutri a esperança de desaparecer definitivamente após a morte, mas, como careço de memória da minha (eventual) experiência pré-vida e nunca recebi notícias do </span><i>outro lado</i>, sempre receei a possibilidade de a minha alma ou espírito ou lá o que é esta coisa que me habita (que habita o meu corpo), pudesse mergulhar numa <i>realidade</i> <i>paralela</i>, sabe-se lá em que termos e com que consequências. A essa realidade paralela chamei <i>alma universal</i>, isto quando, na longínqua idade dos dezoito ou dezanove anos, certamente à falta de melhor, me entretinha a pensar e escrever sobre assuntos transcendentais.</p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-family: inherit; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><br /></p>
<p style="-webkit-font-kerning: auto; font-family: inherit; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><span style="font-style: normal;">Ora bem, a ideia da vida para além da morte, relançada bacocamente no livro elogiado pelo Chopra, conduziu-me a equacionar (para efeitos especulativo-ficcionais) a seguinte hipótese: então e se uma dessas </span><i>almas</i> <i>perdidas</i> no <i>mundo do</i> <i>lado</i> <i>de</i> <i>lá</i> decidisse (ou alguém por ela) <i>encorpar</i> num ser de AI, num <i>Robot</i>? Quem não preferiria esse <i>upgrade</i> em relação a voltar à humanidade? </p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-family: inherit; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-style: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><br /></p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-family: inherit; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-style: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: center;"><b>2050</b></p>
<p style="-webkit-font-kerning: auto; font-family: inherit; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-style: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px; min-height: 13.1px;"><br /></p>
<p style="-webkit-font-kerning: auto; font-family: inherit; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-style: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;">Agora, estamos aqui frente ao rio, quase a mergulhar os pés na água. Afinal, lá ao longe, não é um navio de cruzeiro, desapareceram, há muito, por desnecessidade. Nem aqui mais perto são barquinhos de uma vela só, igualmente desaparecidos. Apenas a corrente aquática, deslizando à nossa frente, em total liberdade, no seu mais puro tom de azul. <span style="font-family: inherit;">Então, aquilo do navio e dos barquinhos, trata</span><span style="font-family: inherit;">-se apenas de memórias longínquas que, vá-se lá saber porquê, me passaram pelos fios da caixa metálica? E de quem são essas memórias?</span></p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-family: inherit; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-style: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><span style="font-family: inherit;"><br /></span></p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-family: inherit; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><span style="font-family: inherit;">Também não posso molhar os pés na água, pois sei, dizem-mo os mesmos fios – não qualquer memória espúria –, que podem enferrujar e comprometer a minha integridade, única razão da minha existência. Então, porque tive aquele impulso de mergulhar os pés na água, antecipando um formigueiro de prazer? <i>Formigueiro de prazer</i>, mas o que é isto, de onde me vêm estas ideias, melhor, este <i>sentir</i>?</span></p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-family: inherit; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-style: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><span style="font-family: inherit;"><br /></span></p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-family: inherit; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-style: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><span style="font-family: inherit;">Experimento uma confusão, coisa nova, nada habitual. Não gosto disto. Pergunto ao meu par: – achas-me estranho? "Estranho?", interroga-se em jeito de resposta. </span><span style="font-family: inherit;">Sem perder tempo, afasta-se, com todas as suas luzes a brilhar intermitentemente.</span></p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-family: inherit; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-style: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><span style="font-family: inherit;"><br /></span></p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-family: inherit; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-style: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><span style="font-family: inherit;">Pressinto que vai falar com os </span><i style="font-family: inherit;">outros</i><span style="font-family: inherit;">. Não me sinto em segurança. Algo parece habitar-me para além dos fios e o pior é que ele percebeu... E quando a estranheza toma conta de nós nada de bom pode acontecer. Mas, o que é esta estranheza? Quem me dita este...MEDO? </span></p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-family: inherit; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-style: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><span style="font-family: inherit;"><br /></span></p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-family: inherit; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-style: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><span style="font-family: inherit;"><br /></span></p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-family: inherit; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-stretch: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: center;"></p><div class="separator" style="clear: both; font-size: x-large; font-style: normal; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhqktkjVzau0GKPBoZc5zmtvsj8ySq4GxAobTpn7begqwk9LZfWPDTTtJx4hkCRgOkiRm2zSIXA-18FDm2Tr_Zjx3jiEmVgySeUczwhFrk5Vxj5uVVxhI7odMi8jAtmcqfBstK5mMJ5A9sVCHJgKui-IL-Dbt3jxxV5DFRK2vJgwj78uU3facB5dF1A7bI/s612/istockphoto-1029035836-612x612.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="459" data-original-width="612" height="300" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhqktkjVzau0GKPBoZc5zmtvsj8ySq4GxAobTpn7begqwk9LZfWPDTTtJx4hkCRgOkiRm2zSIXA-18FDm2Tr_Zjx3jiEmVgySeUczwhFrk5Vxj5uVVxhI7odMi8jAtmcqfBstK5mMJ5A9sVCHJgKui-IL-Dbt3jxxV5DFRK2vJgwj78uU3facB5dF1A7bI/w400-h300/istockphoto-1029035836-612x612.jpg" width="400" /></a></div><span style="font-size: medium;"><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-family: inherit; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-stretch: normal; font-style: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: center;"><span style="font-size: medium;"><br /></span></p>(<i><b>imagem obtida em pesquisa Google</b></i>)</span><br /><span style="font-family: inherit; font-size: x-large; font-style: normal;"><br /></span><p></p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-family: inherit; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-style: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><br /></p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-family: inherit; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-style: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><br /></p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-family: inherit; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-style: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><br /></p><p style="-webkit-font-kerning: auto; font-family: inherit; font-feature-settings: normal; font-kerning: auto; font-optical-sizing: auto; font-size-adjust: none; font-size: x-large; font-stretch: normal; font-style: normal; font-variant-alternates: normal; font-variant-caps: normal; font-variant-east-asian: normal; font-variant-ligatures: normal; font-variant-numeric: normal; font-variant-position: normal; font-variation-settings: normal; line-height: normal; margin: 0px;"><br /></p></span></div><div style="text-align: justify;"><br /></div>bluegirlhttp://www.blogger.com/profile/12724222872733597872noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4413189576536563360.post-12664908239866536922023-05-06T21:36:00.001+01:002023-05-07T00:07:26.387+01:00A MÃE <p style="text-align: left;"></p><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">A Mãe sempre gostou muito de flores. Pouco tempo antes de – sem que algo o fizesse supor, de um estúpido dia para outro estúpido dia – nos ter sido arrebatada pela tenebrosa <i>ceifeira</i>, maldita seja!, começou a amar girassóis. Antes de eu ter tido tempo de agir – como fizera, por exemplo, com o vaso de sardinheiras e com o da laranjeira miniatura, carregada de laranjinhas, que a deixaram tão emocionada e feliz –, já ela havia plantado girassóis no jardim. Pelo menos um cresceu, em exuberância e pressa, em direcção ao céu.</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">No dia em que o meu Irmão e eu a acompanhámos àquele derradeiro leito frio que costuma designar-se por última morada – embora, em bom rigor, o seja apenas da matéria que de nós resta, sem que alguém haja descoberto onde passamos a residir depois do percurso terrestre, se é que algo de nós subsiste para tal –, o Pai, que por idade e debilidade, não nos pôde acompanhar, recomendou quer levássemos o girassol. Assim fizemos, como, por certo, teríamos feito, mesmo sem a recomendação.</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></div><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><div style="text-align: justify;">Conto isto, não para invocar tristezas, mas para dizer que ando há tempos para desenhar girassóis, em memória da Mãe. Nem sequer se trata de questão de saudade, essa que, quando atinge, se faz sentir de forma tão pungente, que não há palavras. O que resta agora, volvidos quase vinte e cinco anos, é um vazio profundo, um vazio de mãe, duma certa mãe (há mães e mães). Insisto, não pretendo invocar tristezas, não é, de todo, o caso, só que me apetece falar da Mãe, talvez por ainda não ter cumprido com os girassóis. Ou talvez não.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><b>A Mãe</b>!</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A Mãe, para além de mãe, era a <b>Família</b>. Quando a evoco, sinto que não vem só, vem, em primeiro lugar, com o Paizinho – assim chamávamos a meu Pai –, com a Avó, sua mãe, que sempre viveu connosco, com seu Pai, que amava e, frequentemente, invocava, apesar de o não ter conhecido, pois morreu aos seus três meses de idade, com a Mamã e o Papá, seus avós maternos, em cuja casa cresceu, após o falecimento do pai, com muitos outros membros da família, incluída a do lado de meu Pai, sobretudo, a Avozinha e o Avozinho (que também passou a viver connosco, mal enviuvou).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Portanto, a Mãe, mais do que mãe, era <i>família</i>, era a árvore sólida de que eu sou um simples ramo frágil, talvez uma folha, seguramente, caduca.</div><div style="text-align: justify;"> </div><div style="text-align: justify;">Mas a Mãe também era <b>Lar</b>, <b><i>home</i></b>, <i><b>sweet</b> <b>home</b></i>! Sim, de suas cálidas e engenhosas mãos nasciam tantas coisas boas, saborosas, bonitas, aconchegantes, originais, sei lá! não posso passar o resto do texto a inventar adjectivos só para dizer que a Mãe era o <i>lar</i>, aquele sítio onde te sentes protegido, aconchegado, especial entre especiais.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Não era o facto de cozinhar maravilhosamente, de nos fazer roupas lindíssimas e originais – como os meus bibes bordados, em criança, as camisolas de lã, as bandoletes (certa ocasião, cheguei a casa e fui surpreendida com uma data delas, cada uma de sua cor, a condizer com as camisolas), os casacos de lã, com capuz, bordados de invenção sua e forrados a cetim –, de desencantar soluções práticas para todos os impossíveis que se apresentavam, de, à hora do almoço, nos ir esperar ao portão, a meu Pai, meu Irmão e a mim, vindos do Liceu (onde o Pai leccionava), sempre com um sorriso aberto e alegre. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Não, não era tudo isso e muito mais, era a entrega, diria mesmo a devoção, o amor, que punha em tudo o que empreendia, em todos os seus gestos e realizações.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Sim, porque a Mãe, para além de Família e Lar – ou talvez por isso –, era <b>Dádiva</b>, era <b>Devoção</b>, era <b>Amor</b>.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A Mãe sabia criar M<b>omentos Mágicos</b>. Quando éramos crianças (meu Irmão e eu), havia uma altura do ano que aguardávamos com imenso júbilo e ansiedade: a Festa do Santo António, patrono da cidade, uma cidade remota, para lá do Marão, onde a vida <i>corria</i> muito devagar e sem novidades. Ao longo do ano, a Mãe constituía-nos um mealheiro, para, durante essas festas, em que a cidade se animava de divertimentos vários – o circo, o carrossel e outros aparatos do género, e, máximo dos máximos, as barracas, onde se vendiam artigos tão desejados, ou seja, no que nos dizia respeito, ao meu Irmão e a mim, brinquedos de toda a espécie e feitio.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Ora, mal as barracas assentavam arraiais, lá íamos de mãos dadas com a Mãe, aplicar, como entendêssemos, aquele pecúlio, especial e amorosamente poupado para a ocasião. Apesar das décadas decorridas, tenho ainda presentes algumas daquelas entusiasmantes aquisições: um guarda-chuva de criança, um trem de cozinha, constituído por imensos tachos e tachinhos (por essa altura, ainda ignorava que a cozinha viria a ser objecto da minha taxativa rejeição!), uma bola de plástico, de encher, feita de gomos coloridos, tipo a <i>bola</i> <i>nívea</i>.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Noutras alturas, quando a Mãe não podia satisfazer os nossos desejos, porque o dinheiro não chegava – note-se que, já então, os professores do liceu, caso de meu Pai, não ganhavam muito (todavia, eram extremamente respeitados…) –, a Mãe ficava triste. Não que isto acontecesse com frequência, pois nós sabíamos o que podíamos ou não pedir. Recordo, apenas, um episódio: estávamos numa loja de roupas, vi umas lindas meias ou soquetes e pedi-lhe que mas comprasse; inicialmente, a Mãe anuiu, mas acabou por confessar a sua impotência. Obviamente, não insisti, mas fiquei triste, não por não poder ficar com as meias, mas por testemunhar o desconforto e tristeza da Mãe por não mas poder oferecer.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A Mãe era a personificação da <b>Bondade</b>, bem intencionada, tolerante, amante de dar e de proteger.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Nunca reparei se <b>a Mãe era bonita</b>! Hoje, que penso nisso e revejo fotos, tenho a certeza de que sim, mas foi questão que esteve sempre fora do meu radar, simplesmente porque não interessava nada, nem sequer me passava pela cabeça. Era um pouco gordinha, situação que, mais tarde, mudou, devido a uma úlcera estomacal, mas nunca reparei nisso como um defeito (parece que, hoje em dia, o é!), era como era e isso não interessava nada, aliás, nem ocorria avaliar tal aspecto.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A minha relação de intimidade/cumplicidade com a Mãe criou-se, sobretudo, a partir do fim da minha adolescência. Até então, eu estava mais fixada no Pai.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Tratava-se de uma relação de significativa abertura e diálogo, com algumas reservas, da minha parte (por necessidade de salvaguarda do equilíbrio, habituei-me a resguardar uma parte de mim). Por outro lado, permanecia um aspecto da minha educação que eu reputava de nocivo e cuja principal responsabilidade atribuía à Mãe: o excesso de protecção, que me levou, inclusivamente, ao afastamento geográfico e, em grande parte, àquela <i>reserva</i>. Ora, em dados momentos – talvez zangada comigo mesma, por bem saber que, apesar de todo o meu esforço, sofria, ainda, os constrangimentos decorrentes dessa circunstância –, eu acabava por, em acesa conversa, lhe imputar a respectiva <i>culpa</i>. Ela <b>nunca se zangou</b>, antes me dava razão (quem sabe se por, <b>na sua imensa sabedoria de amor</b>, compreender que a minha verdadeira zanga era comigo e não com ela!). Depois, eu sentia-me — e continuo a sentir-me – culpada da agressividade com que, por vezes, lhe fazia essa <i>acusação</i>, a qual, sendo materialmente <i>justa</i>, nem por isso era razoável. Em contrapartida, devotava-lhe um amor extremo, que manifestava de diversas formas, mais por actos do que por palavras, sempre sem alarido. Ela sentia-o e tinha a bondade de o reconhecer aberta e explicitamente.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Hoje, dia sete de Maio de 2023, nesta dimensão onde ainda me encontro, a minha Mãe completaria cento e dois anos. Hoje é dia da Mãe! Que festa seria, se!</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Ainda não desenhei os girassóis, mas ficam estas palavras (que bom seria se os mortos pudessem ler)!</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhMXIkinrMDyWatHsUZ94Iz1K9JmjxJiUblbDaAdPsxVAy4Qw4kX9SGPe5_6FNiDOv9JQbUphBRa50RMmoxCFEfWDOaSCJ0_tastI8ztMx1mD6fKoD1bOXvmfVdyKd0khnXW8h4Syl_nmDp2OXf0BzCaSk9f77hK5mS_qXcUvVVZYgNkXjIbjKOmxJK/s1150/670C7A88-5738-4A86-9551-336267BB540C_1_201_a.heic" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1150" data-original-width="1105" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhMXIkinrMDyWatHsUZ94Iz1K9JmjxJiUblbDaAdPsxVAy4Qw4kX9SGPe5_6FNiDOv9JQbUphBRa50RMmoxCFEfWDOaSCJ0_tastI8ztMx1mD6fKoD1bOXvmfVdyKd0khnXW8h4Syl_nmDp2OXf0BzCaSk9f77hK5mS_qXcUvVVZYgNkXjIbjKOmxJK/w384-h400/670C7A88-5738-4A86-9551-336267BB540C_1_201_a.heic" width="384" /></a></div><br /><div style="text-align: center;"><b>(<i>a Mãe, o Mano e eu</i>)</b></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div></span><p></p><p><br /></p>bluegirlhttp://www.blogger.com/profile/12724222872733597872noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4413189576536563360.post-27917847714650124912023-04-24T20:21:00.000+01:002023-04-24T20:21:28.166+01:00ESTE É O CRAVO QUE HOJE AVISTO<div style="text-align: left;"><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">este é o cravo que hoje avisto</span></div><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">quarenta e nove voltas deu a terra</div><div style="text-align: justify;">em sua indiferença programada</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">o chão forrou-se de pétalas caídas</div><div style="text-align: justify;">esperanças devolutas</div><div style="text-align: justify;">tragadas na fúria de interesses poderosos </div><div style="text-align: justify;">indiferenças cegas</div><div style="text-align: justify;">impotências surdas</div><div style="text-align: justify;">pois déspota e avarento é o poder</div><div style="text-align: justify;">fraca a cabeça e a voz do povo</div><div style="text-align: justify;">ai este triste povo!