segunda-feira, 16 de agosto de 2021

ATÉ AS MOSCAS SUMIRAM!

este verão, anda tudo tão apalermado que nem a silly season se manifesta, aliás, até as moscas sumiram. quanto ao sumiço destas, ainda bem, mas não no tocante à silly season, que sempre era motivo de divertimento.
ou então – e parece-me que é mais isto –, a idiotice tomou conta do ano inteiro e já nem dá para reparar quando calha sobressair nos calores de agosto.
os gloriosos verões animados por gafes de governantes perderam força, ou não se tivessem tornado uma constante ao longo de todas as estações. por exemplo, quem se lembra de encarar com cinismo o facto de, em plena época de incêndios, ser noticiado que os sistemas de detecção de fogos – sim, já não é bem o SIRESP – não funcionam? ninguém, pois, em se tratando do departamento do ministro cabrita, vem logo à memória um variado leque de acontecimentos susceptíveis de relegar aquele para segundo plano, por exemplo, o caso do estrangeiro que, em tempos, se suicidou nas instalações do SEF do aeroporto de lisboa, sem ter sido socorrido pelos inspectores daquela instituição, que, quando o viram estirado no pavimento, se limitaram a mandar-lhe uns pontapés, uns socos e uns bofetões, apenas para confirmarem a evidência, o tipo já não mexia, estava mortinho e, já nada havendo a fazer, por lá o deixaram; também podia acorrer à lembrança o caso, mais recente, do operário em trabalho numa autoestrada portuguesa que se atravessou negligentemente à frente duma viatura na qual o dito ministro se fazia transportar à razoável velocidade de aí uns 200 Km/hora; que atire a primeira pedra quem nunca.
é claro que, em defesa da silly season, sempre se poderia invocar um caso fora da alçada do dito (e azarento) ministro, por exemplo, da área da saúde; concretamente, a mais vertiginosa evolução científica de todos os tempos, mercê da qual, em cerca de uma semana ou talvez nem tanto, se evoluiu da proibição à recomendação da vacinação dos menores entre os doze e os quinze anos; ainda por cima, tratando-se de uma evolução científica não baseada na evidência de fatos devidamente comprovados, mas em critérios inatingíveis pelo comum dos mortais. todavia, desculpem-me insistir, por mais boa vontade que se tenha, esta via não dá para salvar a silly season, dadas as mais que as mães mudanças radicais a que, ao longo de quase dois anos, nos habituou a dr.ª graça freitas: anúncio de que o (agora velho) novo coronavirus não voaria até portugal/mas cá aterrou, não se justificava o uso de máscaras/justificava-se o uso de máscaras, a vacina da astrazéneca não devia ser aplicada aos velhos/a vacina astrzéneca só devia ser aplicada aos velhos, etc, etc, etc.
podia, ainda, lançar-se mão do recente caso dos senhores do chega de (salvo erro) vila real – que vergonha, tinha logo de ser a minha terra! –, que, após o seu capataz, cujo nome nem quero pronunciar, mas que possui uma coelha chamada acácia, ter andado a defender a não vacinação e ter contraído covid, vieram alegar que ele não se vacinara por receio de o enfermeiro ser do PS e lhe enfiar veneno; e, não contentes, desaconselharam os militantes de se vacinarem por idêntico receio (brigada de vacinação do PS, munida de um veneno especial anti-chega). isto sim, é bastante divertido, pelo menos tão divertido  quanto estúpido e caricato, mas vindo de um partido que nos tem tão bem habituados a cenas estúpidas e caricatas, não se me afigura  suficiente para salvar a silly season (embora me tenha provocado um saboroso ataque de riso).
e é isto! quanto às moscas, felizmente e contra o habitual por esta altura, não me têm entrado pelas janelas dentro! convenci-me que uma coisa anda ligada à outra, ficaram atascadas na m**** espalhada ao longo do ano, no que até fizeram bem, porque agora, como comecei por referir, a m**** da silly season quase nem se nota.
temos que fazer como as moscas, (obviamente) com as devidas adaptações: rir ao longo do ano.



