sábado, 12 de junho de 2021

E SE FOSSE ASSIM?


não se tratou de um pesadelo, os pesadelos vinham embrulhados em cor diferente, que não refiro para não me repetir. desta vez, foi apenas um sonho, não um sonho acordado, do jeito dos que, no dizer do poeta, "comandam a vida", mas um sonho-sonho, daqueles a dormir, que talvez sejam comandados (ou encomendados) pela vida – embora, no caso, falar em vida seja, no mínimo, cínico... 

acabara de se deitar, ainda nem apagara a luz. tudo parecia sereno, quando um peso bruto se lhe abateu sobre o lado esquerdo do peito, albergue do coração e de outras vísceras. os olhos fixaram-se no tecto, reluzente de branco e, como se por efeito ricochete – causador de estranheza, mas aceite com assinalável naturalidade –, viu a boca, a sua própria boca, lábios entreabertos, talvez demasiado pálidos, deixando sair uma onda de corpo ascendente, que lhe lembrou a sombra de um mergulhador a evoluir para a superfície da água. só que, em vez de água havia ar, e em vez de superfície aberta erguia-se a barreira do tecto, onde os seus olhos de brilho perdido se estampavam. nada disso se lhe afigurou estranho ou ameaçador, nem para tal teria tido tempo, pois tudo se desenrolava com a naturalidade da abelha rainha a ser obedecida e com a rapidez do tempo que passa, quando, decorridos dez anos, ou menos, dependendo da idade do observador, se olha para trás.

aquela sombra de corpo movia-se com elegância e graciosidade, por força do simples movimento dos braços que, alinhados na perpendicular, se afastavam e juntavam ao de leve e sem amplitude de maior. com a mesma leveza, o corpo-sombra ultrapassou o tecto tal qual se ele ali não estivesse plantado, nem fosse barreira pouca, de betão, já agora.

as suas pálpebras descaíram, aliviadas do peso que, pouco antes, se lhe abatera sobre o lado esquerdo do peito e, mesmo com elas descaídas, conseguiu divisar o que se passava do lado de lá, para além do tecto, o tecto que funcionou como se não existisse.

era lindo de ver: o corpo-sombra subia e subia, por força do movimento dos braços, envolto numa neblina que rapidamente passou do cinzento ao azul claro e, depois, à ausência de cor, a menos que a luminosidade possuísse cor. atingida a luminosidade o corpo-sombra fundiu-se com ela, tornando-se invisível enquanto objecto autónomo, apenas vulto difuso de uma calma ascensão sem pressa nem objectivo: paz, nem que apenas um vestígio inquantificável de paz, perdido na imensidão da eternidade ou talvez a própria eternidade. este pensamento deixou-o plenamente feliz. continuou estendido na cama, mesmo sem dar por isso.

na manhã seguinte, não se apercebeu de quando a empregada, pensando-o já fora de casa, no trabalho, irrompeu no seu quarto, de aspirador em riste, do estardalhaço que fez e de tudo o que se seguiu.

verdadeiramente, ele já tinha saído. deu consigo a atravessar a porta de casa, a rua e depois a porta do escritório e a do seu gabinete. pelo caminho foi distribuindo cumprimentos, mas ninguém lhe respondeu, mesmo os que se amontoavam, cochichando o incompreensível atraso, "logo o Marques, tão pontual", "que terá acontecido", "se calhar é melhor ligar-lhe" e um etc. de frases sem sentido.

acabado de se instalar, e como ninguém desse mostras de lhe notar a presença, apesar da atenção que todos concentravam nele, ou melhor, na sua (alegada) ausência, espantou os olhos para o tecto, num desabafo, "mas que raio se passa aqui". só então se lembrou do sonho de libertação da noite anterior e do fascínio invejoso que o mesmo lhe causara. calmamente, levantou-se, descontraiu os braços ao longo do corpo e começou a movimentá-los – afastar, encostar –, como os do corpo-sombra do sonho e, para seu espanto e felicidade, com idêntico resultado: uma leveza jamais experimentada, conduziu-o por ali acima, através do tecto do gabinete e de todos os tectos dos vinte andares acima do mesmo e, depois, do telhado do edifício; sem hiato, misturou-se na neblina cinzenta, depois azul e depois luz. e, envolto numa onda de paz, deixou de sentir e de pensar. mergulhou, apenas, no universo.






quinta-feira, 10 de junho de 2021

TENDERNESS


perco-me nos teus braços

a tua pele é a minha pele

o sol extinguiu-se há muito

a lua em seu lugar

chuva mansa afaga os vidros da janela

teus dedos o meu corpo

aconteceu na madrugada de vinte e seis de Agosto de 2020, não interessa se ao vivo ou em mero sonho, por vezes nem se conhece a diferença. guardei (em folha de papel) como guardo tantas palavras – coisas, já não. para criar registo? para mais tarde usar? sei lá!

hoje, dez de Junho de 2021, eram duas horas e quarenta e um minutos da madrugada, dei comigo a pensar: guardar "coisas" com a expectativa de as vir a usar não é criar bolsas de futuro, mas enfardar sacos de passado.

acabo de juntar aquelas e estas palavras, ou seja, usei dois pequenos sacos de passado. talvez tenha criado um pouco de futuro, pelo menos enquanto houver um leitor para isto.

 

perco-me nos teus braços

a tua pele é a minha pele

o sol extinguiu-se há muito

a lua em seu lugar

chuva mansa afaga os vidros da janela

teus dedos o meu corpo