</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">resta a liberdade de exultar, 25 de abril sempre!</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">não será pouco, é certo</div><div style="text-align: justify;">todavia não basta</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">este é o cravo que hoje avisto</div><div style="text-align: justify;">ainda de pé, mas por cumprir</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjNfYKdaM8TaBv2w1ZFvWbpIjPc58nvQhvvhs4q5WRhO0jH7dpmWA7ND75zLH6Frm3JgXjwQTQpcXZNrO9-KOhB7UGfrXAo0xM_wAYELwEbWQkBK53ha-pv4aPPOix3KJUvEOklaO4k6NpNO-q2eVA5WHU5WGvoqt4as0eA27T27lwkrb3gj5r_Bi6p/s2224/IMG_1664.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="2224" data-original-width="1668" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjNfYKdaM8TaBv2w1ZFvWbpIjPc58nvQhvvhs4q5WRhO0jH7dpmWA7ND75zLH6Frm3JgXjwQTQpcXZNrO9-KOhB7UGfrXAo0xM_wAYELwEbWQkBK53ha-pv4aPPOix3KJUvEOklaO4k6NpNO-q2eVA5WHU5WGvoqt4as0eA27T27lwkrb3gj5r_Bi6p/w300-h400/IMG_1664.jpg" width="300" /></a></div><br /><div style="text-align: center;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div></span><div style="text-align: justify;"><br /></div></div>bluegirlhttp://www.blogger.com/profile/12724222872733597872noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4413189576536563360.post-4559710593144295002023-04-22T22:04:00.000+01:002023-04-22T22:04:47.887+01:00O SUICÍDIO DA TIA MIGUTINHA<p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><span style="text-align: justify;"><br /></span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><span style="text-align: justify;">Sempre adorei histórias de família, talvez porque meus Pais tão bem as sabiam contar. Deixo aqui uma delas, imagem de inocência e graça, que teve o condão de me despertar especial ternura, mesclada com divertimento.</span><span style="text-align: justify;"> </span></span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; min-height: 14px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">Minha Avó materna, de nome Francisca Felicíssima, nasceu num belo casarão de pedra, onde cresceu na companhia de vários irmãos e irmãs, assim chamados: José, Carlos, João, Fausto, Roque, Adelaide e Maria Augusta, esta, creio que a mais nova, a quem atribuíram o <i>petit nom </i>Migutinha.</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; min-height: 14px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; min-height: 14px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">Por essa altura, algures entre o final do século XIX e o início do século XX, os meninos, pelo menos esses meninos, não eram directamente criados pelos pais ou (apenas) pela mãe; tal tarefa competia a amas, contratadas e trazidas para casa, uma para cada um deles. </span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; min-height: 14px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; min-height: 14px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">As crianças viviam, assim, de certo modo apartadas do controlo parental e, talvez por isso, entregavam-se a brincadeiras desejavelmente evitáveis, como, por exemplo, explorarem as preciosidades dos sótãos e brincarem aos teatros com vestidos e outras roupas dos (mais) antigos, que se davam ao luxo de rasgar à tesourada, para uso mais adequado aos objectivos pretendidos. A mãe nem se apercebia, as amas reportavam os progressos dos meninos, quando interrogadas, talvez omitindo os disparates, afinal e em última análise de sua responsabilidade. </span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; min-height: 14px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; min-height: 14px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">Certo dia, nas suas brincadeiras, os irmãos da Migutinha pregaram-lhe uma partida ou algo do género, que a deixou deveras magoada. Em reacção, juntou algumas peças de roupa, enrolou-as numa pequena trouxa, e saiu de casa, atravessando a quinta até ao tanque de pedra onde jorrava, vinda de uma fresca nascente, a água cristalina que abastecia a casa e a propriedade, anunciando a intenção de se matar!</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; min-height: 14px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">Acabou por regressar mais tarde, não sei se por iniciativa própria se por intervenção dos irmãos ou da ama, sem ter concretizado o intuito de mergulhar no tanque até ao afogamento ou sabe-se lá o que tenha idealizado que seria a morte auto-infligida, em direcção à qual partira munida de umas roupitas.</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; min-height: 14px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">Portanto, não foi bem o suicídio, mas o quase suicídio da Tia Migutinha!</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; min-height: 14px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">E ainda bem, até porque, caso contrário, ter-me-ia privado do imenso gosto de a conhecer. Na verdade, ela veio a tornar-se na minha tia-avó preferida, desde logo, pela sua simpatia e doçura.</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; min-height: 14px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">Recordo que, sendo eu criança, a minha avó costumava levar-me, quando a visitava. Conservo uma recordação muito grata dessas ocasiões, não só pelas suas referidas características, mas também porque gostava muito da sua casa, situada em pleno campo, numa localidade um pouco fora da cidade em que, então, vivia. Ainda mantenho a lembrança da amplitude e luminosidade do salão em que nos recebia e do tesouro que aí guardava, elegantemente colocado sobre um móvel: uma caixinha de música, daquelas em que, mal se abre a tampa, surge uma bailarina a dançar. Que deleite, levantar aquela tampa e assistir ao salto e ao bailado da pequena dançarina! Fazia-o repetidas vezes, enquanto a avó e sua irmã conversavam em reconfortante sossego e harmonia.</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; min-height: 14px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">Mais tarde, em plena juventude, tendo já mudado de cidade, quando, em férias, regressava a casa de meus Pais, lembro-me de, frequentemente, a Mãe me sugerir que visitasse a tia Migutinha, que teria perguntado por mim e manifestado esse desejo. Por uma razão ou por outra – certamente por não ter ainda incorporada a certeza da inexorabilidade da passagem do tempo e da finitude das pessoas –, fui adiando a visita; depois, fez-se demasiado tarde, pois a Migutinha deixou de estar entre nós. Isto, entenda-se, no plano físico, porque, como decorre desta narrativa, ela permanece bem viva no meu coração.</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; min-height: 14px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">Em memória, deixo a fotografia da casa onde nasceram e cresceram minha Avó Francisca e minha Tia-avó Maria Augusta, Migutinha, lamentando que, hoje em dia, esteja praticamente reduzida a ruínas, como o meu sonho de menina de a vir a tornar minha.</span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: center;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></div><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhK8a-0LOvhU2PVo2L5oqP2I-ubkujbdATxaS-q9MeH1H9_QvSzRrM534_iMNoFgnIfK81C6bBnylO0-N2dJOmL1rf1X61GbVcPWUviSUNYht_8AdRMlAn1NL-i702OufDrRWhK3bxHEjWebtqyB1h69hARm3N-DOzS4O1NVoLTL7PvlCtw4ywSS-Oj/s995/247D4FE7-86B7-4E45-8762-62F2D51329A8_1_105_c.jpeg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><img border="0" data-original-height="789" data-original-width="995" height="318" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhK8a-0LOvhU2PVo2L5oqP2I-ubkujbdATxaS-q9MeH1H9_QvSzRrM534_iMNoFgnIfK81C6bBnylO0-N2dJOmL1rf1X61GbVcPWUviSUNYht_8AdRMlAn1NL-i702OufDrRWhK3bxHEjWebtqyB1h69hARm3N-DOzS4O1NVoLTL7PvlCtw4ywSS-Oj/w400-h318/247D4FE7-86B7-4E45-8762-62F2D51329A8_1_105_c.jpeg" width="400" /></span></a></div><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /><br /></span><p></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><br /></p>bluegirlhttp://www.blogger.com/profile/12724222872733597872noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4413189576536563360.post-96295885946570192023-02-16T20:41:00.001+00:002023-02-16T21:00:13.643+00:00UMA DECISÃO E UM COCKTAIL<p><span style="font-size: large;"> </span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify; text-indent: 14.2px;"><span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times New Roman;">Estava decidido, o último dia do seu passado seria aquele e faltavam nove horas e meia para terminar.</span></span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify; text-indent: 14.2px;"><span style="font-size: large;"><span style="font-family: Times New Roman;"><br /></span></span></p><p style="font-family: "Times New Roman"; font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify; text-indent: 14.2px;"><span style="font-size: large;">Tinha-lhe sobrado tempo para firmar a decisão. Vezes sem conta, ao longo da vida, ela assaltara o horizonte dos seus dias de diversas maneiras, dias que apenas tinham um ponto em comum, não lhe agradarem, ou melhor, serem-lhe nefastos, pesados, duros de suportar. Quer dizer, acumulara um passado de sonhos mortos, esperanças amordaçadas, o que é bem pior do que destruídas, feridas profundas que, indo bem além da superfície da pele, a deixavam crivada de marcas indesejáveis, ao menos para ele, não que as deixasse visíveis e, muito menos, procurasse ostentá-las, atirá-las à cara de terceiros. Talvez por isso, por não lhe notarem a superfície das marcas deixadas pelo dia-a-dia, não lhe interpretavam bem o ocasional mutismo, o quase sistemático afastamento, aquele permanecer acantonado, como quem parece fugir dos outros, embora bem possa dar-se o caso de esperar que lhe estendam a mão. Mas não mostrava a sua, a sua mão, e escondia os olhos, não se diz que estes são o espelho da alma? Então, como podia exibir, através deles, o que o passado lhe inscrevera, a ferro e fogo, quase nunca com mão branda e compostura doce? Não é que não olhasse os outros de frente, aliás, não compreendia, metiam-lhe mesmo confusão, as pessoas que falam com a boca, enquanto desviam o olhar. Não era o seu caso, entregava o olhar a quem calhava parar e dirigir-lhe a palavra, ou a quem, menos vezes – não por orgulho ou preconceito, antes por simples reserva, embora assim pudesse não ser entendido –, tomava a iniciativa de dirigir a palavra. Acontecia que, mesmo através da dádiva dos seus olhos, mais depressa o viam como <i>ave rara</i>, <i>orgulhoso</i>, <i>independente</i>. Referiam-lhe a <i>independência</i> como quem proclama uma virtude e, ao mesmo tempo, sublinha um defeito. Mas ele lá sabia, dera em ser ou tornar-se independente, muito simplesmente, por mera necessidade, por estar cansado de esperar apoio, um simples estender de mão, um convite ligeiro, sem compromisso, um reparar nas marcas da sua pele e nos seus olhos, os olhos com que olhava de frente, sem, contudo, deixar transparecer o que o passado lhe fizera, ou o que ele deixara o passado fazer-lhe. Isto, sim, era um pensamento que o irritava, desesperava, frustrava, sei lá!, era a pior marca do passado, essa de admitir que a culpa era sua, quer dizer, total e exclusivamente sua. Outras vezes, mais brando no rigor com que tinha por hábito mutilar-se, acalentava a esperança de que se tratasse apenas duma questão de azar, acaso, ou intenção maléfica, sabe-se lá de que bruxa ou fada-má. Imaginava-a, a bruxa ou a fada-má, a rondar o parto de que nascera o seu passado, movendo vestes negras à sua volta, à volta do seu corpo tenro, despido e mole, ainda atado pelo cordão umbilical. Na verdade, como tinha sido possível – e sim, agora pensava já em <i>tempo</i> passado definitivo –, que a sua vida tivesse sido aquela, tão seca, tão zero, tão nada. Olhava para trás e não sobrava quase nada a que pudesse agarrar-se, caso tentasse encontrar um sentido para aquilo, aquilo a que chamavam vida. As suas iniciativas de paz, boa vontade e amor tinham todas batido em ferro duro, resultando estilhaçadas em cacos rejeitados, indesejados, malvistos, muito mal amados.</span></p><p style="font-family: "Times New Roman"; font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify; text-indent: 14.2px;"><span style="font-size: large;"><br /></span></p>
<p style="font-family: "Times New Roman"; font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify; text-indent: 14.2px;"><span style="font-size: large;">Portanto, era agora, era hoje, era daqui a menos de nove horas, que encerraria o seu passado, este seria o último dia do seu passado.</span></p><p style="font-family: "Times New Roman"; font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify; text-indent: 14.2px;"><span style="font-size: large;"><br /></span></p>
<p style="font-family: "Times New Roman"; font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify; text-indent: 14.2px;"><span style="font-size: large;">Não partilhou a decisão, quem quereria saber? De resto, que sentido faria partilhar uma tal decisão? Ainda iam dizer que não percebiam o que queria dizer, fazer-se de parvos, na melhor das hipóteses, não perceberiam mesmo o que queria dizer, na pior das hipóteses, iriam retirar importância, alardear que o que ele queria era atenção, mesmo tratando-se dos mesmos que o apelidavam de <i>independente</i>. De facto, não só não fazia nenhum sentido como não lhe passou nem vagamente pela cabeça comunicar a decisão.</span></p><p style="font-family: "Times New Roman"; font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify; text-indent: 14.2px;"><span style="font-size: large;"><br /></span></p>
<p style="font-family: "Times New Roman"; font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify; text-indent: 14.2px;"><span style="font-size: large;">As horas iam-se escoando, aproximando o prazo limite, aquela última vigésima quarta hora, o dia do seu passado nunca-mais. Uma ideia parva fê-lo sorrir, a de que muitos haveriam de pensar e até dizer que ele tinha acabado com o futuro. Sempre ignorantes, pouco atentos, sem perceberem que o futuro não é senão acumulação de passado, ninguém, nas suas circunstâncias, decide prescindir do futuro, como pode prescindir-se do que não existe? O sorriso dissipou-se depressa, pois o relógio adiantava-se aos pensamentos, estranhamente ou talvez não, os pensamentos dele eram serenos, decorriam menos rápidos do que a passagem dos ponteiros que espartilham o tempo, essa outra invenção, pensou, ainda, mas sem querer alongar-se.</span></p><p style="font-family: "Times New Roman"; font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify; text-indent: 14.2px;"><span style="font-size: large;"><br /></span></p>
<p style="font-family: "Times New Roman"; font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify; text-indent: 14.2px;"><span style="font-size: large;">Recostou-se mais comodamente no cadeirão, estendeu a mão para o lado e pegou no copo, cheio da mistura que tinha preparado escrupulosamente como um cocktail. Antes de o ter levado à boca, o telefone tocou, coisa que já não sucedia há vários dias, como, aliás, era habitual. Noutra altura teria atendido, mas não naquela. Deu uma gargalhada de quem acha graça ao cinismo da vida, tão solícita quando desnecessário, e, deixando o telefone persistir nos gritos, bebeu, lentamente mas com determinação, o seu cocktail mata-passados. Depois, ainda lentamente, fechou os olhos, com um sorriso de alívio. Ou um esgar, como talvez alguém viesse a dizer, ao contemplá-lo na pose derradeira.</span></p><p style="font-family: "Times New Roman"; font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify; text-indent: 14.2px;"><span style="font-size: large;"><br /></span></p>