(imagem obtida em pesquisa google)




terça-feira, 10 de agosto de 2021

O ÚLTIMO VOO DA MACACA


no último ano da faculdade, vivi numa residência universitária, gerida por freiras à paisana, ou seja, que não usavam hábito. não frequentava a capela e decorava o meu quarto (privativo) com cartazes de minha autoria, habitados por figuras de amantes enlaçados em beijos e de frases do tipo, vale mais acreditar no diabo do que em deus, pois do diabo nada há a esperar e de deus nada há a receber, no que era, sem dúvida, uma manifestação tardia de provocação adolescente, apenas compreensível pela razão de ter desperdiçado a adolescência ensimesmada em tão profundas quanto deprimentes querelas existenciais, que apenas me levaram a conclusões do tipo da condensada naquela asserção, enquanto deixava passar a florescência própria dessa fase da vida, tão irrepetível quanto qualquer outra, mas com uma perda talvez superior ao desperdício de qualquer outra.

nada disto interessa àquilo de que me proponho falar, excepto pelo facto de ter sido nesse contexto que conheci a macaca, outra das residentes no citado local. curiosamente, não me recordo do nome dela, soa-me vagamente helena, mas sem certeza. macaca era a alcunha atribuída por outra nossa companheira de habitação, a j., de que me tornei grande amiga (anos mais tarde vim a ser madrinha de um dos seus filhos). a j. era muito viva, simpática e engraçada; atribuía estas alcunhas por brincadeira e sem intuitos ofensivos. a mim, chamava-me buda, talvez devido aos meus olhos achinesados e lábios carnudos, bem como ao meu forte interesse pelo oriente longínquo.

a macaca era madeirense e frequentava um curso de letras; aspecto frágil, magra e não muito alta, de proporções harmoniosas, do seu sorriso irradiava um brilho dourado, talvez porque o dourado predominava no seu rosto de feições perfeitas, um pouco asiáticas por virtude dos olhos rasgados e dos pómulos salientes: dourado era o cabelo, o tom da pele e os olhos, estes cor de mel. era discreta e simpática.

mesmo sem sermos especialmente próximas, a dada altura, a macaca contou-me do seu mundo interior, um mundo de negrume, tanto mais negro quanto o flagrante contraste com a irradiação luminosa da sua miúda pessoa. em aparente serenidade e sempre sem perder o sorriso, disse-me da sua família, pai, mãe e irmãos (não recordo quantos, mais do que um) e da doença de que, à excepção da mãe e justamente por herança paterna, todos sofriam, doença mental incapacitante e incurável (cujo nome não me lembro se referiu). ouvi-a atentamente, como sempre gostei de ouvir as pessoas, devo ter-lhe endereçado algumas perguntas e frases animadoras, como sempre tive por hábito fazer, mas nada em pormenor me restou na memória, excepto a percepção nítida (e compadecida) de que a vida da macaca estava marcada por um feroz receio, sem dúvida com a marca das maldições: (vir a) sofrer da doença paterna, que já pendia sobre os inocentes irmãos.

aquilo inquietou-me, mexeu-me por dentro ao ponto de permanecer como uma das inúmeras memórias empáticas que acumulo.

o tempo decorreu, acabámos os cursos, deixámos a residência universitária, cada qual seguiu o seu caminho e nunca mais soube notícias dela.

não muitos anos mais tarde, em conversa com a j., talvez rememorando aqueles tempos, perguntei-lhe se sabia alguma coisa da macaca. respondeu-me: "suicidou-se, atirou-se dum quinto andar da avenida cinco de outubro". gelei de desgosto, talvez não tanto por aquela morte, mas pelo profundo sofrimento que à mesma tinha conduzido como único caminho de libertação.

ao longo da vida, este caso, como tantos outros, veio-me ocasionalmente à memória, nos últimos tempos com uma insistência maior, que me reclamou a necessidade de o relatar. talvez uma homenagem à gentil macaca, cujo sofrimento e, sobretudo, a elegância com que dele me fez testemunha, nunca consegui esquecer. e, sem dúvida, uma homenagem à coragem do seu acto final, o último voo.