domingo, 12 de abril de 2015

THE DAY AFTER

Hoje é outro dia, aliás, os dias seguintes são sempre outros dias ou assim parece. Todavia, não raras vezes, quando nos debruçamos na varanda do passado, os dias idos reduzem-se à uniformidade do mesmo.
Mas hoje é outro dia, quero dizer, um dia marcado pela diferença, embora esta se resuma ao pequeno rectângulo de papel preso entre os meus dedos cansados e ainda vacilantes, não recuperados deste súbito.
Ignoro completamente o que fazer com isto, este recorte geométrico de papel escrito em números e por extenso, mesmo assim, uma abstracção.
Não tinha antecipado isto, embora deva dizer que, inúmeras vezes, ousara imaginá-lo, mas perdia-me na esquina da primeira hipótese e, entretanto, adormecia. Sonos - e sonhos - agitados, de resto.
Estarei a dormir? Não, desde que regressei a casa, há cerca de duas horas, afundei-me na cadeira de costas inclinadas, semicerrei os olhos e estou nisto, nesta estupefacção imobilizadora. Bem, talvez tenha dormitado um pouco.
É meio dia, preciso de ir ao Banco, afinal algum destino imediato tenho de dar a este papel, que agora me escorrega das mãos, não como quem quer fugir, mas como quem é empurrado. Também já começo a sentir uma certa fome e comida é coisa que não cresce por aqui, exceptuado o pão duro, de dias, um pacote de bolacha Maria, já fora de prazo e amolecido, e uma raspa de queijo bolorento. Não era assim no tempo dela, mas esse tempo já foi, despenhou-se da tal varanda do passado.
Pelo caminho vou congeminando para com as casas dos meus botões - sim, não percebo por que haveriam de ser os botões - deixo lá o rectângulo de papel, a troco dum certificado de depósito e depois... Ora, não consigo descortinar o caminho do depois.
Fico-me pelo Peixinho da Horta, o restaurante, mas a fome perdeu-se lá atrás, de mãos dadas com a indecisão, cerrada no impasse do rectângulo de papel, agora transformado em círculo.
Sobressalto-me com o toque do telemóvel, as mais das vezes remetido a um silêncio ostensivo. Nunca me habituei a esta voz, a da máquina, quero dizer.
- Sr. Antunes?
- Não, daqui é Fernandes.
- Desculpe, foi engano.
Aproveito para ver as horas, uma das principais vantagens do telemóvel, ao menos para mim, sempre escuso de carregar com o relógio. Já são quatro horas, o Banco fechou.
Mais um tempo morto consumido no regresso a casa, a pé, arrastando-me pelo bairro, as pernas pesadas, trôpegas, ameaçando ruir à primeira irregularidade da calçada.
Não sei porquê, vem-me à ideia, por onde andarão eles, que nunca dizem nada? Bem, não que isto interesse, estou cansado de saber como é, têm as suas vidas, não lhes sobra tempo. A lengalenga do óbvio prossegue contra minha vontade, é sempre assim, nunca consigo rematar este assunto, insisto, pela enésima vez, no contraponto: - e a mim sobra-me tempo e já não tenho vida
Fizeram-se quase nove horas, não sei por onde me perdi, para só chegar agora, já tudo escuro, não fosse a iluminação pública...
Estatelo-me na cadeira de há bocado - e de sempre, dos outros dias e dela, era onde se sentava, depois passou para mim, apropriei-me, como se assim pudesse reter uma sombra (ou uma sobra?) da sua presença, incorporar um aconchego. É curioso, comecei o dia a pensar que hoje era outro dia, mas não, é apenas o dia eterno dos meus dias, os que foram e os que sobram, se é que sobram alguns.
O sol invade as janelas, passando a custo pela cortina cerrada da sujidade - desde então, desde ela, nunca mais conheceram um gesto de limpeza -, procuro o rectângulo de papel por entre o emaranhado que me enche o bolso. Não o encontro. Despejo o bolso, este bolso e o outro e os outros, mas nada. Uma tremura, para além da tremura habitual, a que o meu corpo já se habituou e acolheu como sua, irrompe num repente, mas desaparece no repente seguinte, e dou comigo a desabafar, aliviado:- deve ter caído quando atendi o telemóvel, ora, que se lixe, eram só cento e trinta e sete milhões de euros e, bem vistas as coisas, nem sabia o que fazer com eles.
Será novo engano? Deixa-me cá atender.
- Pai, pai, parabéns, pai! Somos nós, vimos a notícia no jornal e vamos a caminho.
Só então acordo daquela espécie de pesadelo - ou será sonho ou realidade? Volto a procurar nos bolsos, definitivamente não está lá. Que se lixe, penso, nas asas do divertimento, enquanto a gargalhada estoira, abanando-me o corpo como se um terramoto, e ouço a apreensão do lado de lá, dos que já vêm a caminho,
- Pai, está bem? 
- Pai, pai, responda, está bem?  
    




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