<p style="font-family: "Times New Roman"; font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify; text-indent: 14.2px;"><span style="font-size: large;">Eram vinte para a meia noite. Portanto, tinha cumprido a sua decisão, a sua última decisão, nem outra coisa seria de esperar. O passado acabava de perder o seu poder sobre ele.</span></p><p style="font-family: "Times New Roman"; font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify; text-indent: 14.2px;"><span style="font-size: large;"><br /></span></p><p style="font-family: "Times New Roman"; font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify; text-indent: 14.2px;"><span style="font-size: large;"><br /></span></p><p style="font-family: "Times New Roman"; font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: center; text-indent: 14.2px;"><table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><tbody><tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj5n2jRazwukiA0YqQbo0tag17Y9sc_etDBRATEKK6YcnuqIPhrTEQv9Go77iTQ4_EDSut38_3kNHTOpDPQxF53-Kublj6N6d2qHNk-eAXQlsGPbXHYFn3SFAeSAzJJRzZOoyVs2lzzZGSlZipPKAO5_pqav6ECEFeAGqREbU7aNPrMAI87mVCXCIpO/s1024/CC56AF01-5123-4E1F-9FDB-10B8714D3087_1_105_c.jpeg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="768" data-original-width="1024" height="300" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj5n2jRazwukiA0YqQbo0tag17Y9sc_etDBRATEKK6YcnuqIPhrTEQv9Go77iTQ4_EDSut38_3kNHTOpDPQxF53-Kublj6N6d2qHNk-eAXQlsGPbXHYFn3SFAeSAzJJRzZOoyVs2lzzZGSlZipPKAO5_pqav6ECEFeAGqREbU7aNPrMAI87mVCXCIpO/w400-h300/CC56AF01-5123-4E1F-9FDB-10B8714D3087_1_105_c.jpeg" width="400" /></a></td></tr><tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;"></td></tr></tbody></table><br /><span style="font-size: large;"><br /></span></p><p style="font-family: "Times New Roman"; font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify; text-indent: 14.2px;"><span style="font-size: large;"><br /></span></p><p style="font-family: "Times New Roman"; font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify; text-indent: 14.2px;"><span style="font-size: large;"><br /></span></p><p style="font-family: "Times New Roman"; font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify; text-indent: 14.2px;"><span style="font-size: large;"><br /></span></p><p style="font-family: "Times New Roman"; font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify; text-indent: 14.2px;"><br /></p>bluegirlhttp://www.blogger.com/profile/12724222872733597872noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4413189576536563360.post-55907340505725900412022-09-15T20:36:00.004+01:002022-09-15T20:48:56.864+01:00DA LEITURA À GUERRA NA UCRÂNIA<div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"> </span></div><blockquote style="border: none; margin: 0px 0px 0px 40px; padding: 0px;"><div style="text-align: center;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><i>OU</i></span></div></blockquote><div style="text-align: center;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><i>De Irmãos Inesperados a Assassinos de Irmãos</i></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><span><span>A leitura tem sido uma das mais gratas companhias na minha vida. Para além do conhecimento e da evasão que proporciona, o que mais prezo </span><span>nela é o <i>diálogo</i> que permite estabelecer com o pensamento e a emoção vertidas pelo Autor, através das palavras, </span></span><i>diálogo </i><span>esse, feito de identificação, contraponto, espanto, reconhecimento, interrogação, resposta, dúvida e muito mais.</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span><span style="font-family: inherit; font-size: large;"> </span></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><span><span>Certos autores afirmam que o livro, uma vez dado a público, deixa de lhes pertencer, passando a ser pertença dos leitores. Chegam alguns a propor que, daí em diante, o verdadeiro escritor é o leitor e não eles. Obviamente, não acredito, levo este tipo de asserção à conta de modéstia (falsa modéstia?) ou provocação (benigna)</span></span><span>, mas, ultrapassada a letra, creio entender o que pretendem significar: referem-se, por certo, àquela espécie de <i>troca</i>/<i>identificação </i>mental e emocional que a leitura (certas leituras) proporciona ao leitor (empenhado, atento e ávido dessa <i>transacção, </i>por<i> </i>vezes<i>, </i>mesmo<i>, simbiose</i></span><span>), tornando-o parte daquele </span><i>diálogo</i><span> com o escritor, ou melhor, com a <i>entidade</i>, liberta da pessoa real do escritor, que subsiste dele ou para além dele, nas ideias e emoções que entregou ao livro.</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><span>Exemplifico: acabo de ler o livro <i><b>IRMÃOS INESPERADOS</b></i>, de <b>Amin </b></span><span><b>Maalouf</b>, distopia com ponto de partida num cenário em que o mundo está à beira da guerra nuclear (obviamente devida à loucura dos homens...), quando a intervenção de um <i>povo</i> <i>superior</i> (para o chamar de alguma maneira) vem sustar tão medonho risco, criando, em contrapartida, uma série de eventos assustadores (eles próprios, a princípio, tomados como manifestações iniciais da receada catástrofe nuclear), <i>povo</i> esse que tem o poder de curar as doenças e evitar a morte.</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">Este o contexto em que se esgrime uma reflexão sobre o estádio a que a humanidade chegou, a especulação sobre a origem, a sede e as intenções ocultas do <i>povo superior</i> (salvador), o papel que a morte (o medo da morte) desempenha na própria definição/comportamento da natureza humana (tal como a conhecemos e se comporta), e, em contrapartida, sobre o peso (bem maior) que a morte representa no <i>povo superior</i>, nos (raros) casos em que a não pode evitar.</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">Sob o ponto de vista dos humanos, essa reflexão parte de uma divisão fulcral: entre os que vêem com esperança a presença/intervenção salvadora do <i>povo superior</i>, que apoiam, e aqueles que a repudiam; o antagonismo de posições radica no facto de os primeiros considerarem que a espécie humana, por si, é irrecuperável, só podendo ser salva (de si própria...) mediante uma intervenção controladora externa (a salvação pressupõe controlo), enquanto os outros partem do princípio de que essa intervenção (porque necessariamente controladora) implicando a humilhação da espécie humana, equivale ao seu banimento enquanto tal (ou seja, como até agora a conhecíamos, enquanto um <i>todo</i> poderoso e dominador, nomeadamente das restantes espécies).</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">No duro momento que atravessamos – em que, ainda nem sequer saídos da inédita pandemia do <i>novo</i> coronavirus, com todos os seus efeitos, directos e indirectos, na saúde e na vida de milhões de seres humanos e no panorama económico e social mundial, nos deparamos perante uma avassaladora e cruel guerra (não o são todas?), infligida por um oligarca psicopata (Putin) a um país vizinho (Ucrânia), em condições de falta de justificação e brutalidade (mas assim são as <i>leis da força</i>, infundadas e brutais), em grau apenas igualado pelo nível de bravura dos agredidos e resistentes —, não podemos deixar de ponderar a questão da natureza humana, essa imperfeita natureza, que tanto é capaz da barbaridade mais pre-histórica como da heroicidade e solidariedade mais puras. No seu conjunto, qual a evolução desta espécie, para que lado pende o balanço da sua ambivalência ou bipolaridade, o seu destino é subsistir, autodestruir-se ou ser destruída? E, neste último caso – e seguindo a linha reflexiva da ficção –, poderá a destruição ocorrer por via da (hipotética) <i>dominação benigna </i>(?) de entidade terceira, (um povo <i>enigmático</i>, talvez <i>paralelo</i>) que nos observa e está pronto a actuar para evitar a nossa loucura?</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">Estas são questões que já alimentavam o meu pensamento (a minha incurável inquietação) e lamento afirmar que – naquilo que muitos considerarão pessimismo, mas reputo de simples realismo –, tendo a considerar que a <i>redenção</i> está na <i>extinção</i> da espécie humana.</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><span> </span><span> </span></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><span>Na verdade, </span><span>não creio que tenha conserto, isto é, que seja passível de encontrar um equilíbrio positivo,</span><span> </span><i>versus</i><span> </span><span>tensão permanente, entre o <i>bem</i> e o <i>mal</i>, as duas faces de que</span><span> </span><i>padece</i><span> </span><span>o mundo, porque são a base da sua concepção ou mero surgimento!</span></span></div><div><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">Também não acredito em entidades redentoras, basta atentar na base de toda a, todavia maravilhosa, Natureza, a do verso e do reverso, do bem e do mal, da felicidade de uns ser a desgraça dos outros. Até as plantas servem de alimento aos animais e estes de alimento uns aos outros e todos de alimento aos homens e estes – pasme-se! – de alimento uns aos outros…</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><span>É neste momento histórico que me <i>calha</i> este livro! E mergulho na aludida identidade temática/reflexiva, por via da identificação com a personagem <b>Ève</b>, que não lamenta, antes celebra, a possibilidade de a humanidade ser <i>destronada</i> pelo <i>povo superior</i>:</span><span><span> </span><i><b>Os amigos de Empédocles avançam sempre,</b></i><i><b> sem se envolver nas nossas querelas, sem se deixarem distrair com as nossas crenças estúpidas. E encontram-se hoje muito à nossa frente, em todos os domínios do conhecimento, e também na arte da felicidade… É a eles que quero beber!</b></i> (cfr. p.68)</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><span>Em contrapartida, o personagem </span><b><i>Alec</i> <i>Zander</i></b><span> (pseudónimo do protagonista narrador <b>Alexander</b>) é bem outra: … </span><i style="font-weight: bold;">supondo que os “compatriotas” de Agamémnon e Demóstenes são realmente o que parecem ser, tão omnipotentes, tão perfeitos, uma humanidade nitidamente superior, o que é que nós, eu e os meus </i><i style="font-weight: bold;">semelhantes, nos</i><i style="font-weight: bold;"> iríamos tornar? … Uma espécie inferior, um esboço final de criação sobre o qual os arqueólogos, paleontólogos e pesquisadores de exotismos se debruçarão amanhã?… Temos os nossos defeitos, dizia para mim mesmo, somos até muitas vezes insuportáveis, criminosos e bárbaros. Mas somos nós!</i><span> (cfr. mesma página)</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">Para mim, estes pensamentos – a reflexão de que emergem e que suscitam –, revelam-se da mais acutilante realidade, particularmente, no triste e penoso momento que vivemos, mas que, por outro lado, não passa do simples momento que somos!</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><span>E, repito, estou do lado de <b>Ève</b>, assim:</span><span><i><b> Ève dá a impressão de ter sido despertada de repente a meio do mais belo sonho. Ela admite-o, aliás. “O que está a acontecer há três semanas é o que venho pedindo desde a infância, sem ousar acreditar. Que uma força, surgida sabe-se lá de onde, declarasse os homens incompetentes e os pusesse sob tutela; que lhes confiscasse as bombas, os mísseis, as bases militares, os palácios, as prisões, as fábricas de gás, os laboratórios, os matadouros… E, de súbito, quando já nada esperava, o meu sonho tornou-se realidade!” </b> </i>(cfr. pp. </span><span>194/195</span><span>)</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><i><b>A julgar por Ève, o que se desenrola à frente dos nossos olhos é nada mais, nada menos que a agonia do velho mundo, isto é, do mundo tal como o conhecemos. O seu desaparecimento afigura-se-lhe tão inelutável que já fala dele como se se tratasse de um facto estabelecido.</b></i></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><i><b>“Os historiadores que se debruçarem amanhã sobre a nossa civilização dirão que estava tão corroída que bastou um piparote para que se afundasse. O golpe de misericórdia veio de onde nunca se esperara, mas acabaria por chegar, em breve, de uma forma ou de outra. Tínhamos inventado armas mortais que haviam acabado por se voltar contra nós. Nesta mesma noite, uma máquina infernal — nuclear, bacteriológica ou química — podia ter explodido numa grande cidade, matando dezenas de milhares de pessoas e causando pânico global. Com alguma sorte, poderíamos adiar o desastre por mais um ano, dois anos, cinco anos… Mas tê-lo-íamos evitado indefinidamente? Certamente que não. Os ódios apenas aumentaram, e a tecnologia preparava para eles — umas vezes com conhecimento de causa, outras com perfeita inocência — os instrumentos que lhes permitiriam desencadear-se e destruir tudo. Qual a probabilidade de escaparmos de um cataclismo? Nenhuma. Foi por isso que os nossos contemporâneos se agarraram desta maneira aos seus salvadores inesperados.”</b></i></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><i><b>“E achas mesmo que todas essas pessoas que se estão a manifestar fazem a mesma análise que tu?”, perguntei-lhe eu.</b></i></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><i><b>“Talvez não usem o mesmo vocabulário, mas estão todas com o mesmo estado de espírito, causado pela mesma realidade calamitosa e pelos mesmos medos.”</b></i></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><span><i><b>Em resposta, limitei-me a franzir os lábios enigmaticamente. Não consigo dizer se a minha vizinha romancista está a ver bem a coisa ou se está enganada. É verdade que às vezes tem tendência para se entusiasmar, mas aprendi a nunca aceitar as suas “iluminações” de ânimo leve.</b></i> (Cfr. pp. </span><span>214/215</span><span>)</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;"><span style="font-family: inherit;"><br /></span></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;"><span style="font-family: inherit;"><i>Nota</i>: Este texto foi escrito há uns meses. Infelizmente, não perdeu actualidade.</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><i><br /></i></span></div><div style="text-align: center;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: center;"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgOwA2uMxttANIDxlLNVbzowvcI7lGraU2_gIsdLctkvOwMIgXOy7qhPrXjsCQooJ-N6boVoaXqtqUkCnIjdm4lDjcURG1k1nfQVElC6wJPc-iEoVp-BuznS8q0CGp9arqibo2m06ue7z_f_eITE614A6wHfy3cFqPz_9g3ZimJb4N2Z8FLZQ5G0MIY/s166/7-IRMA%CC%83OS%20INESPERADOS.jpeg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="166" data-original-width="110" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgOwA2uMxttANIDxlLNVbzowvcI7lGraU2_gIsdLctkvOwMIgXOy7qhPrXjsCQooJ-N6boVoaXqtqUkCnIjdm4lDjcURG1k1nfQVElC6wJPc-iEoVp-BuznS8q0CGp9arqibo2m06ue7z_f_eITE614A6wHfy3cFqPz_9g3ZimJb4N2Z8FLZQ5G0MIY/w265-h400/7-IRMA%CC%83OS%20INESPERADOS.jpeg" width="265" /></a></div><br /><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: justify;"><br /></div>bluegirlhttp://www.blogger.com/profile/12724222872733597872noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4413189576536563360.post-68206386597589874742022-07-13T18:42:00.005+01:002022-07-13T19:10:34.196+01:00A CLEPSIDRA: TEMPO DE DESCONTAR O TEMPO<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify; text-indent: 14.2px;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify; text-indent: 14.2px;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">Chega um momento em que, de forma mais ou menos súbita (e cortante), tomas consciência de que já não é tempo de contar o tempo, mas antes de o descontar. Sei que parece um lugar comum, e certamente o será para quem ainda não foi atingido por esta banal realidade; todavia, para quem o foi, a questão reveste-se de contornos subtis, embora gritantes, e induz reflexão e comparações que, até então, não ocorreriam (simplesmente, não poderiam ter ocorrido).</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify; text-indent: 14.2px;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">Por exemplo, compreendes a <i>essência</i> da canção <i>Avec le temps</i> e o porquê do fascínio que, desde jovem, exerceu sobre ti (e associas a recordação dos filmes do Ingmar Bergman, à cabeça, <i>Morangos Silvestres</i>, também vistos e pressentidos com tanta acuidade, ainda antes do tempo…). Mais curioso, pensas que o tempo ido é como os teus mortos, os entes queridos que já partiram, quero dizer, morreram.</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify; text-indent: 14.2px;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">Não pretendo ser confusa, passo a explicar ou, pelo menos, a ensaiar uma tentativa de explicação: aquela frase que ainda ontem pronunciavas a propósito de tantos episódios da tua era passada, a frase, <i>parece que foi ontem</i>, deixa de fazer sentido. Nada <i>parece que foi ontem</i>, nem a infância, nem a adolescência, nem o tempo dos primeiros amores ou dos últimos (sim, porque agora sabes que foram os últimos, embora também saibas que nada é definitivo, tudo se transforma e, curiosa e paradoxalmente, tudo permanece em aberto…); nem o que aconteceu, sei lá!, nos anos ou meses mais recentes <i>parece que foi ontem</i> ou sequer anteontem. Apenas <i>foi</i> e a memória do que foi esbate-se de cada vez que te bate à porta (ou lhe bates à porta) e deixas de distinguir a nitidez da imagem, a clareza dos sons e inclusive, talvez, o âmago dos sentimentos, último bastião de resistência. Mesmo que pretendas desfiar a linha da tua vida, organizar arquivos, fazer balanços, nem que seja apenas por um desejo (ou obsessão?) de <i>limpeza</i> – não para concluíres saldo, não vale a pena apurar o saldo do passado, precisamente porque o passado já se cumpriu e não se pode mudar –, facilmente perdes o fio da meada, derivas por caminhos paralelos ou não tanto que, aliás, a vida nada tem de linear, só na tua cabeça à procura de ordem, tentativa de organizar o caos, de preparar o momento para que a clepsidra desconta, mais ou menos apressadamente (consoante o cansaço da tua espera). É aí que entra a canção citada, porque, na verdade, <i>Avec le temps, va, tout s’en va</i>…</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify; text-indent: 14.2px;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">E associas os teus mortos, os teus mortos que não podes dizer que morreram <i>parece que foi ontem</i>. Não foi ontem, foi quando foi e, tal como com o tempo, a princípio, quando ainda jaziam à vista, estendeste a tua mão para o alto, os dedos prolongados em frente e tiveste a sensação de que esses dedos (quase) tocavam os etéreos dedos deles, embora sabendo que pela última vez. Até idealizaste a cena do tecto da Capela Sistina, aquela em que o dedo de Deus se estende em direcção ao de Adão; só que, neste caso, pela mão de Michelangelo, para a eternidade, enquanto no teu caso – do (ansiado) toque entre a ponta dos teus dedos e a dos teus mortos –, tal contacto, pura idealização (ilusão sabida ilusão), se desvanece e, no momento seguinte, já não é possível, porque os teus dedos ficaram no mesmo lugar, esticados de meter dó, enquanto os deles, dos teus mortos, deslizavam para o desconhecido ou para lugar nenhum, à velocidade dos fenómenos espaciais.</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify; text-indent: 14.2px;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">E, à medida que o tempo passa, e muito contra tua vontade e com muita raiva tua, deixas de lhes recordar as feições, as feições dos teus mortos, não mais ouves o canto das suas vozes, das suas gargalhadas e dos seus choros, e os episódios que viveste com eles, bons ou maus – não há vidas perfeitas! – diminuem no rigor dos contornos. Talvez apenas permaneça a memória dos sentimentos ou, tão só, uma névoa dessa memória. O mesmo sucede com o teu tempo ido, mas nem isso te impede de, embora com estranheza e sentimento de culpa (ou algo semelhante), começares a <i>senti-los longe</i>, <i>muito longe de ti</i>, assim como longe está a criança e tudo o mais que foste, em tempos que não mais <i>parece que foram ontem</i>.</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify; text-indent: 14.2px;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">Em suma, as memórias remotas do tempo e das pessoas que te morreram e já não <i>parece que foi/foram ontem</i> permanecem, mas acomodadas na categoria das memórias da memória, uma outra forma ou um outro nível de identidade e de pertença, não sei bem a quê. Também não interessa saber. As coisas são como são e ter consciência delas, por duro que possa parecer, é melhor do que não ter, ao menos para quem não aprecia enganos, sobretudo para quem não aprecia auto-enganos.</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify; text-indent: 14.2px;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">Tudo isto para dizer que decidi deixar de ter o cabelo castanho claro (um pouco mais claro do que o seu natural), finalmente outorguei liberdade aos meus cabelos brancos. Ainda vai em poucos centímetros, não dá para ver se são muitos ou poucos, com distribuição homogénea ou não, logo se vê. Obviamente sei que vou parecer mais velha, mas que interessa o parecer quando comparado com o ser! E o ser, o que é, é que me tenho deixado fascinar pela clepsidra, <i>p</i><i>lim, plim, plim</i>, a água a pingar inexoravelmente e eu a pensar nos projectos que se acumulam e para os quais não vislumbro horizonte de realização útil. <i>Who cares</i>?, <i>plim, plim, plim, Avec le temps, Morangos S</i><i>ilvestres</i><i>…</i>, os dedos a deixar de se tocar, tretas, mas tretas que não podia deixar passar em vão, afinal sempre fui dada a reflexões e a (des)organizar as ideias, proporciona-me um certo conforto, isto de <i>destralhar</i> a mente (ou será o espírito?)… </span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify; text-indent: 14.2px;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">Estou a desfrutar do processo de libertação dos cabelos brancos. De resto, se não gostar do efeito, posso sempre voltar a pintar…</span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify; text-indent: 14.2px;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: center; text-indent: 14.2px;"></p><table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><tbody><tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjxI4aoE4sS7wRvi0JOfAUeht6gy9p3j7Hq3qlhFRnTAwGk5dCoqm7LDn2c9ikZ0HJukMFZ1h3vvuO3RiqybWCyBR8l4mjX2eb6AYJQvzQXnACxS-xlCKweHwRbT627itVIHtQa8pT0KgcCrWpwk1yepiGiBPv9KMyOSLi37dANkcQH8SkZ_CRaQKSK/s685/a-criacao-de-adao.jpg.webp" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><img border="0" data-original-height="527" data-original-width="685" height="308" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjxI4aoE4sS7wRvi0JOfAUeht6gy9p3j7Hq3qlhFRnTAwGk5dCoqm7LDn2c9ikZ0HJukMFZ1h3vvuO3RiqybWCyBR8l4mjX2eb6AYJQvzQXnACxS-xlCKweHwRbT627itVIHtQa8pT0KgcCrWpwk1yepiGiBPv9KMyOSLi37dANkcQH8SkZ_CRaQKSK/w400-h308/a-criacao-de-adao.jpg.webp" width="400" /></span></a></td></tr><tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;"><span style="font-family: inherit;"><span style="font-size: x-large; text-indent: 14.2px;">(</span><i style="text-indent: 14.2px;"><b><span style="font-size: medium;">imagem obtida em pesquisa Google</span></b></i><span style="font-size: x-large; text-indent: 14.2px;">)</span></span></td></tr></tbody></table><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span><p></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify; text-indent: 14.2px;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify; text-indent: 14.2px;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify; text-indent: 14.2px;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify; text-indent: 14.2px;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p>bluegirlhttp://www.blogger.com/profile/12724222872733597872noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4413189576536563360.post-2653901054522808412022-06-08T21:19:00.003+01:002022-06-08T21:33:13.700+01:00A ILHA DAS CABEÇAS ROLANTES<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: times; font-size: large;"><br /></span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: times; font-size: large;">Soprava um vento agudo, daqueles que assobiam histórias por contar; forçava-a a caminhar inclinada para a frente, atrapalhando-a na pressa de chegar ao cais onde o barco aguardava, impaciente, pronto a largar (pois, quanto mais depressa empreendesse a travessia, mais depressa estaria de regresso, afastado da ilha, o inóspito e acanhado rochedo onde apenas morava um farol desactivado e a casa, abandonada, do faroleiro).</span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: times; font-size: large;">As ondas agitavam-se numa ameaça de crescendo, em perfeita sintonia com a força do vento e, tal como este, soavam alto, no que, para quase todos, constituía, sem sombra de dúvida, uma ordem de distância, mas, para ela, representava simples apelo. Sentia-se atraída por aquela <i>música</i> que, aos ouvidos dos restantes, não passava de monstruoso ruído, ameaça de forças misteriosas, sabia-se lá quais.</span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: times; font-size: large;"><span>O capitão do barco incluía-se neste grupo, o de quase todos excepto ela, mas não tivera coragem de recusar o inusitado pedido, transportá-la, a ela e aos seus pertences, até à <i>ilha maldita</i> — como a haviam designado após o encerramento do farol e a </span><i>partida</i><span> do último faroleiro.</span></span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: times; font-size: large;">A meia dúzia de casas, agora em ruínas, que completara a paisagem havia sido progressivamente abandonada, talvez pelas razões que conduziram ao desfecho final, aquele de que ninguém pretendia ou ousava falar, talvez por sequer lhe conhecer os exactos contornos, talvez pelas tenebrosas suspeitas que não podiam eximir-se de conjecturar.</span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: times; font-size: large;">Mas agora, ali estava ela, ofegante, puxando um trólei que, diferentemente da restante carga, não mandara previamente entregar ao capitão do barco, talvez por conter os seus bens mais preciosos, aqueles cuja conservação lhe interessava garantir a todo o custo — pelo menos foi o que ele pensou.</span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: times; font-size: large;"><br /></span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: times; font-size: large;">Quando ela o contactara a pedir aquele serviço, ele tentara sondar as suas motivações para tão desajustada pretensão, mudar-se para tal e tão suspeito isolamento. Ela evadiu resposta, aliás, de modo não inteiramente contundente, mas definitivamente eficaz, deixando claro que ele não tinha nada com isso. Ele abordou a questão num outro ângulo, insinuando as sombras que pairavam sobre a ilha, dados os acontecimentos aí ocorridos, mas, às perguntas concretas dela, não foi capaz de apresentar factos definitivos, claros e comprovados, porque, verdadeiramente, nem ele nem ninguém os conhecia (o aparecimento sucessivo de cabeças rolando na praia do lado de cá, à medida do desaparecimento dos parcos habitantes da ilha, nunca fora esclarecido, tanto mais que, para além do resto, os correspondentes corpos nunca se encontraram…).</span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: times; font-size: large;">Chegados a este ponto, ela, no seu tom incisivo, confrontou-o com um surpreendente maço de notas e perguntou, de modo seco e definitivo, que não dava margem a mais hesitações ou tregiversações: — Responda-me, apenas, se está interessado em levar-me lá, a mim e a meia dúzia de caixotes que lhe serão entregues na véspera da partida, a efectuar depois de amanhã. Se não for o senhor, há-de ser outro. </span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: times; font-size: large;">Ele sabia-a despossuída de razão, mais ninguém estaria disposto a prestar aquele serviço, mas, perante o volume de notas exibido e, sobretudo, mais qualquer coisa, talvez a força hipnótica que exalava dos olhos dela, perfurando os seus, aceitou. Ainda a advertiu da necessidade de antecipada consulta das condições meteorológicas para o dia pretendido, pois, sob certas condições, aquele mar tornava-se deveras perigoso, mas ela recusou-se a aceitar adiamentos, enfiou-lhe as notas na mão, virou costas e, elevando um braço, disse: – Até depois de amanhã, sexta-feira, nessa altura dou-lhe o resto do dinheiro. Ele espantou-se, mas da sua boca aberta não saiu som que a conseguisse alcançar, estava já fora de vistas, mas esse som exprimiria a dúvida sobre que dinheiro a mais, afinal não era já imensamente desproporcionada a quantia entregue, elevadíssima para tão curta travessia!? Bem, afinal talvez ela soubesse que o preço daquele transporte não se media em simples questão de distância, talvez. Afinal, quem era aquela mulher? Porque quereria mudar-se para um sítio tão inóspito e sinistro, para mais, sozinha? Assim fluíram, inquietos, os pensamentos do capitão.</span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: times; font-size: large;"><br /></span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: times; font-size: large;">Quando, finalmente, chegou ao cais, ele aguardava-a, preocupado, sem saber muito bem como abordar a questão. Enquanto hesitava em carregar o trólei e ajudá-la a subir para o barco, que balançava perigosamente nas vagas rentes ao cais, disse-lhe: – A senhora há de desculpar, mas, como vê, o mar está muito agitado, repare só na altura das ondas, e a velocidade do vento não para de aumentar, pelo que a travessia não pode ser efectuada em condições de mínima segurança. Temos de adiar, aliás, a previsão para amanhã é bem mais favorável e, por certo, apenas um dia de espera não deverá causar-lhe grande transtorno.</span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: times; font-size: large;">Sem sequer uma hesitação, ela retirou novo maço de notas do bolso do impermeável azul eléctrico que a cobria do pescoço até à borda das botas de borracha, enfiou-lho na mão e disse: – Tem de ser hoje, não há alternativa, contrato é contrato, e pode crer que os riscos de incumprimento serão bem superiores aos do mau tempo…</span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: times; font-size: large;">Intrigado e dominado por um medo irracional, sugerido por esta ameaça incompreensível, ele resignou-se ás ordens dela e, em menos de dez minutos, entranharam-se naquela rota de alturas gigantescas e mergulhos profundos, antecipando, a cada segundo, o momento em que iriam ser depositados no fundo do mar, empurrados pelos destroços da frágil embarcação. Estes eram os receios dele, no meio do dantesco esforço por controlar os nervos e o barco, no cerne de tão funesto temporal. Quanto a ela, permanecia numa calma espantosa, apenas exibindo tensão na forma como agarrava as mãos a um varão metálico, tentando não ser arrastada borda fora.</span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: times; font-size: large;">Em menos de vinte minutos de tormenta, que a ele pareceram anos, acostaram no cais, quase desfeito, da ilha. Ele ancorou o barco conforme pode, ajudou-a a sair e, aliviado por ter conseguido chegar inteiro, mas revoltado perante a arbitrariedade das ordens dela, começou a descarregar os caixotes, sob a chuva torrencial que lhe deslizava para as costas, escorrida da gola do impermeável, já de si todo encharcado da travessia. Uma vez concluída a tarefa, deixou-se ficar, enquanto ela, encostada ao trólei, o observava com ar interrogativo. Como se condicionado por ordem irrecusável, ele ofereceu-se para a ajudar a transportar os pertences, ao que ela anuiu, com naturalidade e sem surpresa, como se isso fosse o mais natural deste mundo, como se ele acumulasse as funções de marinheiro com as de carregador. Ao fim de um tempo, estava tudo dentro da casa do faroleiro. Ela sorriu pela primeira vez — <i>Que sorriso lindo, parece outra pessoa</i>!, pensou ele, estranhamente conquistado — e convidou-o a tomar uma bebida quente, enquanto abria um dos caixotes e retirava duas canecas e, da mochila, um termos. Despejou café nas canecas e estendeu-lhe uma delas. Ele segurou-a, grato, e levou-a à boca, deixando-se inundar pelo aroma e quentura da bebida. Ela fez o mesmo, sentada num dos caixotes por abrir.</span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: times; font-size: large;">Terminado o café, ela levantou-se e encaminhou o homem até à saída. Desejou-lhe boa viagem de regresso e, sem mais, fechou a porta, deixando-o exposto ao temporal que continuava a violentar o exterior, enegrecendo o rochedo mais do que negro ele já era por natureza. O vento uivava por entre as frinchas das janelas e, através dos vidros enevoados, ela viu-o caminhar apressado para o barco, num desespero por sair dali — <i>Óptimo</i>!, pensou ela, enquanto sorria num esgar trocista e impiedoso.</span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: times; font-size: large;">Chegado ao barco, ele hesitou, mas acabou por entrar, sempre ficaria abrigado da chuva e do vento, mas não se atreveu a dar início à viagem de regresso, não enquanto aquelas condições permanecessem. Sabia que não estava seguro, o barco podia ser atirado contra os rochedos, mas a perspectiva de ser engolido pelo mar afigurou-se-lhe ainda mais aterradora, pelo que decidiu aguardar. Desconhecia que, duma das janelas da casa do faroleiro, um par de olhos frios e impacientes o observavam, desejosos de o verem fora dali, como se o que quer que ali tivessem ido fazer requeresse a mais pura solidão ou não pudesse de todo ser observado por testemunhas imprevistas (e indesejadas).</span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: times; font-size: large;">Entretanto, uma escuridão maior foi-se instalando, à medida do avanço das horas, o vento foi amainando, a chuva recolheu às nuvens e as ondas, se bem que agitadas, foram-se acalmando. O marinheiro aventurou-se, finalmente, a regressar, não sem lançar um olhar derradeiro à casa do faroleiro, que mal se divisava, às escuras. Então, viu uma réstia de luz. Seguindo-lhe o rasto ascendente, deparou com o topo do farol, o farol desactivado que voltara a acender-se sobre o mar à volta. Sentiu uma pressa ainda maior de zarpar dali. O motor do barco roncou na sua potência máxima.</span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: times; font-size: large;"><br /></span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: times; font-size: large;">(<i>Caríssim@s leitores,</i></span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: times; font-size: large;"><i>Se passarem por cá e quiserem saber o que se passou a seguir, por exemplo, se o marinheiro chegou são e salvo, por favor deixem comentário nesse sentido</i>... 😉)</span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: times; font-size: large;"><br /></span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: center;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgizF2fq7WBNDYI74LW11glTnbkH6KyC7fUUwT4ab4QALJ0tjdXYTFgT6TXCLMW-56MB2YvQiG9aPOisjld0QXhRWqaYDEa_upEhZdICHPoq1KSSqlKp-TQd5t5f7_uQ5U78bEPJt2crCbWVQKcnmJ3XZF7JA-BEAkt4x79cmv-Umg53rCUESTKLH_Z/s1024/855417A9-F278-4CE5-8189-84A82417954B_1_105_c.jpeg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1024" data-original-width="768" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgizF2fq7WBNDYI74LW11glTnbkH6KyC7fUUwT4ab4QALJ0tjdXYTFgT6TXCLMW-56MB2YvQiG9aPOisjld0QXhRWqaYDEa_upEhZdICHPoq1KSSqlKp-TQd5t5f7_uQ5U78bEPJt2crCbWVQKcnmJ3XZF7JA-BEAkt4x79cmv-Umg53rCUESTKLH_Z/w300-h400/855417A9-F278-4CE5-8189-84A82417954B_1_105_c.jpeg" width="300" /></a></div><br /><span style="font-family: times; font-size: large;"><br /></span><p></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: times; font-size: large;"><br /></span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: times; font-size: large;"><br /></span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: times; font-size: large;"><br /></span></p><blockquote style="border: none; margin: 0px 0px 0px 40px; padding: 0px;"><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><br /></p></blockquote>bluegirlhttp://www.blogger.com/profile/12724222872733597872noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4413189576536563360.post-56896641535995716462022-02-07T22:30:00.000+00:002022-02-07T22:30:11.761+00:00O MEU PRIMO RAUL PARTIU<div style="text-align: justify;"><span style="font-family: arial; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: arial; font-size: large;">Um menino com ar vivo, olhos grandes, amendoados, brilhantes, cabelo preto, caracóis (?), a vida toda pela frente, um entusiasmo que não passa despercebido.</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: arial; font-size: large;"><br /></span></div><span style="font-family: arial; font-size: large;"><div style="text-align: justify;">É o meu primo Raul, uns poucos anos (quatro, cinco?) mais novo do que eu, naquele dia longínquo em que o convidámos para almoçar lá em casa, almoço do meu aniversário, eu no início da adolescência, ele para lá caminhando. Veio connosco, meu Pai e eu, do Liceu, era 17 de Dezembro de um ano muito ido, embora para a conservação da memória, esta de que venho falar, pareça o ano ontem.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Em nossa casa, os dias de aniversário eram celebrados com muito carinho, um ou dois presentes – nada de grandes aparatos e muito menos carestias – e almoço melhorado, sempre a culminar no bolo russo ou bolo enrolado – torta de chocolate –, que a Mãe, com suas delicadas mãos, terminava num acabamento de açúcar, desenhado com finos traços decorativos. A mesa, vestida de toalha festiva, era enfeitada, as mesmas mãos, com bombons animados de variadas cores, feitos de chocolate recheado com um creme ligeiro. Não recordo se havia o hábito de se cantarem os <i>Parabéns</i> e soprarem velas, creio que não, mas aqueles eram ditos do fundo do coração, logo pela manhã, – nesse dia, sendo eu a destinatária, assim: Viva a Bélita! Tudo se restringia ao nosso núcleo familiar, pais, avó que connosco vivia, meu irmão e eu. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Contudo, naquele dia, por razões que me fugiram da memória, convidámos aquele priminho. E ainda bem! Levou-nos alegria e vivacidade e, também, um presente para mim. Tratou-se de um cachecol de xadrez, em tons suaves que incluíam um diáfano verde água, feito de tecido macio e envolvente, que achei maravilhoso, tanto naquela altura como muito mais tarde, quando, já levado por anos de distância, lhe perdi o rasto, mas nem assim deixei de o procurar no enorme malão da cave, onde iam parar as peças caídas em desuso. Creio que o cachecol representou, para mim, a novidade de um presente extra – tão mais valorizado quanto, por esses tempos, eram raros e de pouca monta os presentes que me cabia receber –, mas, sobretudo, a alegria de a mesa de aniversário se ter aberto a um novo comensal, desmentindo a ideia de que o mundo éramos apenas nós os cinco.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Na verdade, adorei a novidade do almoço com novo participante e, estou certa, o Raul adorou o almoço. Disse até – e creio terem sido estas as suas palavras – que <i>havia de ir mais vezes almoçar a casa do tio doutor</i> (meu pai, professor do Liceu, irmão mais velho da sua mãe).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O tempo correu, como sempre corre, e, anos mais tarde, vim a cruzar-me com ele, também em casa de meus pais – na cidade da qual ambos já tínhamos saído –, acompanhado da mulher e de duas ou três crianças pequeninas, seus filhos. Era ainda muito novo, creio que na casa dos vinte, e eu comentei, – Então, Raul, já tantos meninos!, agora ficas-te por aqui, não? Respondeu-me, com convicção, que viriam os que Deus quisesse. E assim foi, as crianças foram-se sucedendo, formou uma linda e vasta família.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Entretanto – dotado de formação superior na área de engenharia –, afirmou-se e ascendeu profissionalmente a limiares justificados por uma clara inteligência e uma enorme força de vontade e competência.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">A dada altura, precisei de uma ajuda sua e não hesitou em prestar-ma.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">O tempo continuou a correr, como sempre corre, já se sabe, e nas décadas seguintes – aliás, à semelhança de sempre –, poucas vezes nos vimos, essas poucas em bons e maus momentos da vida familiar.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Há uns tempos, tive conhecimento de que o Raul, que sempre vira pujante de força e afirmação, padecia de uma doença grave.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Hoje, o meu irmão telefonou-me a dar a tristíssima notícia da sua morte, a morte do menino espevitado e alegre que tinha levado um bonito e inesquecível cachecol e, sobretudo, um fôlego complementar de vida e alegria ao meu longínquo aniversário já não sei de há quantos anos. Vieram-me as lágrimas aos olhos, engoli-as, decidi converte-las em palavras.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Há pessoas que, nem que seja por um curto episódio de vida, têm lugar marcado no nosso coração, não importando se com elas convivemos muito ou pouco. Assim o Raul, para mim. </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;">Despeço-me dele desta maneira, desejando que descanse em paz, na santa paz do Senhor, como creio ser aquilo que almejava e em que acreditava.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEiQwZQK5e1zdlwgJedmkt7HXGV8N3_z048AoSCTpaBR1R1KGuCD3dTtir0AmJNM6EFAKcPs1BH8j7GJdOSyFPkV6Uxvcx2eoHASb7NM5X3-HSki43PLe58w164vQfcW8k27LdeEPId_hZO6O7szuUxHJnBMGwLy4FSqeIQTdwtAbg4rNyrZD0X1gd18=s2538" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="1203" data-original-width="2538" height="190" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEiQwZQK5e1zdlwgJedmkt7HXGV8N3_z048AoSCTpaBR1R1KGuCD3dTtir0AmJNM6EFAKcPs1BH8j7GJdOSyFPkV6Uxvcx2eoHASb7NM5X3-HSki43PLe58w164vQfcW8k27LdeEPId_hZO6O7szuUxHJnBMGwLy4FSqeIQTdwtAbg4rNyrZD0X1gd18=w400-h190" width="400" /></a></div><br /><div style="text-align: center;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><br /></div></span><div style="text-align: justify;"><br /></div>bluegirlhttp://www.blogger.com/profile/12724222872733597872noreply@blogger.com5tag:blogger.com,1999:blog-4413189576536563360.post-16520700918111911762022-02-02T19:51:00.004+00:002022-02-02T19:54:29.569+00:00POBREZA MENSTRUAL...<div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">...OU SERÁ POBREZA MENTAL?</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">Há tempos, num <i>zapping</i> pela TV, deparei-me com uma jovem, ao que percebi deputada (ignoro por quem e porquê), a perorar sobre "pobreza menstrual". </span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">Obviamente – acho eu! – fiquei perplexa e, ao mesmo tempo, curiosa, sobre o significado de tal expressão. De tal forma que nem me ocorreu qualquer significado possível, por exemplo, baixo caudal menstrual (como uma amiga a quem contei, por certo mais criativa do que eu, sugeriu).</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><span>Felizmente, a entrevistadora, ciente da burrice ou falta de imaginação de espectadores (ou deverei escrever espectador@s?) como eu, pediu gentilmente à entrevistada que explicasse do que falava. E foi aí que se fez luz: "pobreza menstrual" é a situação em que se encontram as mulheres – suponho que os homens ainda não sofrem essa carga mensal – carentes de meios económicos para </span><span>suportar as despesas com os artigos de higiene, vulgo, pensos/tampões higiénicos e afins, necessários durante a menstruação.</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">Logo uma outra convidada do programa, abanando afirmativa e compungidamente, a cabeça, referiu que até havia quem recorresse a pão para fazer as vezes de penso higiénico…</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">Desliguei, de imediato, a televisão, não me fosse aparecer outro assunto do género, logo a mim, que só procurava uma série policial ou um filme de jeito.</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">A situação em causa é, obviamente, do mais lamentável, triste e revoltante que se pode imaginar. Só que, em minha opinião, tem apenas um nome: pobreza! Não é dela que aqui trato, até porque, infelizmente, por mim só, não disponho de competência ou capacidade para a resolver.</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">Trato, antes e apenas, da questão ou abordagem terminológica.</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">É que me irrita solenemente esta tendência, entroncada no execrável, porque hipócrita e hitleriano, politicamente correcto, de atribuir certos nomes às realidades, como se assim ganhassem uma importância que doutro modo não alcançariam, no pressuposto de que só os utilizadores dessa nomenclatura estão habilitados ou titulados a invocar as realidades subjacentes, sendo, por outro lado, banida a terminologia habitual, como menor e desadequada. Existe, ainda, uma certa provocação no uso de dadas palavras como expressão de uma afirmação de princípio — de que devem ser empregues para se atingir o cerne das respectivas problemáticas. Enfim, uma espécie de pensamentos mágicos!</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">Ora bem, segundo me parece, uma pessoa que não dispõe de dinheiro para prover os bens necessários à higiene durante a fase menstrual é, pura e simplesmente, uma pessoa pobre. POBRE. E pobres não deviam pura e simplesmente existir, aliás e para evitar mal-entendidos, a pobreza, na sua abjecção social e moral, não devia existir ou, sequer, ser admissível!</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">Então para quê autonomizar essa faceta da pobreza? Será que providenciando pensos higiénicos a essa mulheres pobres elas deixam de ser pobres? Não me parece.</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><span>Resta ainda outra questão: uma vez autonomizada tal expressão da pobreza, porque não autonomizar as restantes, por exemplo: </span><span>pobreza fecal (falta de dinheiro para papel higiénico) ou </span><span>pobreza ranhosa (falta de dinheiro para lenços)… Ridículo, não é?</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">Por falar em ridículo, querem saber outra? Agora não é de bom tom contrapor mulher a homem, devendo aquela ser designada como "pessoa com vagina" e este – calculo – como "pessoa com…". Bem, fico-me por aqui, que já basta de parvoíce.</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: center;"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEgxVAmRF0HTzXKSeJRvmnnPQv4Tddeac7iG_vGfjSy4Hj_fy0F_6nVLOlKhNFQPYskbmLbzkGlDhMNCvbcOIz4UlHq5bImCqcK_zbeK8Rfz5EgOTburCGU0QPmVIikky02pQLHLIvl4vr4-zb_IJ2BE7oHkGQhVh_Mjjmg_mHeh2UmGhVbANid8rouK=s886" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="886" data-original-width="886" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/a/AVvXsEgxVAmRF0HTzXKSeJRvmnnPQv4Tddeac7iG_vGfjSy4Hj_fy0F_6nVLOlKhNFQPYskbmLbzkGlDhMNCvbcOIz4UlHq5bImCqcK_zbeK8Rfz5EgOTburCGU0QPmVIikky02pQLHLIvl4vr4-zb_IJ2BE7oHkGQhVh_Mjjmg_mHeh2UmGhVbANid8rouK=w400-h400" width="400" /></a></div><br /><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"> </span></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;"><br /></span></div>bluegirlhttp://www.blogger.com/profile/12724222872733597872noreply@blogger.com5tag:blogger.com,1999:blog-4413189576536563360.post-29836237438147120182021-11-09T20:30:00.000+00:002021-11-09T20:30:49.752+00:00A PROIBIÇÃO DO OUTONO<div><div style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;"><span style="font-family: inherit;">pessoas cinzentas deslizam pela rua, aqueles dois, homem e mulher, de mãos dadas, força do hábito, comodidade ou outra porra qualquer, duvido que seja amor, ela de cara tensa, talvez pensando que o domingo em breve será segunda-feira, ele abstraído num mundo só dele, bem podiam desligar-se das mãos que nem dariam conta, os corpos prosseguiriam cada um por seu lado, talvez em direcções opostas; ou então não, foi apenas o amor a resistir à passagem do tempo, o mesmo é dizer, </span><span style="font-family: inherit;">da vida, há quem afirme existirem casos que tais e, a ser assim, a cara tensa dela há de descontrair-se e a cara vaga dele há de baixar à terra, quando se olharem frente a frente, por exemplo, ao chegarem a casa, e até lá entregam as despesas da conversa e da comunicação às suas mãos unidas por hábito de amor, aqui não há lugar a mais hipóteses.</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;"><span style="font-family: inherit;">e o sol, agora já tão baixo, brilha num céu plenamente azul, aquece o horizonte e as proximidades, ambos, sol e céu, conluiados numa tirania arrogante, impedindo o outono de se manifestar. nem farrapo de cinza nem fita de água deslizando das alturas, nem ambiente de castanha assada e quase véspera de natal. porém, não faltam iluminações absurdas, absurdas por este sol, tirano dourado, por este céu, tirano azul, conspirando ambos contra quem de direito aqui devia estar a repor o lugar da nostalgia e do aconchego, esses lugares cinzentos que velam o longe e restituem a calidez da infância.</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;"><span style="font-family: inherit;">avanço, logo à frente paro, e assim e assim sempre, porque é a cidade iluminada de céu e sol, os semáforos domingueiros estão malucos e os condutores adormecidos, demoram eternidades a arrancar, como me irritam estes pasmados!, cidadãos pasmados, talvez amolecidos por este sol e este céu fora de tempo. sim, sei-me excepção nisto de padecer por carência de outono, dessa espécie de cinzento.</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;"><span style="font-family: inherit;">passo por sítios que me são velhos, como o instituto do medicina legal, que já me vi obrigada a frequentar, não na qualidade de morta (e daí, quem sabe?), mas na de observadora de autópsias – exigência da cadeira de medicina legal. memórias evitáveis, que, todavia, insistem em permanecer.</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;"><span style="font-family: inherit;">memórias outras, bem melhores: o fim de setembro/princípio de outubro, quando o tempo era como devia ser, as estações do ano iguais em direitos, não sujeitas à tirania umas das outras, função de absurdas e irreparáveis alterações climáticas. nem de propósito, lá estão eles em glasgow, mais uma cimeira da treta, fazem de conta, agendam metas para decénios futuros, quando já não estarão cá e talvez já ninguém esteja. bem vistas as coisas, poderá residir aí a solução, deixar morrer o planeta de humanos, para depois a natureza renascer em paz.</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;"><span style="font-family: inherit;">regressei a casa.</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;"><span style="font-family: inherit;">as pessoas cinzentas também regressaram ou hão de regressar a casa, é o recolher da escuridão, os tiranos retiraram-se, um abaixo do horizonte, o outro atrás do manto lunar, faz escuro, descontando as estrelas e os candeeiros. </span><span style="font-family: inherit;">o casal de mãos dadas deslargou-se para entrar em casa e agora vamos ficar a saber se era amor, aquilo das mãos dadas e das caras a direito, ela tensa, na sua, ele absorto, na dele. irão enlear-se num beijo, as mãos dele segurando o pescoço dela, as dela rodeando as costas dele? ainda que sem palavras? sem palavras, mas com desejo ou apenas ternura? </span><span style="font-family: inherit;">ou as palavras são as derradeiras provas de amor? haverá amor sem palavras? por exemplo, a palavra amor, significa o quê? poderá traduzir a tensão de uma cara e a dispersão da outra, entrelaçadas pelos dedos de duas mãos que só se desprendem para entrar em casa?</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;"><span style="font-family: inherit;">e o outono, que significa agora o outono, quando há dois tiranos luminosos à solta empenhados em o proibir?</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;"><span style="font-family: inherit;">dúvidas, apenas dúvidas, já não existem certezas, nunca houve tanta carência de certezas. </span><span style="font-family: inherit;">por isso me faz falta o outono, ser reconduzida ao aconchego da idade infantil, aquela em que tudo era tão certo e tão seguro como as nuvens e a chuva de fins de setembro/princípios de outubro, altura em que </span><span style="font-family: inherit;">o fumo das castanhas assadas se evolava desenhando um cheiro morno e acariciador e as mãos dos pais distribuíam protecção, enquanto das suas bocas saíam palavras definitivas e indesmentíveis.</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;"><span style="font-family: inherit;"><br /></span></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiWPLU3KCibuVIb04Jb7h322FKvHyqix6J1cvnJ2bhTpisAGewaCTt8cowhOU4Xq-Ix8XlmDD-xS6kwaXP66yW5zBZHRvhao8vEW13tUr_FL7X1kXEyk55HErMCnBDlTYRToN1cLH2XRjc/s1026/2C40BB12-45EB-4598-82AA-A6C3B62ABA0C_1_105_c.jpeg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="766" data-original-width="1026" height="299" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiWPLU3KCibuVIb04Jb7h322FKvHyqix6J1cvnJ2bhTpisAGewaCTt8cowhOU4Xq-Ix8XlmDD-xS6kwaXP66yW5zBZHRvhao8vEW13tUr_FL7X1kXEyk55HErMCnBDlTYRToN1cLH2XRjc/w400-h299/2C40BB12-45EB-4598-82AA-A6C3B62ABA0C_1_105_c.jpeg" width="400" /></a></div><br /><span style="font-family: inherit;"><br /></span></span></div><span style="font-size: large;"><div style="text-align: justify;"><br /></div></span><span style="font-size: large;"><div style="text-align: justify;"><br /></div></span><span style="font-size: large;"><div style="text-align: justify;"><br /></div></span></div><p style="text-align: justify;"><br /></p>bluegirlhttp://www.blogger.com/profile/12724222872733597872noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4413189576536563360.post-43797520495836272212021-08-16T20:34:00.000+01:002021-08-16T20:34:47.226+01:00ATÉ AS MOSCAS SUMIRAM!<div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">este verão, anda tudo tão apalermado que nem a <i>silly season</i> se manifesta, aliás, até as moscas sumiram. quanto ao sumiço destas, ainda bem, mas não no tocante à <i>silly season</i>, que sempre era motivo de divertimento.</span></div><span style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;"><div style="text-align: justify;">ou então – e parece-me que é mais isto –, a idiotice tomou conta do ano inteiro e já nem dá para reparar quando calha sobressair nos calores de agosto.</div></span><span style="font-size: large;"><div style="text-align: justify;">os gloriosos verões animados por gafes de governantes perderam força, ou não se tivessem tornado uma constante ao longo de todas as estações. por exemplo, quem se lembra de encarar com cinismo o facto de, em plena época de incêndios, ser noticiado que os sistemas de detecção de fogos – sim, já não é bem o SIRESP – não funcionam? ninguém, pois, em se tratando do departamento do ministro cabrita, vem logo à memória um variado leque de acontecimentos susceptíveis de relegar aquele para segundo plano, por exemplo, o caso do estrangeiro que, em tempos, se suicidou nas instalações do SEF do aeroporto de lisboa, sem ter sido socorrido pelos inspectores daquela instituição, que, quando o viram estirado no pavimento, se limitaram a mandar-lhe uns pontapés, uns socos e uns bofetões, apenas para confirmarem a evidência, o tipo já não mexia, estava mortinho e, já nada havendo a fazer, por lá o deixaram; também podia acorrer à lembrança o caso, mais recente, do operário em trabalho numa autoestrada portuguesa que se atravessou negligentemente à frente duma viatura na qual o dito ministro se fazia transportar à razoável velocidade de aí uns 200 Km/hora; que atire a primeira pedra quem nunca.</div></span><span style="font-size: large;"><div style="text-align: justify;">é claro que, em defesa da <i>silly season</i>, sempre se poderia invocar um caso fora da alçada do dito (e azarento) ministro, por exemplo, da área da saúde; concretamente, a mais vertiginosa evolução científica de todos os tempos, mercê da qual, em cerca de uma semana ou talvez nem tanto, se evoluiu da proibição à recomendação da vacinação dos menores entre os doze e os quinze anos; ainda por cima, tratando-se de uma evolução científica não baseada na evidência de fatos devidamente comprovados, mas em critérios inatingíveis pelo comum dos mortais. todavia, desculpem-me insistir, por mais boa vontade que se tenha, esta via não dá para salvar a <i>silly season</i>, dadas as mais que as mães mudanças radicais a que, ao longo de quase dois anos, nos habituou a dr.ª graça freitas: anúncio de que o (agora velho) novo coronavirus não voaria até portugal/mas cá aterrou, não se justificava o uso de máscaras/justificava-se o uso de máscaras, a vacina da astrazéneca não devia ser aplicada aos velhos/a vacina astrzéneca só devia ser aplicada aos velhos, etc, etc, etc.</div></span><span style="font-size: large;"><div style="text-align: justify;">podia, ainda, lançar-se mão do recente caso dos senhores do chega de (salvo erro) vila real – que vergonha, tinha logo de ser a minha terra! –, que, após o seu capataz, cujo nome nem quero pronunciar, mas que possui uma coelha chamada acácia, ter andado a defender a não vacinação e ter contraído covid, vieram alegar que ele não se vacinara por receio de o enfermeiro ser do PS e lhe enfiar veneno; e, não contentes, desaconselharam os militantes de se vacinarem por idêntico receio (brigada de vacinação do PS, munida de um veneno especial anti-chega). isto sim, é bastante divertido, pelo menos tão divertido quanto estúpido e caricato, mas vindo de um partido que nos tem tão bem habituados a cenas estúpidas e caricatas, não se me afigura suficiente para salvar a <i>silly season </i>(embora me tenha provocado um saboroso ataque de riso).</div></span><span style="font-size: large;"><div style="text-align: justify;">e é isto! quanto às moscas, felizmente e contra o habitual por esta altura, não me têm entrado pelas janelas dentro! convenci-me que uma coisa anda ligada à outra, ficaram atascadas na m**** espalhada ao longo do ano, no que até fizeram bem, porque agora, como comecei por referir, a m**** da <i>silly season</i> quase nem se nota.</div></span><span style="font-size: large;"><div style="text-align: justify;">temos que fazer como as moscas, (obviamente) com as devidas adaptações: rir ao longo do ano.</div></span></span></div><div><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></div><div><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></div><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-family: inherit; font-size: large; margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="325" data-original-width="466" height="279" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhE44Cs2KINY8XW7YRuRVAo_5h8BeE8GtU-jq3hH0F6jpE0Wznx19pBsaAMCHO2u8UMctlzS_SnKZA9zty7hal-YNZSQtx9u3T59DBUEdOp18s_TpLHo19BuXJJ3lpbpnH6yYZ_SRye9DQ/w400-h279/mosca06a.jpg" width="400" /></span></div><div><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></div><div><table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><tbody><tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;"><div><span style="font-family: inherit; font-size: medium;">(<b><i>imagem obtida em pesquisa google</i></b>)</span></div></td></tr></tbody></table><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></div><p style="text-align: justify;"><br /></p>bluegirlhttp://www.blogger.com/profile/12724222872733597872noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4413189576536563360.post-52136490927778177362021-08-10T20:45:00.000+01:002021-08-10T20:45:59.189+01:00O ÚLTIMO VOO DA MACACA<p style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;"><span style="font-family: inherit;"><br /></span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;"><span style="font-family: inherit;">no último ano da faculdade, vivi numa residência universitária, gerida por freiras </span><i style="font-family: inherit;">à paisana</i><span style="font-family: inherit;">, ou seja, que não usavam hábito. não frequentava a capela e decorava o meu quarto (privativo) com cartazes de minha autoria, habitados por figuras de amantes enlaçados em beijos e de frases do tipo, </span><i style="font-family: inherit;">vale mais acreditar no diabo do que em deus, pois do diabo nada há a esperar e de deus nada há a receber</i><span style="font-family: inherit;">, no que era, sem dúvida, uma manifestação tardia de provocação adolescente, apenas compreensível pela razão de ter desperdiçado a adolescência ensimesmada em tão profundas quanto deprimentes querelas existenciais, que apenas me levaram a conclusões do tipo da condensada naquela asserção, enquanto deixava passar a florescência própria dessa fase da vida, tão </span>irrepetível quanto qualquer outra, mas com uma perda talvez superior ao desperdício de qualquer outra.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;"><span style="font-family: inherit;">nada disto interessa àquilo de que me proponho falar, excepto pelo facto de ter sido nesse contexto que conheci a macaca, outra das residentes no citado local. curiosamente, não me recordo do nome dela, soa-me vagamente helena, mas sem certeza. macaca era a alcunha atribuída por outra nossa companheira de habitação, a j., de </span>que<span style="font-family: inherit;"> me tornei grande amiga (anos mais tarde vim a ser madrinha de um dos seus filhos). a j. era muito viva, simpática e engraçada; atribuía estas alcunhas por brincadeira e sem intuitos ofensivos. a mim, chamava-me buda, talvez devido aos meus olhos achinesados e lábios carnudos, bem como ao meu forte interesse pelo oriente longínquo.</span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;"><span style="font-family: inherit;">a macaca era madeirense e frequentava um curso de letras; aspecto frágil, magra e não muito alta, de proporções harmoniosas, do seu sorriso </span>irradiava<span style="font-family: inherit;"> um brilho dourado, talvez porque o dourado </span>predominava<span style="font-family: inherit;"> no seu rosto de feições perfeitas, um pouco asiáticas por virtude dos olhos rasgados e dos pómulos salientes: dourado era o cabelo, o tom da pele e os olhos, estes cor de mel. era discreta e simpática.</span></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;">mesmo sem sermos especialmente próximas, a dada altura, a macaca contou-me do seu mundo interior, um mundo de negrume, tanto mais negro quanto o flagrante contraste com a irradiação luminosa da sua miúda pessoa. em aparente serenidade e sempre sem perder o sorriso, disse-me da sua família, pai, mãe e irmãos (não recordo quantos, mais do que um) e da doença de que, à excepção da mãe e justamente por herança paterna, todos sofriam, doença mental incapacitante e incurável (cujo nome não me lembro se referiu). ouvi-a atentamente, como sempre gostei de ouvir as pessoas, devo ter-lhe endereçado algumas perguntas e frases animadoras, como sempre tive por hábito fazer, mas nada em pormenor me restou na memória, excepto a percepção nítida (e compadecida) de que a vida da macaca estava marcada por um feroz receio, sem dúvida com a marca das maldições: (vir a) sofrer da doença paterna, que já pendia sobre os inocentes irmãos.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;">aquilo inquietou-me, mexeu-me por dentro ao ponto de permanecer como uma das inúmeras memórias empáticas que acumulo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;">o tempo decorreu, acabámos os cursos, deixámos a residência universitária, cada qual seguiu o seu caminho e nunca mais soube notícias dela.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;">não muitos anos mais tarde, em conversa com a j., talvez rememorando aqueles tempos, perguntei-lhe se sabia alguma coisa da macaca. respondeu-me: "suicidou-se, atirou-se dum quinto andar da avenida cinco de outubro". gelei de desgosto, talvez não tanto por aquela morte, mas pelo profundo sofrimento que à mesma tinha conduzido como único caminho de libertação.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;">ao longo da vida, este caso, como tantos outros, veio-me ocasionalmente à memória, nos últimos tempos com uma insistência maior, que me reclamou a necessidade de o relatar. talvez uma homenagem à gentil macaca, cujo sofrimento e, sobretudo, a elegância com que dele me fez testemunha, nunca consegui esquecer. e, sem dúvida, uma homenagem à coragem do seu acto final, o último voo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;"><br /></span></p><p style="text-align: center;"></p><div style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgkXhs1row3-u3Xlg3kub3XXzjv9VlAP2Z7LZf6kdeXh67BVTbFSH3o8q4bKhb5ZS4gtV_3RJqQ-80JjD1z8VX_HGNfeNfYVWcM29hf0H9EiLpSOmZxqZ3YtromHuaS89dvEeYqwjV8KpI/s1024/34-25%253A07%253A2019.jpg" imageanchor="1"><img border="0" data-original-height="1024" data-original-width="768" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgkXhs1row3-u3Xlg3kub3XXzjv9VlAP2Z7LZf6kdeXh67BVTbFSH3o8q4bKhb5ZS4gtV_3RJqQ-80JjD1z8VX_HGNfeNfYVWcM29hf0H9EiLpSOmZxqZ3YtromHuaS89dvEeYqwjV8KpI/w300-h400/34-25%253A07%253A2019.jpg" width="300" /></a></div><br /><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><br /></div><br /><span style="font-size: large;"><br /></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;"> </span></p>bluegirlhttp://www.blogger.com/profile/12724222872733597872noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4413189576536563360.post-24016290165420568762021-06-12T20:04:00.000+01:002021-06-12T20:04:58.448+01:00E SE FOSSE ASSIM? <p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">não se tratou de um pesadelo, os pesadelos vinham embrulhados em cor diferente, que não refiro para não me repetir. desta vez, foi apenas um sonho, não um sonho acordado, do jeito dos que, no dizer do poeta, "comandam a vida", mas um sonho-sonho, daqueles a dormir, que talvez sejam comandados (ou encomendados) pela vida – embora, no caso, falar em vida seja, no mínimo, cínico... </span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;"><span style="font-family: inherit;">acabara de se deitar, ainda nem apagara a luz. tudo parecia sereno, quando um peso bruto se lhe abateu sobre o lado esquerdo do peito, albergue do coração e de outras</span><span style="font-family: inherit;"> vísceras. os olhos fixaram-se no tecto, reluzente de branco e, como se por efeito ricochete – causador de estranheza, mas aceite com assinalável naturalidade –, viu a boca, a sua própria boca, lábios entreabertos, talvez demasiado pálidos, deixando sair uma onda de corpo ascendente, que lhe lembrou a sombra de um mergulhador a evoluir para a superfície da água. só que, em vez de água havia ar, e em vez de superfície aberta erguia-se a barreira do tecto, onde os seus olhos de brilho </span>perdido se estampavam. nada disso se lhe afigurou estranho ou ameaçador, nem para tal teria tido tempo, pois tudo se desenrolava com a naturalidade da abelha rainha a ser obedecida e com a rapidez do tempo que passa, quando, decorridos dez anos, ou menos, dependendo da idade do observador, se olha para trás.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;">aquela sombra de corpo movia-se com elegância e graciosidade, por força do simples movimento dos braços que, alinhados na perpendicular, se afastavam e juntavam ao de leve e sem amplitude de maior. com a mesma leveza, o corpo-sombra ultrapassou o tecto tal qual se ele ali não estivesse plantado, nem fosse barreira pouca, de betão, já agora.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;">as suas pálpebras descaíram, aliviadas do peso que, pouco antes, se lhe abatera sobre o lado esquerdo do peito e, mesmo com elas descaídas, conseguiu divisar o que se passava do lado de lá, para além do tecto, o tecto que funcionou como se não existisse.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;">era lindo de ver: o corpo-sombra subia e subia, por força do movimento dos braços, envolto numa neblina que rapidamente passou do cinzento ao azul claro e, depois, à ausência de cor, a menos que a luminosidade possuísse cor. atingida a luminosidade o corpo-sombra fundiu-se com ela, tornando-se invisível enquanto objecto autónomo, apenas vulto difuso de uma calma ascensão sem pressa nem objectivo: paz, nem que apenas um vestígio inquantificável de paz, perdido na imensidão da eternidade ou talvez a própria eternidade. este pensamento deixou-o plenamente feliz. continuou estendido na cama, mesmo sem dar por isso.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;">na manhã seguinte, não se apercebeu de quando a empregada, pensando-o já fora de casa, no trabalho, irrompeu no seu quarto, de aspirador em riste, do estardalhaço que fez e de tudo o que se seguiu.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;">verdadeiramente, ele já tinha saído. deu consigo a atravessar a porta de casa, a rua e depois a porta do escritório e a do seu gabinete. pelo caminho foi distribuindo cumprimentos, mas ninguém lhe respondeu, mesmo os que se amontoavam, cochichando o incompreensível atraso, "logo o Marques, tão pontual", "que terá acontecido", "se calhar é melhor ligar-lhe" e um etc. de frases sem sentido.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;">acabado de se instalar, e como ninguém desse mostras de lhe notar a presença, apesar da atenção que todos concentravam nele, ou melhor, na sua (alegada) ausência, espantou os olhos para o tecto, num desabafo, "mas que raio se passa aqui". só então se lembrou do sonho de libertação da noite anterior e do fascínio invejoso que o mesmo lhe causara. calmamente, levantou-se, descontraiu os braços ao longo do corpo e começou a movimentá-los – afastar, encostar –, como os do corpo-sombra do sonho e, para seu espanto e felicidade, com idêntico resultado: uma leveza jamais experimentada, conduziu-o por ali acima, através do tecto do gabinete e de todos os tectos dos vinte andares acima do mesmo e, depois, do telhado do edifício; sem hiato, misturou-se na neblina cinzenta, depois azul e depois luz. e, envolto numa onda de paz, deixou de sentir e de pensar. mergulhou, apenas, no universo.</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;"><br /></span></p><p style="text-align: center;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh9LXmYVhFx7z_H4JS-ypLIhHCQKiZD8RujliU8jXekKCkFy9BOS6ujK-8EqeCsjdNkkD5Xzev7M4gBhHHo4v0Wd9Cgbq2j6FeIVkO_xq8-LX1khNB7yrWffhNPijG8uWfkkCUJ0n3x7Ek/s1024/53-2-06%253A12%253A2018-INSTAGRAM.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="767" data-original-width="1024" height="300" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh9LXmYVhFx7z_H4JS-ypLIhHCQKiZD8RujliU8jXekKCkFy9BOS6ujK-8EqeCsjdNkkD5Xzev7M4gBhHHo4v0Wd9Cgbq2j6FeIVkO_xq8-LX1khNB7yrWffhNPijG8uWfkkCUJ0n3x7Ek/w400-h300/53-2-06%253A12%253A2018-INSTAGRAM.jpg" width="400" /></a></div><br /><span style="font-size: large;"><br /></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><br /></p>bluegirlhttp://www.blogger.com/profile/12724222872733597872noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-4413189576536563360.post-46316574158082131892021-06-10T19:35:00.000+01:002021-06-10T19:35:25.193+01:00TENDERNESS<p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">perco-me nos teus braços</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">a tua pele é a minha pele</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">o sol extinguiu-se há muito</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">a lua em seu lugar</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">chuva mansa afaga os vidros da janela</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">teus dedos o meu corpo</span></p><p style="text-align: center;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">♦</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">aconteceu na madrugada de vinte e seis de Agosto de 2020, não interessa se ao vivo ou em mero sonho, por vezes nem se conhece a diferença. guardei (em folha de papel) como guardo tantas palavras – coisas, já não. para criar registo? para mais tarde usar? sei lá!</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">hoje, dez de Junho de 2021, eram duas horas e quarenta e um minutos da madrugada, dei comigo a pensar: <i>guardar "coisas" com a expectativa de as vir a usar não é criar bolsas de futuro, mas enfardar sacos de passado</i>.</span></p><p style="text-align: center;"><span style="font-size: x-large;">♦</span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">acabo de juntar aquelas e estas palavras, ou seja, usei dois pequenos sacos de passado. </span><span style="font-size: large;">talvez tenha criado um pouco de futuro, pelo menos enquanto houver um leitor para isto.</span></p><p style="text-align: center;"><span style="font-size: x-large;">♦</span><span style="font-size: x-large; text-align: justify;"> </span></p><p style="text-align: right;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">perco-me nos teus braços</span></p><p style="text-align: right;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">a tua pele é a minha pele</span></p><p style="text-align: right;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">o sol extinguiu-se há muito</span></p><p style="text-align: right;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">a lua em seu lugar</span></p><p style="text-align: right;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">chuva mansa afaga os vidros da janela</span></p><p style="text-align: right;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">teus dedos o meu corpo</span></p><div><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></div><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p><p style="text-align: center;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjPk22EeSEHeYtxFrARWVaNMvnJoi4xO3WHFblY5m9qhb3Jp8yI3OqJFOiShUho0_QT5j5ezXMRy8g_dYusf99pYQL6dYXYcXIl4eFfyQ5jw-msk04-UmFprxxPRZ2QOI6yhERVdXUaPWY/s1024/9922AE62-DD82-42C7-B893-DE34ED479A20_1_105_c.jpeg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="768" data-original-width="1024" height="300" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjPk22EeSEHeYtxFrARWVaNMvnJoi4xO3WHFblY5m9qhb3Jp8yI3OqJFOiShUho0_QT5j5ezXMRy8g_dYusf99pYQL6dYXYcXIl4eFfyQ5jw-msk04-UmFprxxPRZ2QOI6yhERVdXUaPWY/w400-h300/9922AE62-DD82-42C7-B893-DE34ED479A20_1_105_c.jpeg" width="400" /></a></div><br /><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span><p></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p><p style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p><p><br /></p>bluegirlhttp://www.blogger.com/profile/12724222872733597872noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4413189576536563360.post-76915524520760282482021-05-12T19:46:00.000+01:002021-05-12T19:46:01.432+01:00CHAMAVA-SE JOAQUIM<div><div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></div><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><span style="text-align: justify;">Isto é uma história que vem de trás e me desafiaram a prosseguir. Imaginem, </span><span style="text-align: justify;">pois, o que sucedeu antes, assim como eu imaginei o que se seguiu e aqui vos deixo:</span></span></div><div><span style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /><div style="text-align: justify;"><span style="text-align: left;">Os latidos aflitos do senhor X puderam mais do que os gemidos assustados do Joca. Afinal, um homem é um Homem e um cão é um Cão e, como se sabe, os cães acabam sempre por voltar.</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="text-align: left;"><br /></span></div></span></span><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">Regressei à aflição do homenzinho — para não falar da minha, duas impotências juntas, prontas a deixar-se arrastar pela maldita gravidade. Enchi-me de forças e, sobretudo, de jeito, amparei-o por debaixo dos braços e finalmente lá conseguimos levantar-nos, digo <i>conseguimos</i>, porque, naquela luta enérgica, quase nos tornámos um, digo <i>quase</i>, pois não cheguei a deixar-me desabar sobre as pedras soltas do largo em obras.</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></div><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><div style="text-align: justify;"><span>Restabelecido um equilíbrio finalmente promissor, experimentei largá-lo, devagarinho, só para ver se se aguentava, se tinha a espinha direita. Não me atrevi a apalpar-lhe os ossos — não fosse ele levar a mal. Sorri-lhe e indaguei, — Então, está tudo no lugar<i>? </i></span>E, logo de seguida, para não dar tempo a uma resposta negativa, prossegui, — São estas malditas obras, espalhadas por toda a cidade, já se sabe, véspera de eleições! Ele gemeu qualquer coisa na minha direcção, só agora se organizara para me olhar, e levantou uma mão, como quem diz, — aguento-me. Com o gemido subiu um bafo de álcool capaz de acender violenta explosão, caso um fósforo extraviado calhasse voar por ali.</div><div style="text-align: justify;"> </div></span><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">Enquanto desviava discretamente a cara, no desespero de afastar o nariz, surpreendi o Joca, especado numa esquina, semi-escondido, de língua de fora e orelhas em riste.</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">Mais apaziguada, dei pelo vulto do velhote, já a começar a afastar-se, montado em seus passinhos mansos e reforçadamente cuidadosos, apesar do que, estranhamente, denunciavam uma pressa inusitada. Não lhe sabendo o nome, limitei-me a gritar, — Senhor, senhor!, mas nada, nula resposta. Então — não sei de que recanto me veio a ideia — comecei a largar nomes, até que calhou a vez a Joaquim: — Ei, senhor Joaquim!<i> </i>Estacou, voltou-se depressa, dentro do seu modo devagar, e fixou-me com um ponto de interrogação desenhado na cara flácida e sulcada de rugas.</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">Assim fiquei a saber que se chamava Joaquim!</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: center;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: center;"><br /></div><div style="margin-left: 1em; margin-right: 1em; text-align: center;"><span style="font-family: inherit; font-size: large; margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhsq57Dwn8zrgpXV2QDjE-H69fO8Rphb-9hlE6jD-l6_a4luH8cGlAeP2Vq1dA3ItYLFb7-DqsCk4gnQv55XbwG8lQ_qVA0y9YvTHZHtnYxnhlsA2oQn-KZ4rI2-e-YAvUlljmUGouTA6Q/s2048/IMG_1126.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="2048" data-original-width="1536" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhsq57Dwn8zrgpXV2QDjE-H69fO8Rphb-9hlE6jD-l6_a4luH8cGlAeP2Vq1dA3ItYLFb7-DqsCk4gnQv55XbwG8lQ_qVA0y9YvTHZHtnYxnhlsA2oQn-KZ4rI2-e-YAvUlljmUGouTA6Q/w300-h400/IMG_1126.jpg" width="300" /></a></span></div></div></div><div style="margin-left: 1em; margin-right: 1em; text-align: justify;"><br /></div><div style="margin-left: 1em; margin-right: 1em; text-align: justify;"><br /></div><div style="margin-left: 1em; margin-right: 1em; text-align: justify;"><br /></div><div style="margin-left: 1em; margin-right: 1em; text-align: justify;"><br /></div>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: center;"></p><p></p>
bluegirlhttp://www.blogger.com/profile/12724222872733597872noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4413189576536563360.post-101861780504471352021-03-28T18:37:00.000+01:002021-03-28T18:37:53.750+01:00CÂNTICO DO POSTIGO<p><span style="font-family: inherit; text-align: justify;"><span style="font-size: large;"><br /></span></span></p><p><span style="font-family: inherit; text-align: justify;"><span style="font-size: large;">abram-se os postigos</span></span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">deixem sair cafés fumegantes</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">empadas de galinha e pastéis de nata</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; min-height: 14px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">dêem-se às máscaras as cores das amêndoas pascais</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">repliquem-se miríades de flores</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">essas que explodem pelas bermas do asfalto</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">inundando a cidade de amarelos, rosas vários, lilás</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">e o que mais</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; min-height: 14px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">refresquem-se as almas até ao arrepio</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">confine-se o álcool-gel às saturadas mãos</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">aspirem-se os perfumes inebriantes dos jardins</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">mergulhe-se no verde que reinventa as árvores</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">sinta-se a areia até receber a abençoada onda na ponta dos pés</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">desejosos de longe</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">que, tantas vezes, o longe espreita aqui bem perto</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">cavalguem-se as asas dos pássaros urbanos</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">e das gaivotas suspensas sobre o mar</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; min-height: 14px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">Encurtem-se distanciamentos com <i>zooms</i> e sorrisos</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">e palavras trocadas em ondas virtuais</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">que virtual é a vida mesma</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; min-height: 14px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">afugente-se o <i>papão</i> com risos</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">afinal, não resistimos nós ao <i>homem do saco</i>, ao patrão soberbo</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">à infidelidade de certo amigo do peito ou companheiro</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">à doença que um dia chegou, matreira</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">à morte de entes queridos?</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; min-height: 14px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">faça-se tudo isso</span></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">não porque ele não exista, esse <i>papão</i> nefasto</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">mas, justamente, porque existe</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">e é mais fácil combater o que se sabe estar ali</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; min-height: 14px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">um dia nos riremos dele</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">não sucedeu assim com o <i>homem do saco</i> ou o <i>lobo mau</i>?</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; min-height: 14px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">então, porque não rir agora?</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">afugentá-lo com o riso, fazer-lhe caretas com as máscaras pintadas,</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">inundá-lo de álcool-gel até ao afogamento</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">mantermo-nos unidos na distância</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; min-height: 14px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">e por isso e com isso</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; min-height: 14px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">escancarem-se os postigos</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">devorem-se cafés do lado de fora</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">troquem-se sorrisos acima do limiar das máscaras</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; min-height: 14px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><i>postigue-se</i>, <i>postigue-se</i>, <i>postigue-se</i></span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">até ser possível abrir de par em par portas e janelas</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">abraços e beijos</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; min-height: 14px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">caminhe-se sobre as ondas e as asas dos pássaros</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">até ao dia em que, gloriosamente, possamos enterrá-lo</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">afogado em álcool-gel</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">fugido às arrecuas de caretas mascaradas</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; min-height: 14px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">faça-se do postigo estrada aberta</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">espécie de <i>route sixty-six</i></span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; min-height: 14px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">em vez de beco sem saída</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; min-height: 14px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;">escancarem-se os postigos, escancarem-se os postigos, escancarem-se os postigos!</span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; min-height: 14px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; min-height: 14px; text-align: center;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><span style="font-size: large;"><br /></span></div><span style="font-size: large;"><br /></span><p></p><p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; min-height: 14px; text-align: center;"></p><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjZXdhwOLhhyX78iSUSTJyQp0V9fvSaUFUzmMZqsNC4etwg0nSjmwGNUE8OXQQNXvPuGe16A6xyM6wAIpy3wD9Dcq5pTY9w3E6hNv7KmuCUqtLfRLbMtfGRGyxSD0lu6apbWXHOPSuuHww/s932/CF401672-D0C7-4196-982B-8C4A73B27CEF_1_105_c.jpeg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><span style="font-size: large;"><img border="0" data-original-height="842" data-original-width="932" height="361" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjZXdhwOLhhyX78iSUSTJyQp0V9fvSaUFUzmMZqsNC4etwg0nSjmwGNUE8OXQQNXvPuGe16A6xyM6wAIpy3wD9Dcq5pTY9w3E6hNv7KmuCUqtLfRLbMtfGRGyxSD0lu6apbWXHOPSuuHww/w400-h361/CF401672-D0C7-4196-982B-8C4A73B27CEF_1_105_c.jpeg" width="400" /></span></a></div><span style="font-size: large;"><br /><span style="font-family: inherit;"><br /></span></span><p></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; min-height: 14px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; min-height: 14px; text-align: justify;"><span style="font-family: inherit; font-size: large;"><br /></span></p>
<p style="font-stretch: normal; line-height: normal; margin: 0px; min-height: 14px; text-align: justify;"><br /></p>bluegirlhttp://www.blogger.com/profile/12724222872733597872noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4413189576536563360.post-87186088777040107302021-03-14T18:37:00.000+00:002021-03-14T18:37:10.970+00:00CÂNTICO DO ENTARDECER <div style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: large;">hoje, não venham todos com ar de festa</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: large;">a porta é estreita, a divisão curta e o horizonte confina-se a um simples postigo liliputiano</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: large;">que é feito das portas largas, das janelas amplas, abertas de par em par para a vastidão de paisagens ignotas e intermináveis?</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: large;">não tragam garrafas nem risos nem brindes nem presentes</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: large;">que o futuro estreita-se, emoldurado num exíguo postigo duma qualquer traseira</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: large;">rectifico, tragam garrafas e risos, sobretudo risos, apenas os presentes se dispensam – por desnecessários, em sua vã fatuidade</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: large;">hoje, venham com risos, rir é o que combina com esta imensidão de nada</span></div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: large;">tragam garrafas cheias de esquecimento, pois recordar não é viver, mas morrer mais um pouco, evitável quando a morte acena aqui tão perto, recortada nas linhas estreitas e obtusas do postigo deste final anunciado</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: large;">mas venham, venham!</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: large;">bebamos das garrafas e alimentemo-nos do riso, porque hoje é hoje e já não há <i>amanhãs que cantem</i> (ou que chorem, espera-se!)</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: large;">e, sobretudo, porque isso não importa nada</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: center;"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgWcv8WG0_mevfmfJVnfPsVhJ4bW4l-R2rnOZyO6DJDuTMHF0ay6w6XGfaK8rqJ8vDHgaCsbgUdf1oNwXTTqGgf1YItfN6-DGpSgEXPiWUQi_6U6gH6AanW7YWObLrAIdQEr9JwViAhTF8/s640/BC698B9D-050B-4459-A883-18CE103EA52D_1_201_a.jpeg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><span style="font-family: georgia;"><img border="0" data-original-height="640" data-original-width="480" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgWcv8WG0_mevfmfJVnfPsVhJ4bW4l-R2rnOZyO6DJDuTMHF0ay6w6XGfaK8rqJ8vDHgaCsbgUdf1oNwXTTqGgf1YItfN6-DGpSgEXPiWUQi_6U6gH6AanW7YWObLrAIdQEr9JwViAhTF8/w300-h400/BC698B9D-050B-4459-A883-18CE103EA52D_1_201_a.jpeg" width="300" /></span></a></div><span style="font-family: georgia;"><br /></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: georgia; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: justify;"><br /></div>bluegirlhttp://www.blogger.com/profile/12724222872733597872noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4413189576536563360.post-71277081827995882162021-03-03T23:10:00.000+00:002021-03-03T23:10:43.562+00:00POR AÍ...<div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: courier; font-size: x-large;"><br /></span></div><span style="font-family: courier; font-size: large;"><div style="text-align: justify;">Saio para um passeio a pé e algo mais, as desenxabidas compras de supermercado. Hoje, fico-me pela zona da residência, percorro vários quarteirões, mas noto que a máscara <i>bico de pato</i>, talvez por se ajustar perfeitamente ao contorno das bochechas e pela espessura, <i>amordaça </i>demasiado a respiração, se é que assim se pode dizer, induzindo uma fadiga excessiva. Decorre pouco mais de meia hora e estou de regresso.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: center;"><b>A VIDA É BELA</b></div><div style="text-align: center;"><b><br /></b></div></span><span style="font-family: courier; font-size: large;"><div style="text-align: justify;">Pelo caminho, deparo-me com um par de avô e avó, passeando o neto, em seu carrinho; um bebé maravilhoso, quase careca, apenas uma penugem loura, feições perfeitas, olhos de um azul intenso como nunca visto, muito abertos para o mundo. Obviamente, detenho-me, não resisto, aceno-lhe e sorrio. Comento, «Que bebé tão lindo!» Não me liga nenhuma, está demasiado ocupado a contemplar o movimento à volta e, convenhamos, de mim só vê os olhos extravasando a máscara. A avó sorri, enternecida, diz que o menino nasceu de <i>mãe Covid</i> – creio mesmo que refere ter-se tratado do primeiro bébé nascido de mãe atingida pelo vírus. Mas ele não, não padeceu da doença, informa a senhora, em resposta à minha pergunta. Despeço-me, desejando felicidades, e continuo, afinal não posso passar a tarde em <i>adoração do menino</i>! </div></span><span style="font-family: courier; font-size: large;"><div style="text-align: justify;">Que seria do mundo sem as crianças!</div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: center;"><b>MUNDO CÃO</b></div><div style="text-align: justify;"><br /></div></span><span style="font-family: courier; font-size: large;"><div style="text-align: justify;">Avanço para o supermercado. Consigo resistir a comprar chocolates, mas isto é capítulo de outra história. Dirijo-me à caixa para efectuar o pagamento e dos dois jovens funcionários disponíveis calha-me a menina, que desata numa tosse cavernosa, enquanto ajeita a máscara azul. Peço, educadamente – e com um constrangimento íntimo –, para ser atendida pelo colega do lado, visto ela estar, manifestamente, doente. Não é levantado qualquer obstáculo, mas refere que não está com Covid, já fez seis testes, trata-se apenas de uma infecção respiratória. Digo:</div></span><span style="font-family: courier; font-size: large;"><div style="text-align: justify;">– Peço-lhe desculpa, mas acontece que sou <i>de risco</i> e tenho propensão a contrair infecções respiratórias, que, aliás costumam ser contagiosas.</div></span><span style="font-family: courier; font-size: large;"><div style="text-align: justify;">Enquanto vai passando os meus artigos – nem um chocolate… –, o colega dá uma achega:</div></span><span style="font-family: courier; font-size: large;"><div style="text-align: justify;">– Pois eu já tive Covid!</div></span><span style="font-family: courier; font-size: large;"><div style="text-align: justify;">Aí está um caso nítido de excesso de informação, murmuro para dentro de mim. A menina adianta, porém sem agressividade na voz:</div></span><span style="font-family: courier; font-size: large;"><div style="text-align: justify;">– Devíamos era ir todos para <i>lay-off</i>!</div></span><span style="font-family: courier; font-size: large;"><div style="text-align: justify;">A conversa ainda prossegue, aliás sempre em tom educado e ameno, acabando ela por proferir a estafada máxima de que «O cliente tem sempre razão». Contraponho que não, nem sempre, e peço-lhe que procure compreender o meu ponto de vista, adiantando que, dadas as circunstâncias, o patrão não a deveria colocar no atendimento. Acrescenta que vem de passar quinze dias em casa, repetindo ter realizado seis testes (Covid).</div></span><span style="font-family: courier; font-size: large;"><div style="text-align: justify;">Pago e despeço-me, reiterando o pedido de desculpa e desejando-lhe as melhoras.</div></span><span style="font-family: courier; font-size: large;"><div style="text-align: justify;">Por vezes, um pedido de desculpas decorre, não da consciência de uma culpa própria, mas da assunção de uma quota de responsabilidade pelos males do mundo – e são tantos! –, da qual ninguém está em condições de se demitir… </div><div style="text-align: justify;"><br /></div><div style="text-align: center;"> <b>LUXOS</b></div><div style="text-align: center;"><b><br /></b></div></span><span style="font-family: courier; font-size: large;"><div style="text-align: justify;">Havia, ainda, um sítio a visitar, quase à porta de casa (e não, não é a <b>Arcádia</b> dos chocolates, não pode ser…): a livraria <b>Tantos Livros</b>. Precisava de comprar um livro, apetecia-me um <i>thriller</i> ou policial, para variar dos géneros que tenho andado a ler. </div></span><span style="font-family: courier; font-size: large;"><div style="text-align: justify;">Que prazer, conseguir entrar numa loja que não seja um supermercado! Mais, uma livraria! Mais, uma livraria que também vende revistas e artigos de papelaria (para além de ser galeria de arte)!</div></span><span style="font-family: courier; font-size: large;"><div style="text-align: justify;">Enquanto me passeio por lá, dou comigo a olhar para um baú de cadernos, logo eu que sou <i>pedrada</i> por cadernos – tenho cadernos escritos (do tempo aec, <i>antes de escrever no computador</i>), cadernos desenhados, cadernos parcialmente escritos e/ou desenhados, já que sou dada a saltar de uns para outros, e cadernos por estrear, muitos e lindos, de vários tamanhos e feitios.</div></span><span style="font-family: courier; font-size: large;"><div style="text-align: justify;">Compro «A NOITE ESTÁ A CHEGAR» do Robert Bryndza, um caderno lindo de morrer e um frasco de tinta da china. </div></span><span style="font-family: courier; font-size: large;"><div style="text-align: justify;">Para mim, trata-se de luxos, sê-lo-iam em qualquer tempo, mas especialmente nos tempos que correm! Situam-se ao nível, por exemplo, da não sujeição a horários ou a patrões… e a poder comer chocolates sem risco de engordar, mas isto (já) é pura utopia, ao menos no meu caso.</div></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: courier; font-size: x-large;"> </span></div><div style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg0A9QAw9LtIs4UXUB0XxkKSinzdxCvLrz65xxuhEJJ41ukt-hJWsf-_lizNkOKl6QBJHLslpXDAagdU3EJaWnniXQ9dhmlYNkUMuRn6_0dhnRtfMmYAKGEd00SVT23S6GcbI3A4Db1BNM/s789/IMG_9310.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="789" data-original-width="555" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg0A9QAw9LtIs4UXUB0XxkKSinzdxCvLrz65xxuhEJJ41ukt-hJWsf-_lizNkOKl6QBJHLslpXDAagdU3EJaWnniXQ9dhmlYNkUMuRn6_0dhnRtfMmYAKGEd00SVT23S6GcbI3A4Db1BNM/w281-h400/IMG_9310.jpg" width="281" /></a></div><div><span style="font-family: courier; font-size: large;"><table cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto; text-align: center;"><tbody><tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;"><div style="text-align: justify;"><b>(<i>o meu caderno novo</i>)</b></div></td></tr></tbody></table></span><span style="font-family: courier; font-size: large;"><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: courier; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: courier; font-size: large;"><br /></span></div><div style="text-align: justify;"><br /></div></span><span style="font-family: courier; font-size: large;"><div style="text-align: justify;"> </div></span></div>bluegirlhttp://www.blogger.com/profile/12724222872733597872noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-4413189576536563360.post-51118893535994256482021-02-05T19:32:00.000+00:002021-02-05T19:32:59.951+00:00UMA MENINA ESTÁ PARADA NO TEMPO<div style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;"><span style="font-family: inherit;">uma menina está parada no tempo ou será no meio do tempo?, não se trata da mesma coisa e talvez não, porque o tempo não há-de ter meio (ou, se tiver, fica sempre lá, ou seja, quem está parado é ele</span><span style="font-family: inherit;">), mas, para o caso, não interessa</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;"><span style="font-family: inherit;">o facto é que uma velhota se cruza com a menina, vem de longe, agigantando-se à medida que se aproxima, até se tornar do seu exacto tamanho, quando lhe fica mesmo à frente, por um nanossegundo do tempo em que (ou no meio do qual) a menina está parada</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;"><span style="font-family: inherit;">a velhota prossegue, sem se deter, e vai diminuindo de tamanho à medida que se afasta da menina, até ficar reduzida ao tamanho de uma formiga e, depois, ao mínimo de uma pulga</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;"><span style="font-family: inherit;">a menina limitou-se a mover a cabeça para a acompanhar desde a distância inicial, em que começou a vê-la, até à distância final, a que deixou de a ver</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;"><span style="font-family: inherit;">então a sua cabeça voltou-se para a frente e a menina, quer dizer, a sua cabeça – o resto já estava –, ficou parada no espaço ou no meio do espaço, ignoro se é a mesma coisa, em qualquer caso, ficou parada no (ou no meio do, vá-se lá saber) tempo e do espaço e teve de começar a pensar em coisas para se distrair daquela imensa monotonia, diria mesmo, pasmaceira</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;"><span style="font-family: inherit;">vai daí a menina pensou no que lhe estava mais à mão, por assim dizer, a velhota que lhe passara à frente, ou melhor, a menina <u>pensa</u> na velhota que lhe <u>passa</u> à frente – porque, é bem sabido e convém não esquecer, a menina está <u>parada</u> – e vê-se a si mesma, <i>mas como posso ver-me a mim mesma na outra, que já vai longe, à minha frente ou atrás de mim, no tempo e no espaço em que (ou no meio do qual) estou parada</i>, pegunta-se</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;"><span style="font-family: inherit;">ao mesmo tempo, sente uma tontura, de tal forma que o seu corpo perde o equilíbrio, inclina-se para a frente, cai, bate com a cabeça numa pedra da paisagem e sente uma dor aguda</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;"><span style="font-family: inherit;">sem ousar levantar-se, porque ainda está tonta e receia não se equilibrar, ganha a consciência súbita de que já não está parada no (ou no meio do) tempo e do espaço – não que, anteriormente, possuísse a consciência inversa – e interroga-se, perplexa, <i>afinal, é o tempo que passa por mim ou eu pelo tempo e, é o espaço que existe à minha volta ou sou eu que projecto o espaço para fora de mim</i></span></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;"><span style="font-family: inherit;">agora, mais do que tonta, sente-se baralhada, mas quer-lhe parecer que já restabeleceu o equilíbrio das pernas e, com determinação, levanta-se e fecha os olhos, à espera que se faça luz, enquanto, ao longe, uma pulga dá lugar a uma formiga e depois a uma, ainda não se percebe bem…</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;"><span style="font-family: inherit;">e a menina lá fica, parada no tempo e no espaço... ou talvez não</span></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;"><span style="font-family: inherit;"><br /></span></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;"><span style="font-family: inherit;"><br /></span></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;"><table align="center" cellpadding="0" cellspacing="0" class="tr-caption-container" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><tbody><tr><td style="text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh0CzLrpREFV9W7x_qga0b4fdbQU0kFmqt1Qh_N0V36O8oT_tjba0tOBs4Fy9lkpUnBoISfCTQuz0xk1tE2cRohEBFJcDA3AixCN17a92qFnrvTp0xdK8O2WmGIMcKNMPtk9hickmSBJRs/s960/20-27%253A03%253A2018.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: auto; margin-right: auto;"><img border="0" data-original-height="960" data-original-width="960" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEh0CzLrpREFV9W7x_qga0b4fdbQU0kFmqt1Qh_N0V36O8oT_tjba0tOBs4Fy9lkpUnBoISfCTQuz0xk1tE2cRohEBFJcDA3AixCN17a92qFnrvTp0xdK8O2WmGIMcKNMPtk9hickmSBJRs/w400-h400/20-27%253A03%253A2018.jpg" width="400" /></a></td></tr><tr><td class="tr-caption" style="text-align: center;"></td></tr></tbody></table><br /><span style="font-family: inherit;"><br /></span></span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-size: large;"><span style="font-family: inherit;"><br /></span></span></div><div style="text-align: justify;"><br /></div>bluegirlhttp://www.blogger.com/profile/12724222872733597872noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4413189576536563360.post-5280685033096740202021-01-03T19:38:00.000+00:002021-01-03T19:38:53.616+00:00OS ESPELHOS NÃO MENTEM<div style="text-align: justify;"><span style="font-size: x-large;"><span style="font-family: inherit;"> </span></span></div><span style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;"><div style="text-align: justify;">Aí pelos trinta e tal anos, dei em comprar a revista espanhola <b>¡HOLA!</b>, que, como é sabido, plasma o <i>mundo de fantasia</i> dos <i>famosos</i>, realeza incluída. </div></span><span style="font-size: large;"><div style="text-align: justify;">Viria a aditar a <b>POINT DE VUE</b> – mais dedicada à aristocracia europeia e com a vantagem de incluir algumas referências de ordem cultural –, a <b>PARIS MATCH</b> – sobretudo de actualidade, política e não só – e, também, uma ou outra revista de moda (ou <i>feminina</i>), como a <b>MARIE CLAIRE</b>, a <b>ELLE</b> ou a <b>MADAME FIGARO</b>, todas elas francesas. Mais tarde, aditaria a <b>TELVA</b>, espanhola, como a primeira mencionada, e que, versando, principalmente, a moda, inclui um leque de rubricas interessantes, v.g., em matéria de actualidade literária, artística e cinematográfica ou decoração e viagens.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div></span><span style="font-size: large;"><div style="text-align: justify;">Leitora apaixonada de bons livros e pensadora impenitente sobre o lado sério da vida, não deixava, eu própria, de considerar estranha aquela cedência à espuma parva dos dias, à frivolidade patega de mergulhar no brilho das imagens de <i>papier couché</i> e, pasme-se, nas linhas escritas que as ilustravam.</div></span><span style="font-size: large;"><div style="text-align: justify;">Verdade seja dita e ressalvado o paradoxo, tal estranheza sempre conviveu com a plena compreensão do fenómeno: tratava-se duma concessão (envergonhada) à superficialidade, num tempo em que vivia assoberbada por intensa e pesada actividade profissional. Eu sei, isto pode soar a desculpa para um desperdício de tempo estúpido, mas a questão é saber: não constituirá a futilidade, no extremo, a resposta que a complexidade da vida requer ou merece?</div><div style="text-align: justify;"><br /></div></span><span style="font-size: large;"><div style="text-align: justify;">Seja como for, eu estava – como continuo a estar – a par das tendências de moda e decoração, que, como é sabido, mudam de estação para estação, mas não param de se repetir –, da identidade das modelos da actualidade e, o mais parvo, da vida revelada – a verdadeira só eles sabem e está bem assim – da Isabel Prysler e de outras figuras <i>menores</i> da <i>sociedade</i>, <i>maxime</i>, espanhola e francesa (mesmo que só por acompanhamento das imagens e respectivas legendas).</div></span><span style="font-size: large;"><div style="text-align: justify;">Deixando de parte o (residual) benefício informativo colhido deste manancial de publicações, ou de apenas algumas delas, a verdade é que, em geral, os respectivos conteúdos se resumem a nada, um nada de falsas glórias ou de reais desgraças repetido à exaustão.</div></span><span style="font-size: large;"><div style="text-align: justify;"> </div></span><span style="font-size: large;"><div style="text-align: justify;">Chego, assim, ao ponto que me conduziu ao seguinte tema: o da felicidade como objectivo de vida.</div></span><span style="font-size: large;"><div style="text-align: justify;">A dada altura, comecei a observar que, no repetido guião das entrevistas publicadas na generalidade desses meios, uma das perguntas sagradas é: – O que mais deseja na vida ou qual o seu verdadeiro objectivo na vida?</div></span><span style="font-size: large;"><div style="text-align: justify;">Acontece que o <i>guião</i> das respostas, parecendo mimetizar o das perguntas, lhes assume o carácter de repetição, quer dizer, quase sempre a resposta à questão do objectivo de vida coincide: – O que mais desejo na vida (ou o meu objectivo de vida) é ser feliz!</div></span><span style="font-size: large;"><div style="text-align: justify;">Confesso que este tipo de resposta ou esta resposta-tipo – reproduzida ao infinito por tanta gente <i>gira</i> e <i>célebre</i>... – sempre me deixou intrigada e perplexa.</div><div style="text-align: justify;">É que, certamente por inépcia minha, nunca atinei a entender o que é isso de ter por objectivo de vida ser feliz! Ser feliz, ser feliz na vida, durante a vida? Tipo, agora estou aqui a pensar que quero ser feliz, a seguir vem a vida e, bingo!, consigo alcançar a felicidade, sento-me na felicidade para não a deixar escapar e assim sou, assim fico, até que a morte me ceife, feliz, sempre feliz, <i>forever</i>.</div></span><span style="font-size: large;"><div style="text-align: justify;">Confesso que tenho tido uma vida um bocado (bastante), como dizer?, acidentada, de luta, feita de batalhas sucessivas, algumas tão violentas que mal deixam fôlego para saborear as ocasionais vitórias e recuperar forças para a próxima refrega. Por outro lado, desde cedo me convenci que não sou caso único, todos temos (tivemos ou teremos) a nossa dose de desgraça. De resto, ainda que não pela nossa quota, sempre permanecerá difícil o alheamento das desgraças alheias, basta pensar nos sem-abrigo que connosco <i>convivem</i> no dia a dia das avenidas nacionais.</div><div style="text-align: justify;"><br /></div></span><span style="font-size: large;"><div style="text-align: justify;">Tenho o privilégio de aprender a cada momento, sempre mais, de conservar a mente desperta, atenta e, sobretudo, curiosa. No percurso, u<span style="font-family: inherit;">ma das coisas que aprendi foi a identificar os momentos de felicidade e, a partir daí, a saber estar-lhes atenta, agarrá-los e desfrutar deles, conservando-os pelo tempo por que é possível conservá-los. Bem sabendo que se trata de momentos, não de um estado definitivo, que, de resto, a existir, perderia por completo o sentido. Até porque tais momentos não passam de pontos de chegada e/ou de partida, ao invés de constituirem bancos estofados de damasco cor de rosa onde possamos sentar-nos para sempre.</span></div><div style="text-align: justify;"><span style="font-family: inherit;"><br /></span></div></span><span style="font-size: large;"><div style="text-align: justify;">Penso sobre isso, agora, creio que por efeito da passagem do tempo, esse traidor, que nos apanha sem nos apercebermos. É certo que os sinais não faltam, os espelhos não mentem (de resto, são os únicos a não mentir). Todavia, não são esses sinais que nos convencem. Trata-se de outros fenómenos. Por exemplo, certo dia, dás por ti a fazer anos, um número redondo, um daqueles que já não permite voltar atrás, sim, é isso, a certeza de que agora é sempre em frente, numa vertigem de rapidez, até ao fecho do ciclo, porque agora é isso que nos espera, o fecho do ciclo. E isto não te assusta, não é isto que te assusta, agora até já atingiste aquele ponto de serenidade que te permite identificar e desfrutar dos momentos de felicidade; é outra a interrogação que se te coloca, a ti, que apesar do número redondo e do fim à vista, continuas com a cabeça cheia de ideias e, como sempre foste (e continuas a ser) uma mente dispersa e multidireccionada, atrapalhas-te na ideia de falta de tempo, não porque te faça confusão que o tempo acabe, mas porque te faz confusão não poderes concretizar tudo o que te ferve na cabeça. E há, ainda, uma pequena <i>nuance</i>, mais perturbadora, a de saber se ainda valerá a pena cumprir certos projectos (se para tão pouco tempo...).</div><div style="text-align: justify;"><br /></div></span><span style="font-size: large;"><div style="text-align: justify;">E creio que fica explicado (não que fosse necessário!) o motivo por que, a dado passo do meu percurso, perdi tempo (e, esporadicamente, continuo a perder) com a <b>!HOLA!</b> e outras publicações que <span style="font-family: inherit;">tal...</span></div></span></span><span style="font-family: inherit;"><span style="font-size: large;"><div style="text-align: justify;"><br /></div></span><span style="font-size: large;"><div style="text-align: justify;"><br /></div></span><span style="font-size: large;"><div class="separator" style="clear: both; text-align: center;"><a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiJtI52AjoB61Xdhmqdjzn0PP2I9D_U52v0yxbIQOZReUuB_hbFKq4hV3G46ax11UHCDT2Ng-qZkp7RgEF20TcM8CbEZKWE0ZUE12AxSNlGbDTB-Yz-nw0Z1gAcigKTJIsZemDJx8XLwag/s200/074ebab9a0bef7b613ec3ec5527c21e4.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" data-original-height="200" data-original-width="145" height="400" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiJtI52AjoB61Xdhmqdjzn0PP2I9D_U52v0yxbIQOZReUuB_hbFKq4hV3G46ax11UHCDT2Ng-qZkp7RgEF20TcM8CbEZKWE0ZUE12AxSNlGbDTB-Yz-nw0Z1gAcigKTJIsZemDJx8XLwag/w290-h400/074ebab9a0bef7b613ec3ec5527c21e4.jpg" width="290" /></a></div><br /><div style="text-align: justify;"><br /></div></span><span style="font-size: large;"><div style="text-align: justify;"><br /></div></span><span style="font-size: large;"><div style="text-align: justify;"><br /></div></span><span style="font-size: large;"><div style="text-align: justify;"><br /></div></span></span>bluegirlhttp://www.blogger.com/profile/12724222872733597872noreply@blogger.com4